Dado é referente aos últimos 60 anos, e foi apresentado no livro ‘Linchamentos: a justiça popular no Brasil’. Relembre casos ocorridos nos últimos anos e veja o que especialistas de diversas áreas dizem sobre esse tipo de ato
O primeiro linchamento registrado no Brasil ocorreu em 1585, em Salvador, quando um indígena convertido ao cristianismo afirmou que era o Papa. O homem foi linchado, porque muitos fiéis se ofenderam com a situação.
Mais de 400 anos após o episódio, essa prática continua ocorrendo no país. De acordo com o livro ‘Linchamentos: a justiça popular no Brasil’ (2015), escrito pelo sociólogo José de Souza Martins, nos últimos 60 anos, cerca de um milhão de brasileiros participaram de ações de justiçamento de rua.
A obra aponta que os episódios de linchamento tendem a se elevar em períodos de instabilidade política, como a Segunda Guerra Mundial, a ditadura civil militar e as manifestações de rua de 2013.
E as motivações variam: nos anos 80, a maior parte das vítimas era acusada de cometer crimes como roubo e furto. Já nos anos 90 e 2000, os justiçamentos populares ocorriam por crimes como sequestro e estupro.
Em sua dissertação de mestrado, a socióloga Ariadne Natal, hoje doutoranda pela USP, analisou 385 casos de linchamentos noticiados pela imprensa ocorridos na Região Metropolitana de São Paulo, entre 1º de janeiro de 1980 e 31 de dezembro de 2009.
A partir dessa análise, ela verificou que as vítimas são, em sua maioria, homens jovens, de 15 a 30 anos, de áreas periféricas, desempregados ou com profissões de baixo status social.
Os responsáveis por um linchamento podem ser punidos, de acordo com o Código Penal brasileiro, por tentativa de homicídio, homicídio ou lesão corporal. O que acontece, no entanto, é que quase ninguém é punido. De todos os casos analisados por Ariadne Natal, apenas um foi a julgamento.
UMA TRAGÉDIA CAUSADA POR FAKE NEWS
Tudo começou com uma notícia falsa publicada, em abril de 2014, na página ‘Guarujá Alerta’, no Facebook. O texto falava de uma suposta sequestradora de crianças atuando no Guarujá, cidade da Baixada Santista, no litoral de São Paulo.
A notícia ainda dizia que os sequestros tinham como motivo rituais de magia negra. O boato logo se espalhou entre os moradores do bairro de Morrinhos IV, na periferia da cidade. Foi divulgado até um retrato falado da suposta criminosa.
No dia 3 de maio de 2014, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi ao cabeleireiro para realizar um corte. Seu cabelo, que era comprido e escuro, foi cortado na altura dos ombros e pintado de loiro. Após a mudança radical, ela decidiu visitar parentes no seu antigo bairro para mostrar o novo visual.
Foi até lá de bicicleta e passou na igreja que frequentava para pegar a bíblia, que havia esquecido durante o último culto. Ao chegar ao bairro, parou para tomar uma cerveja no bar. Foi quando viu um menino com fome e decidiu lhe dar uma banana.
Uma moradora, ao ver Fabiane com a bíblia na mão alimentando a criança, já a associou à ‘bruxa’ e entendeu que estava acontecendo um novo sequestro: “É ela!”. Repentinamente, várias pessoas se juntaram ao redor e amarraram as mãos da vítima. Fabiane foi arrastada pela rua, chutada e espancada.
Os moradores que não estavam participando diretamente da ação gravaram tudo com seus celulares e divulgaram os vídeos na internet após o ataque. A polícia foi acionada, mas só chegou ao local quando Fabiane estava jogada em um colchão. O linchamento durou cerca de 30 minutos e ela morreu dois dias depois do ocorrido.
“A Fabiane era dona de casa, casada, mãe de duas meninas (de 1 e 14 anos), e era uma pessoa querida pela família e pelos vizinhos. A publicação era uma fake news, pois não havia nenhuma sequestradora na cidade”, afirma Airton Sinto, advogado da família.
Os cinco agressores identificados nas imagens foram condenados a 30 anos de reclusão, pena máxima para o homicídio triplamente qualificado.
Atualmente, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que acrescenta no Código Penal o crime de “incitação virtual ao crime”, cuja redação foi elaborada pelo próprio Airton Sinto em conjunto com o Deputado Federal Ricardo Izar. “A família de Fabiane foi impactada de forma imensa e eterna. Além de ser inocente, ela foi espancada até a morte”, diz.
CASO DANDARA
Em 15 de fevereiro de 2017, a travesti Dandara Kettley, de 42 anos, foi brutalmente assassinada. O caso só ficou conhecido nacionalmente cerca de duas semanas depois, quando as imagens gravadas pelo celular de um dos agressores foram divulgadas nas redes sociais.
No vídeo, Dandara aparece sendo agredida com chutes, um chinelo e até um pedaço de madeira. Ensanguentada e com uma blusa amarela nas mãos, ela tenta limpar os ferimentos e diz “Não bate mais não, por favor”. Além de lhe insultarem por conta de sua orientação sexual, os agressores ameaçam: “Vou te matar se não sair fora daqui”.
Depois do espancamento, colocaram Dandara em um carrinho de mão e a levaram para outro local. Depois, Dandara recebeu dois tiros no rosto e foi apedrejada, falecendo por traumatismo craniano. Dos 12 acusados de sua morte, 2 continuam foragidos.
“Infelizmente, a transfobia é algo que ainda existe no Ceará. Depois deste caso houve outros, mas o que aconteceu com Dandara foi histórico, porque as pessoas começaram a discutir políticas públicas do Estado”, explica Eneas Romero, Promotor de Justiça e atual coordenador do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (CAOCidadania) do Ministério Público do Estado do Ceará.
