Em seminário para discutir políticas públicas, pessoas em situação de rua chamaram atenção para a pouca efetividade dos programas oferecidos pelo município
Por: Mariana Lima
Na última quinta-feira (03/10), representantes de movimentos da população em situação de rua e membros das secretarias e comitês municipais se reuniram para falar sobre os problemas que afligem mais de 20 mil pessoas na maior metrópole no país. O 2° Seminário de Políticas para a População em Situação de Rua discutiu questões relacionadas ao acesso a saúde, a efetividade dos programas, e as violações dos direitos desta população. O evento era aberto ao público e contou com a presença de pessoas em situação de rua para ampliar o debate. Algumas carregam sacolas e mochilas com tudo o que tinham, outras não levavam nada. Algumas enfrentaram problemas sociais e econômicos por aqui, enquanto outras vieram de diversas regiões do país em busca de uma vida melhor.
“Se vocês dormirem na rua por 1 dia, vocês jamais serão os mesmos. As políticas públicas devem ser pensadas sob essa perspectiva. Para falar sobre algo, você precisa viver”
Aquecendo às vozes
O seminário iniciou com a apresentação artística de Eliana de Santana, representante do Comitê PopRua. Ela cantou e interagiu com quem estava na plateia. “Eu canto para apagar a amargura”, desabafa. A abertura solene do evento contou com a presença do vereador pelo Município de São Paulo, Eduardo Suplicy, que chamou atenção para o projeto de Lei n° 145/2018 que torna obrigatório o acesso universal ao SUS para pessoas em situação de rua. O vereador também falou sobre o seu projeto de Renda Básica de Cidadania, o qual apresentou no CIARTE (Centro de Inclusão pela Arte, Cultura e Educação) para o Movimento Nacional dos Moradores de Rua em São Paulo (MNMR-SP). “A Renda Básica já é aplicada em Maricá (RJ). As pessoas ganham 1/3 do salário mínimo. Pensem em um pai e uma mãe com três filhos. Esse valor já representa uma outra vida para eles, longe da fome”.
Saúde, um direito fundamental
Após as considerações iniciais, os membros da mesa “A política de atenção básica em saúde”, tomaram seus lugares. A mesa era composta por representante do Consultório na Rua, da Coordenadoria das Regiões de Saúde (CRS), do Projeto A Cor da Rua e do Comitê PopRua.
As falas de Vera Manchini, assistente Técnica da Atenção Básica – Consultório na Rua, e da coordenadora do CRS-Centro, Paulete Secco Zular, foram recebidas com muitas críticas por parte da população em situação de rua.
Ambas trouxeram dados e informações sobre os pontos de atendimentos, além de imagens de como os serviços funcionam. No entanto, a população de rua presente apontou que o serviço tem diversos problemas, ressaltando o péssimo atendimento e as dificuldades em acessá-los. Representado o projeto de extensão universitária A Cor da Rua – desenvolvido pela UNIFESP –, a pesquisadora e membro do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua, Carmen Santana, abordou a importância de entender as demandas desta população. “Pessoas em situação de rua tem um histórico de perdas e necessidades complexas. O que vemos diariamente são ações de higienização feitas com extrema violência. Isso só aumenta os traumas destas pessoas”. A pesquisadora considera que a pessoa em situação de rua já vive uma situação traumática só por estar naquelas condições. “No projeto, tentamos promover o resgate da autonomia. Eles precisam ter controle sobre o tratamento que recebem, e serem atendidos por pessoas que não os façam reviver os traumas”. A questão do atendimento básico e a relação com as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e com o Sistema Único de Saúde (SUS) foram os pontos centrais da conversa. Os membros da mesa ressaltaram a importância de acolher essa população para motivá-los a não abandonarem o tratamento. A mesa contou com a participação de apenas dois representantes da população de rua, Eliana de Santana e Robson Mendonça, ambos do Comitê PopRua. A indignação esteve presente na fala de Robson ao afirmar que “no papel é tudo muito bonito, mas na realidade não funcionada deste jeito. Muito do que está aí, é coisa para ‘inglês’ ver, porque na prática não funciona para nós”. Tanto Robson como Eliana ressaltaram o papel fundamental da moradia para a inclusão social. “Quando falamos de saúde, temos que pensar no acesso a água, a um banheiro, a um local decente para dormir. A saúde pública precisa dar dignidade ao ser humano”, comenta Robson. A representante do Projeto A Cor da Rua comentou que é essencial envolver quem já esteve nas ruas para promover o diálogo entre o serviço de saúde e quem ainda está lá. “A rua é diferente para quem mora em um prédio, em uma ocupação ou embaixo de um viaduto. Isso tem efeitos nos diálogos”.
O sofrimento mental
A segunda mesa no 1° dia teve como tema o “Sofrimento psíquico da população em situação de rua”, com a participação de apenas um representante da população em questão. Edmar Matoso, conhecida por Lora, é representante do Comitê PopRua e há 20 anos vive nas ruas. Em sua fala, ela bordou a importância da experiência para poder falar pela rua. “Se vocês dormirem na rua por 1 dia, vocês jamais serão os mesmos. As políticas públicas devem ser pensadas sob essa perspectiva. Para falar sobre algo, você precisa viver”.
Claúdia Longhi, coordenadora de Saúde Mental da Secretária Municipal de Saúde, ressaltou a necessidade de “olhar para essas pessoas como indivíduos que possuem uma história. O acolhimento é a peça chave para o ‘final feliz’. As propostas de saúde precisam transitar de uma ponta a outra. Não podem ficar paradas em um lugar e nunca serem efetivadas de fato”. O coordenador da Unidade de Observação – CRATOD (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas), Carlos Eduardo Marra, apontou a importância de “olhar para as pessoas que estão vivendo nas ruas e entender suas necessidades, mas sem impor às nossas. Não basta montar o caminho para acessar o serviço se a pessoa irá enfrentar obstáculos para chegar lá, como a distância”. Marra abordou a questão de que pessoas em situação de rua apresentam as maiores taxas de mortalidade, sendo a tuberculose e as infecções as doenças que mais as atingem. Em relação aos transtornos mentais, Marra comenta que pessoas em situação de rua estão mais sujeitas a presenciarem situações violentas, que impactam na forma como elas irão se relacionar e no desenvolvimento de transtornos.
“Eu quero falar”
Durante todo o 1° dia do evento a população em situação de rua criticou a pouca diversidade nas mesas, principalmente a falta de pessoas negras e representantes da comunidade LGBTQIA+ que vivem em situação de rua. Outro problema apontado por eles foi o pouco tempo disponível para que as pessoas em situação de rua falassem sobre os temas debatidos. Na primeira mesa, após muita insistência da plateia, eles conseguiram 3 minutos para que 5 pessoas falassem e realizassem perguntas. Esse tempo depois foi limitado para um 1 minuto devido a necessidade de finalizar a mesa antes do horário de almoço. Em relação as perguntas, foi pedido que os presentes escrevessem as questões em um bloco de papel, mas foi chamada a atenção para o fato de que muitas pessoas em situação de rua não sabiam ler ou escrever. André Lucas, representante do Comitê PopRua, foi um dos que conseguiram pegar o microfone para falar. “Estamos cansados de ter o nosso tempo de fala censurado. Não queremos saber onde estão os equipamentos, mas onde fazer as denúncias”. Outra pessoa em situação de rua que conseguiu falar foi Rafael, que trouxe o seguinte ponto de vista: “Nunca vi nenhum de vocês na rua. A mesa toda deveria ter pessoas em situação de rua ou ex-moradores. É muito fácil sentar aí e falar sobre algo que não viveu”.