Aos 69 anos, artista recorda seu movimento de transgeneridade e celebra orgulho LGBT: "Não temos vergonha do que somos".
No começo, mais de 10 anos atrás, eram as unhas pintadas que chamavam a atenção (dos outros). Mas ficou assim, sem vergonha. Não que alguém estivesse marcando tempo ou indicando que um processo começa em um dia específico, mas foi assim. Aliás, isso é uma coisa que ela deixa claro. Tudo é parte de um processo. “Não chamo de transição porque não saí de um lugar fixo para outro fixo, estou em um movimento que é mais aberto.” E ao lembrar do começo público das descobertas que viveu, mostra as unhas pela videochamada, hoje sem esmalte algum. “Agora não estou pintando. Aliás, quer que eu coloque umas coisinhas?”, pergunta, referindo-se a brincos e colares. Não há necessidade. Que fique como estiver mais à vontade.
E assim tem sido. A cartunista Laerte Coutinho, 69 anos, se sente mais tranquila hoje. Aprendeu a conviver com o interesse da mídia quando tornou público seu processo de gênero e entende o certo frisson em torno disso. “Os passos que eu ia dando eram surpreendentes para mim mesma, eu ia aprendendo.” Essa transparência em cada nova mudança a tornou, de certa maneira, um símbolo dentro do movimento LGBT.
Ela admite, porém, que, apesar de enxergar esse reconhecimento, estranha um pouco e logo se afasta de grandes feitos ou pioneirismos. “De fato eu não acho que fui corajosa. Fiz esse movimento numa situação em que não corri muito risco, senti que não ia perder meus pontos como profissional, amizades, minha família ia continuar me amando, eu sabia que não ia correr risco. Corajosa é a pessoa que bota a coisa em jogo e se arrisca a perder tudo e muitas vezes perde”, pondera.
Para Laerte, vieram ganhos. “Acho que a transgeneridade trouxe uma coisa muito boa que era minha já... O período anterior eu vivi situações de muita tensão e contenção. Me sentia fechada, dura, amarga. Claro que não o tempo todo, mas como um padrão era isso... Vejo minhas fotos dessa época e traduzem essa amargura, eu parecia uma pessoa que estava ficando velha, e a transgeneridade me jogou para outra coisa. Não quer dizer que eu me sinta jovem, mas eu me sinto uma pessoa mais satisfeita com a vida.”
Fez parte de uma redescoberta minha, não foi a única coisa que aconteceu, mas fez parte como sinal e símbolo dessa mudança muito importante para mim.
No meio de suas questões pessoais (que inclui a morte de um de seus filhos, em 2005, que brecou parte do movimento de transgeneridade que Laerte havia iniciado), o trabalho também foi alterado. Não bem nessa ordem.
“A mudança que imprimi no meu trabalho foi independente da transgeneridade, mas tem a ver com minha aceitação de orientação sexual. No início dos anos 2000 eu já tinha me convencido que ficar bloqueando e escondendo era um veneno que eu estava tomando todo dia e cheguei à conclusão que meu trabalho precisava mudar, estava cansada de produzir as piadas que eu vinha produzindo e mudei totalmente e foi antes da transgeneridade”, recorda-se.
Deixou personagens, despediu-se de certos tipos de piada, se identificou com outra maneira de fazer humor. Mas, claro, nem tudo foi embora. “Mantive só a Muriel [também Hugo, que transita entre os gêneros nas tirinhas de Laerte] por causa disso, porque me interessava como um modo de pensar no que estava acontecendo comigo, porque tenho uma dificuldade de me concentrar e refletir sobre meus processos e uso meu trabalho como ferramenta para isso... Eu me auto-uso.” (risos)
Sobre o humor, talvez tenha a ver com a maneira de olhar para a vida como um todo. Continua conectada a essa forma de comunicação, mas com outro objetivo. “Não estou mais preocupada em produzir riso. O humor é maior do que isso; é um modo de expressão que não necessariamente conduz ao riso e isso me interessa muito. Deixei ele mais semelhante ao processo poético. Não digo que faço poesia, mas com isso trabalho em uma terra mais nebulosa, mas dúbia, [trabalhos que] levam para vários lados.”
Atualmente, em meio ao isolamento provocado pela pandemia da covid-19, sente que há um desafio novo para produzir — e tem sofrido um pouco por não poder ver os pais, os filhos e os 4 netos. Mas sobre o trabalho, o problema não é ficar em casa, prática já recorrente para cartunistas. “Viramos bicho de toca.” Mas sim lidar com a situação como um todo.
“O que faz falta para meu desempenho profissional é disposição e energia e nesse sentido a quarentena achata isso. A gente fica desanimada, entramos em processo variados de depressão. Não estou depressiva, mas rola muita ansiedade, isso tudo não é estímulo para concluir bons trabalhos, não.”
Eu sinto orgulho, faço parte dessas pessoas [LGBT] que têm orgulho. Me sinto orgulhosa do meu movimento porque eu não me sinto envergonhada dele, acho que é isso. Não temos vergonha do que somos.
Além disso, Laerte pontua que muitas coisas que estão expostas hoje na sociedade também não são exatamente inspiradoras. “A pandemia deixou muito claro que estamos numa sociedade desigual, injusta e opressiva, muito cruel. Mas o que podemos aprender acho que é a ideia de que é possível parar, interromper esse processo e existem outras formas de existir em sociedade. Algumas já estavam sendo delineadas antes por pessoas que estavam ocupadíssimas em demonstrar como as populações de favela, negras, de índio, LGBT, estavam sendo massacradas, como as desigualdades de gênero são opressivas, como o meio ambiente está sendo destruído…”
Difícil imaginar como as coisas ficarão após este momento complexo da política e da sociedade brasileira. “Acho que temos material para a gente se meter numa boa luta para reconduzir o País, reconduzir não, conduzir o País em um caminho de mais humanidade.”
Ela enxerga também crescimento do movimento LGBT, mesmo com as dificuldades e preconceitos que ainda encontram. “O movimento está amadurecendo, está firmando um padrão mais aberto de identidade de gênero que quebra o binarismo de gênero e acho isso bom. Além disso, acho que tem outros vetores se colocando nessa luta: questões de classe, étnicas, cor de pele.”
Parece ter esperanças com o futuro, apesar de tudo. E há motivo. Afinal, foi justamente depois de um período difícil que enxergou a possibilidade de viver de outra forma. “Essa mudança pessoal que experimentei, essa espécie de fim do ciclo de amargura para mim inaugurou uma ideia de liberdade. Eu não estava fazendo nenhum gesto de agressão a ninguém, era uma coisa totalmente amorosa em relação ao mundo, dependia só de mim. E perceber que isso era possível foi muito bom, e quando notei que além de possível eu me sentia ótima, nossa... É difícil descrever o grau de satisfação que a gente fica, é muito bom. A minha vida mudou.”
E hoje vive assim. Mais tranquila. E sem vergonha. Sem vergonha nenhuma. “Orgulho pode ser um pecado (risos), mas eu compreendo o uso da palavra orgulho como o oposto de vergonha. Então sim, eu sinto orgulho, faço parte dessas pessoas que têm orgulho. Me sinto orgulhosa do meu movimento porque eu não me sinto envergonhada dele, acho que é isso. Não temos vergonha do que somos”, conclui.