O caso tornou-se um marco jurídico por ter sido reconhecido como crime de ódio contra uma pessoa LGBT, mesmo que a legislação da época não tipificasse o crime como homofobia.
Além disso, os campos “orientação sexual” e “identidade de gênero” foram acrescentados ao Sistema de Informações Policiais do Ceará. Com isso, será possível gerar dados criminais sobre a comunidade LGBT no estado e fazer a contabilização dos casos.
“Teve que acontecer uma tragédia como esta para que as pessoas começassem a ter mais consciência. Isso não pode ser mais aceito. A pessoa tem o direito de viver a sua vida da melhor maneira possível”, afirma o promotor.
Apesar de notar que cada vez mais as pessoas estão cientes sobre o crime de LGBTfobia no Brasil, o promotor afirma que o ódio contra essas populações vulneráveis só cresce.
De acordo com um relatório produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), o Brasil continua a ser o país que mais mata pessoas transsexuais e travestis no mundo. Em 2019, foram confirmados 124 casos de assassinatos de pessoas trans no país, sendo o estado de São Paulo o que concentra o maior número absoluto de assassinatos (21).
O MENINO PRESO AO POSTE
Yvonne Bezerra de Mello é educadora há mais de 40 anos e, apesar de sempre acreditar na mudança positiva do ser humano, ela se diz desanimada com o rumo do Brasil.
No dia 31 de janeiro de 2014, ela ajudou a salvar a vida de um rapaz negro de 15 anos. O menino, que vivia em um aterro no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, foi amarrado a um poste na Avenida Rui Barbosa por ‘justiceiros’, após ser acusado de praticar furtos pela região.
Os porteiros do prédio de Yvonne perceberam o tumulto e a chamaram. Ao ver o menino nu, espancado e esfaqueado na orelha, amarrado pelo pescoço com uma trava de bicicleta, Yvonne ligou para a Polícia e o Corpo de Bombeiros. “Não importava o que ele havia feito, isso a gente resolvia depois. Ali eu só enxerguei um ser humano”, conta Yvonne.
Depois que prestou os primeiros socorros e o colocou na ambulância, nunca mais voltou a vê-lo. No entanto, uma pessoa que estava no momento do resgate a fotografou e colocou sua foto na internet: o ato humanitário se tornou motivo de perseguição.
Ela passou a receber inúmeras ameaças de morte e teve que sair do país por quatro meses. “As pessoas falavam ‘você deveria ter sido amarrada no poste junto com ele’. Naquele momento eu vi o quanto a sociedade estava doente. Ao invés de prevenir, as pessoas só pensam em matar”.
A educadora afirma que as mídias sociais atualmente só servem para disseminar o ódio, e acredita que as coisas só irão mudar verdadeiramente através da educação no médio e longo prazo. “Parece que isso é tudo parte de um plano político: é necessário ter a massa manipulada, sem acesso a informação, para que esse sistema continue”, diz.
Em 1980, ela criou um projeto social para educar crianças em situação de rua dos bairros da Candelária, Copacabana, Madureira e Meier, no Rio de Janeiro.
E em 1998 fundou o Projeto Uerê, localizado no Complexo da Maré, que ensina crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem devido a traumas provocados pela convivência diária com a violência na comunidade, na família e nas ruas.
O CINEMA COMO FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
O que vem à tona quando se ouve o grito “Pega ladrão!”? Com essa simples frase, muitas pessoas podem parar as suas rotinas para colaborar com a ideia da vingança.
Para falar sobre o crescimento do número de linchamentos no Brasil e traçar um panorama da origem desse tipo de crime, Vladimir Pereira Seixas, de 38 anos, começou a produzir em 2016 o documentário ‘A Primeira Pedra’.
Para compor o filme, o diretor de cinema entrevistou pesquisadores, familiares das vítimas e pessoas que sofreram uma tentativa de linchamento. Com todo o material, ele notou que essa ação ganhou força no Brasil durante três momentos históricos: a ditadura Vargas, a ditadura civil militar e atualmente. Ou seja, quando o pensamento autoritário está em alta, os linchamentos tornam-se mais frequentes.
“A proposta do filme é mostrar que não se deve apoiar a ideia de fazer justiça com as próprias mãos. A questão do linchamento é algo que está entranhado na cultura. Por trás dele, existe até uma questão religiosa: se nós somos imagem e semelhança de Deus, no linchamento as pessoas arrancam as partes do corpo e o deixa desfigurado para destruir o ser”, conta Seixas.
Vladimir ainda conta que um dos momentos mais difíceis na realização da produção foi entrevistar as pessoas que passaram por essa situação, pois todos ficaram adoecidos pelo que restou na memória e é quase impossível superar o que aconteceu.
O documentário não apresenta cenas explícitas de linchamento, porém, mesmo com as imagens embaçadas, é possível que o público tenha uma ideia do que está ocorrendo. A sensação da plateia ao ver as cenas é de desconforto, e muitos não conseguem assistir até o final.
O documentário trouxe de maneira tão impactante a questão dos direitos humanos e racismo estrutural no Brasil que foi reconhecido em diversas premiações: o filme venceu o Prêmio TAL no DocMontevideo de melhor documentário e recebeu a medalha de bronze na categoria Direitos Humanos do New York Film Festival.
Ele também foi indicado ao Emmy Internacional 2019 na categoria ‘Melhor Documentário’. “Minha opinião política sempre foi motivação principal para fazer a minha arte e esse é um tema que precisa de visibilidade”, conclui o diretor.
Fonte: Observatório do 3º Setor