Não há dúvida de que acusações de racismo e assédio sexual são muito sérias, afirma ela, mas abusos trabalhistas são igualmente sérios – tirar das pessoas de seu pagamento, remover qualquer segurança no trabalho de suas vidas, minar empregos decentes sindicalizados com o que equivale a furar a contratação – e é sinistro vê-los rotineiramente minimizados ou ignorados.
A reputação da apresentadora e atriz americana, Ellen DeGeneres, como a celebridade mais gentil da América finalmente foi quebrada. É o que afirma o artigo de Eileen Jones, Os abusos trabalhistas de Ellen DeGeneres, para o site Jacobin, com base em denúncias e reportagens sobre casos de abuso perpetrados pela atriz.
Jones diz mais e afirma que não apenas sua “veia maldosa” é o problema –ela é uma chefe exploradora, que traiu seus funcionários no pico da pandemia.
Ela encerra cada um de seus talk-shows, que já é um programa de longa data, nos dizendo “Sejam gentis uns com os outros”, um lema que ela capitalizou com sua marca de merchandising “Seja Gentil, por Ellen”, que vende caixas sazonais “cheias dos favoritos de Ellen, produtos escolhidos a dedo”, afirmando que “cada caixa espalha gentileza e marcas campeãs que fazem o mesmo”.
Mas, em contraste com essa imagem, relatos de funcionários e convidados estão afirmam que ela mesma não aplica o mote e não é tão gentil por detrás das cenas.
O que deflagrou o escândalo foi uma disputa trabalhista que revelou que DeGeneres “trai” sua equipe de longa data durante a crise da COVID-19, conforme a revista Variety tornou público em abril.
Ela foi acusada de não comunicar por escrito sobre o status de horas de trabalho, pagamento, ou perguntas sobre sua saúde física e mental dos produtores por mais de um mês a mais de 30 funcionários da equipe de palco principal do “The Ellen DeGeneres Show”.
Superiores na produção ocasionalmente responderiam telefonemas, mas revelariam pouco, adicionou uma das fontes. A equipe ficou ainda mais indignada pela recente contratação do programa de uma empresa de tecnologia de fora, não-sindicalizada, para ajudar DeGeneres a gravar remotamente de sua casa na Califórnia.
Em outras palavras, DeGeneres voltou a fazer seu programa com uma equipe não sindicalizada de baixo custo, enquanto sua equipe sindicalizada de muitos anos esperava em casa em um estado de alta ansiedade, ligando para os produtores e ficando bloqueados, imaginando quando eles voltariam ao trabalho, de onde seu próximo pagamento viria, e se eles deveriam se inscrever para o desemprego.
Eventualmente emergiu que quatro pessoas da equipe de 30 estavam de fato ainda trabalhando, participando nas filmagens que passaram a acontecer na casa de DeGeneres. A equipe restante foi informada pelos produtores a se preparar para um corte de 60% no pagamento, “mesmo enquanto o programa continuava a ir ao ar”, e o cronograma de filmagens expandiu de quatro dias por semana para cinco.
Isso está em contraste com a experiência de funcionários de outros talk-shows, como “Jimmy Kimmel Live!”, “Last Week Tonight with John Oliver” e “Full Frontal with Samantha Bee”, que tiveram seus direitos respeitados com comunicação transparente durante a paralisação da pandemia e um retorno ao pagamento integral, assim que os programas retornarem ao ar. Foi relatado, inclusive, que Jimmy Kimmel pagou ajudantes de palco do seu próprio bolso durante o período de paralisação.
Não há razão financeira para Ellen DeGeneres não ter feito o mesmo. Ela é uma das estrelas mais bem pagas da televisão, ganhando mais do que $50 milhões de dólares por ano com seu programa, de acordo com a Variety. Seu patrimônio líquido total é de $330 milhões de dólares relatados.
Condições de trabalho degradantes
A história fica ainda mais chocante se você conhece as condições de trabalho de equipes de filmes e televisão, que são geralmente fechadas em espaços muito estreitos e íntimos com artistas na tela, também conhecido como “talentos”. Mesmo considerando a obsessão por status de Hollywood e tendências hierárquicas, é difícil para o “talento” não se tornar amigo de pelo menos os principais membros da equipe em filmes e programas de TV.
Um programa de longa data como o de DeGeneres significa anos de frequentes interações diárias com, por exemplo, o cinegrafista, a pessoa responsável pela luz e outros equipamentos elétricos, o figurinista, cabeleireiros e maquiadores, técnicos de som, a pessoa do suporte – todos os especialistas dos quais DeGeneres depende para fazer seu programa. E muitos dos principais membros da equipe de DeGeneres estão com ela desde que o piloto do programa foi ao ar, dezessete anos atrás.
Em tais circunstâncias, é de se esperar um senso de respeito e camaradagem, se você não quer que sua vida profissional seja um grande tormento. Quando você trai essas pessoas, você está provavelmente traindo pessoas que você conhece bem, com as quais você convive.
Mas é aqui que o escândalo inicial que expôs DeGeneres revelou traços de caráter e personalidade. Foi revelado que por trás das cenas, DeGeneres era uma chefe fria e distante, delegando as interações com a equipe para seus produtores, os quais ela rapidamente culpou por quaisquer abusos que tivessem ocorrido.
“Eu sinto muito pelo que se tornou”, DeGeneres supostamente disse ao seu staff em uma vídeo chamada anunciando a demissão de três produtores acusados de abuso.
Os produtores, presumidamente tentando manter seus empregos, contataram a imprensa. Em uma declaração conjunta ao BuzzFeed, três produtores executivos disseram: “Nós estamos realmente com o coração partido e lamentamos saber que mesmo uma pessoa na nossa família de produção teve uma experiência negativa […] Para o registro, a responsabilidade do dia-a-dia do programa da Ellen é completamente nossa. Nós levamos tudo isso muito a sério e percebemos, como muitos no mundo estão aprendendo, que precisamos fazer melhor, estamos comprometidos a fazer melhor, e nós vamos fazer melhor”.
Mesmo assim, cabeças rolaram, quando três principais produtores – Ed Glavin, Kevin Leman e Jonathan Norman – “se separaram do programa”, na sequência de uma investigação interna da WarnerMedia. Todos foram acusados de má conduta sexual por ex-funcionários, com Leman e Norman negando as acusações e Glavin não fazendo nenhuma declaração à imprensa.
A enxurrada de acusações sobre o ambiente de trabalho supostamente hostil no “The Ellen DeGeneres Show” incluiu muitas cargas explosivas de racismo e assédio sexual. As revistas de entretenimento começaram a publicar resumos com marcadores ou apresentações de slides dos muitos e vários desenvolvimentos no escândalo Ellen DeGeneres que, segundo rumores, estavam causando danos irreparáveis a sua carreira.
O que é notável sobre esses relatos pessoais e com apelo sensacionalista é que eles ofuscaram a inicial disputa trabalhista. Uma matéria supostamente abrangente da “Us Magazine”, de 17 de agosto intitulada: “O Drama do Talk-Show de Ellen DeGeneres: Tudo para Saber” afirmou que todo o escândalo começou em 16 de julho – três meses depois a Variety contou a história da disputa trabalhista – com as supostamente “primeiras alegações” publicadas pelo BuzzFeed News, declarando que “11 funcionários – um atual e dez ex – apresentaram reivindicações de que eles enfrentaram racismo e intimidação no set do talk-show.
Uma das poucas publicações que deram à disputa trabalhista um espaço significativo foi o jornal britânico “Independent”. Ele forneceu um relato bastante completo da dimensão trabalhista do escândalo – além de citar os comentários ofensivos e surdos de DeGeneres em uma mensagem no YouTube, comparando o lockdown em sua casa palaciana na Califórnia com estar na prisão.
O “New Yorker” brevemente descreveu as disputas trabalhistas ao mapear como cada fase do escândalo foi incluída pela próxima, com as acusações de assédio sexual capturando a maior parte da atenção, e então ficando inundada na onda de declarações de celebridades defendendo Ellen DeGeneres, descrevendo terem sido tratadas por ela de maneira gentil e respeitosa, assim como muitos trabalhos caridosos de DeGeneres.
Outras celebridades mantiveram a panela fervendo dobrando para baixo com a revelação de sua supostamente conhecida “veia maldosa”, como a comediante Kathy Griffin chamou isso, quando fora dos olhos do público (Brad Garrett, Lea Thompson). Isso deu aos jornalistas de entretenimento novas oportunidades para girar a narrativa, com vários notando que pessoas famosas afirmam que DeGeneres costuma tratar bem suas celebridades, dificilmente rebatendo as acusações de que DeGeneres pouco se importava com as pessoas não famosas que trabalhavam para ela.
Para Eileen Jones, o desaparecimento da história da disputa trabalhista inicial dos relatos mais recentes dos problemas de carreira de DeGeneres é um excelente exemplo de como abusos graves de trabalho são eliminados de tantas reportagens americanas. Não há dúvida de que acusações de racismo e assédio sexual são muito sérias, afirma ela, mas abusos trabalhistas são igualmente sérios – tirar das pessoas de seu pagamento, remover qualquer segurança no trabalho de suas vidas, minar empregos decentes sindicalizados com o que equivale a furar a contratação – e é sinistro vê-los rotineiramente minimizados ou ignorados.
E enfatizar as aflições de Ellen DeGeneres enquanto ela tenta reparar sua imagem significa, na verdade identificar-se com um empregador abusivo e irresponsável, em vez de responsabiliza-la. Embora seja um movimento familiar por jornalistas de entretenimento, ainda é péssimo.
Sobre a autora do artigo original “Os abusos trabalhistas de Ellen DeGeneres”: Eileen Jones é uma crítica de cinema na Jacobin e autora de Filmsuck, USA. Ela também apresenta um podcast chamado Filmsuck.
Fonte: Jacobin
Tradução: Luciana Cristina Ruy