Tese da musicista e foliã Priscila Maria Ribeiro obteve menção honrosa na edição 2022 do Prêmio Sílvio Romero de Monografias sobre folclore e cultura popular, concedido pelo Iphan; pesquisa investiga repertório musical do reisado e sua relação com a comunidade

 

 

Das manifestações culturais cristãs no Brasil, a Folia de Reis é, decerto, uma das mais tradicionais. De origem europeia, no País ganhou terreno graças à herança cultural portuguesa, que reserva ao dia 6 de janeiro uma celebração de graça e louvor aos Três Reis Magos: Baltazar, Belchior e Gaspar. Em parte do interior paulista, a festa ainda sobrevive graças aos grupos que saem às ruas no início de janeiro para manter vivas as tradicionais canções de domínio público. Essas canções embalam a reconstrução da peregrinação dos Santos Reis à procura do Menino Jesus, conforme a passagem bíblica descrita no evangelho de São Mateus.

A pesquisadora Priscila Maria Ribeiro fez da Folia de Reis na cidade de Cajuru, no Estado de São Paulo, o tema de sua tese de doutorado, intitulada “Cantar os Reis”: sistemas de cantoria e localidade. O trabalho acaba de ser agraciado com a 2ª menção honrosa no Prêmio Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan ). Com mais de 70 anos de história, o concurso Sílvio Romero tem como objetivo estimular a produção de conhecimento acadêmico acerca dos mais diversos temas do folclore brasileiro e da cultura popular.

A Companhia de Reis dos Prudêncios, foco do estudo, é um grupo de reisado fundado no início do século 20 por Francisco Faustino da Assunção, mineiro que migrou a trabalho para as lavouras de São Paulo. Embora sediada na zona rural de Cajuru, sua atuação se dá também no perímetro urbano da cidade. Tradição que resiste no interior paulista, é passada de pai para filho e atualmente se encontra em sua sexta geração. Entre os seis primeiros dias do ano, o grupo costuma realizar o seu “giro” anual, quando sai a visitar casas, cantando e tocando, e pedindo donativos para realizar a Festa de Santos Reis.

A autora estuda a Folia de Reis, mais precisamente a Companhia de Reis da família Prudêncio, de Cajuru, desde 2011 – quando ainda era graduanda do curso de Música na ECA – e deixa clara sua condição de pesquisadora e participante, ou “pesquisadora foliã”, nas suas próprias palavras, uma vez que está inserida nesse contexto desde pequena. Priscila, que vem de família foliã,  atualmente é embaixadora do grupo – pessoa responsável por “puxar” qual toada será cantada nos dias de giro.

A metodologia da pesquisa teve uma abordagem qualitativa, considerando a autoetnografia como um dos processos de trabalho. Essa modalidade de investigação pressupõe que o  autor faça uso da autorreflexão e da escrita para explorar a experiência pessoal e anedótica, conectando-as a significados e entendimentos culturais, políticos e sociais do lugar e de seu tempo.

“[A etnografia] possibilita conhecer seu musicar através da participação, da junção de outras vozes na construção do conhecimento, ajudando a elucidar os trânsitos musicais recorrentes entre performance e audiência, seus diversos relacionamentos combinados ao uso da pesquisa participativa com um viés êmico”, afirma a pesquisadora sobre o ponto de vista de quem participa do grupo social estudado. Isso implica ir além do pensar sobre eles para pensar com eles, uma vez que Priscila faz parte dessa cultura.

A pesquisadora também se debruçou sobre um vasto acervo que compreende um período de mais de trinta anos (1982 – 2020). No trabalho, ela frisa que toda comparação e análise partem das condições deste material de arquivo, e não de um recorte preestabelecido, uma vez que há lacunas de edições e de dias em alguns anos. Como parte do arquivo estudado está em VHS, nem todos os dias do “giro” são apresentados ou estão em bom estado de som e imagem, por exemplo.

Apesar de criada no seio dessa cultura desde a infância, a autora da tese teve de se dedicar a mais de 200 horas de sessões assistindo aos vídeos minuciosamente, procurando descrever os acontecimentos com a maior fidelidade possível. Para Priscila, essas gravações possibilitam uma perpetuação dessa memória, costumes e modos de vida, que formaram  várias pessoas ao longo dos anos. Elas carregam esses gestos de sociabilidade pela vida toda, ensinando as  gerações subsequentes através da cultura oral e da “salvaguarda”, preservando os usos e costumes em torno da música, dos símbolos e do rito como um todo nos dias de manifestação.

 

Musicar local

Priscila buscou aprimorar seus conhecimentos acerca do interior do Estado de São Paulo, chegando inclusive a assistir aulas no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A razão é que o campo da geografia oferece aquilo que é chamado de ordem tópica, que vem de topos (lugar), e seria a “constituição física e mental em que o onde está sempre presente, sendo assim um ato de apropriação humana”.

O município-sede do grupo estudado na pesquisa integra o que é comumente chamado, entre historiadores e etnográficos, de “Paulistânia”, região que abrange os estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo, sul do Rio de Janeiro e norte do Paraná. Toda essa área partilha da “cultura caipira”, fruto da expansão territorial dos paulistas bandeirantes nos séculos 16, 17 e 18, que, através dos grandes deslocamentos, trouxeram organicidade cultural a essas paragens.

 

 

Cia. de Reis dos Prudêncios de Cajuru – Foto: Arquivo pessoal / Priscila Ribeiro

 

 

Apesar de possuírem características em comum, os grupos de reisado vão se adaptando às suas respectivas regiões, incorporando imagens da cultura local em suas bandeiras, utilizando instrumentos mais propícios à morfologia do lugar em que atuam (em lugares montanhosos evitam instrumentos muito pesados, por exemplo), além de seguir as mudanças demográficas. Para efeito de ilustração: até os anos 1990, a Companhia de Reis da Família Prudêncio de Cajuru ficava mais restrita à zona rural do município, mas à medida que houve um êxodo maior para o perímetro urbano, essa manifestação deslocou-se também para a cidade.

 

Sistemas de cantorias

Partindo de um viés que contempla a etnomusicologia, a pesquisadora percebeu que as toadas seguem convenções marcadas por forte influência do catolicismo e da cultura caipira, permeando todo o fazer musical da Folia e constituindo diferentes “sistemas de cantorias”. Um sistema de cantoria seria um estilo específico (formas, harmonia e contracanto) para cada toada. E cada sistema costuma ser utilizado em situações específicas do cantar e improvisar versos no decorrer dos dias de giro. A pesquisadora aponta a existência de cinco deles:

 

  • Sistema Mineiro: comumente usado para momentos solenes, como a primeira parte das Chegadas (almoço, janta ou Festa de Reis), ou visitas para famílias conhecidas pela Folia, tendo essas toadas uma extensão maior que as demais;
  • Sistema Paulista: usado na segunda parte das Chegadas, tendo utilidade para agilizar os preceitos desse momento;
  • Sistema Dobrado: caracteriza as toadas “usadas para pedidos de busca de bandeira, agradecimento de janta, agradecimento de almoço, agradecimento de café”. Nessas toadas cabem quatro versos;
  • Sistema de Caminhada: como o próprio nome diz, aparece quando o grupo se encontra em movimento, chegando ou partindo de uma casa;
  • Sistema de Falecidos: contém apenas uma toada do giro, dedicada aos que já partiram. Foi considerado um “sistema” pelo fato de não fazer uso de percussão na marcação.

 

Diferentemente das canções de música popular, as toadas da Folia de Reis não recebem nomes próprios ou títulos entre os foliões, sendo apenas identificadas pelas suas classificações (mineira, paulista, dobrado, etc), cabendo unicamente ao embaixador a escolha da toada a ser cantada pelo grupo, que será assimilada prontamente pelos tocadores e cantantes, já familiarizados com o repertório. Razão essa que explica a pesquisadora classificá-las por numeração (T12, T2-A, T39- A, T14- RR), e não por nomes, pois muitos dos versos tendem a ser comuns a mais de uma toada.

“As toadas apresentam seu desenho harmônico em duas partes, reforçando sua forma binária. Nelas são utilizados acordes de tônica (T), dominante (D), subdominante (S) e dominante da dominante (DD)”, diz a pesquisadora, vindo normalmente acompanhadas de versos protocolares sobre as visitas (permissão para entrar na casa, saudação aos moradores etc.), mas também versos marcados pelo improviso, a depender da ocasião que é apresentada no momento do rito/performance. Textualmente, a trama não foge muito da viagem dos Reis Magos, “reiterando sempre a ideia cíclica da viagem do Oriente até Belém”, entremeada a versos de agradecimento, bênçãos, pedido de ofertas e pagamento de promessas.

 

Confira a seguir um trecho da Folia de Reis da Companhia dos Prudêncios, realizada em 2018. No vídeo, é possível acompanhar a chegada dos foliões e suas toadas à casa de uma moradora de Cajuru: