Combate à pandemia já é extremamente desafiador para o país, mas postura do presidente contra isolamento, que levou a demissão de ministro, complica cenário ainda mais
Em meio à maior crise sanitária mundial, o Brasil viu nesta quinta-feira (16) o seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ser demitido por divergências com Jair Bolsonaro. A decisão é a mais evidente prova de que o País, diante de um cenário de combate ao novo coronavírus já extremamente desafiador, tem um fator que consegue tornar a crise por aqui ainda mais grave: o seu presidente.
O Brasil tem hoje notificadas mais de 1.900 mortes por covid-19. Os casos confirmados ultrapassam os 30 mil. Os números estão longe de demonstrar a realidade imposta pela disseminação do novo coronavírus no país, uma vez que a lentidão no resultado de testes laboratoriais leva a um atraso nos dados oficiais e há ainda subnotificação de casos confirmados devido à falta de testes suficientes.
Estimativas feitas por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) e da UnB (Universidade de Brasília) apontam que o número de infectados é até 15 vezes superior aos dados oficiais, superando 300 mil. As projeções colocam o Brasil apenas atrás dos Estados Unidos em número de casos.
Em pelo menos cinco estados brasileiros e no Distrito Federal, o sistema de saúde já está à beira do colapso, com previsão de que não haja mais leitos de UTI (Unidades de Tratamento Intensivo) disponíveis já no início de maio. No Ceará, o governo anunciou nesta quinta-feira que todas as vagas de terapia intensiva já estão tomadas no estado.
Desde que o país começou a se confrontar com boletins diários de dezenas de mortes, no entanto, Bolsonaro minimiza a gravidade da doença, a capacidade de propagação do vírus e defende que o isolamento seja relaxado para não prejudicar tanto a economia. Mais recentemente, deu início a uma cruzada em favor do amplo uso da cloroquina no combate à covid-19, mesmo sem eficácia cientificamente comprovada até agora.
Esses posicionamentos o colocaram em rota de colisão com quem estava à frente na linha de combate ao vírus no Brasil: Mandetta e todo o corpo técnico do ministério. Com o agora ex-ministro, sairão também o secretário-executivo do ministério, João Gabbardo - médico com 40 anos de experiência no ministério-, e o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira - doutor em epidemiologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e especialista em epidemiologia pela Universidade Johns Hopkins.
O sucessor de Mandetta será o oncologista Nelson Teich, que defende o isolamento horizontal e, ao assumir o posto, ressaltou que saúde e emprego são áreas complementares e não excludentes. “Elas não competem entre si, são complementares. Quando polariza, começa a tratar pessoas versus dinheiro, bem versus mal, emprego versus pessoas doentes”, disse. Não está claro, porém, o quanto Teich, um médico respeitado entre seus pares, terá liberdade para comandar o ministério e a crise com critérios técnicos.
O então ministro Mandetta (à dir.) e o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, durante coletiva de imprensa na quarta (15), que teve clima de despedida.
Na véspera da demissão, a coletiva de imprensa diária dada por Mandetta e seus assessores já tinha tom de despedida. Gabbardo disse que ajudaria a orientar a nova equipe durante a transição. “Não vou abandonar o barco. Vou ficar no Ministério da Saúde durante todo o tempo necessário para fazer a transição porque tenho consciência de que a população espera uma continuidade desse trabalho”, disse.
E os números mostram isso. Segundo pesquisa Datafolha publicada em 3 de abril, quando o embate entre Bolsonaro e Mandetta estava no auge, o Ministério da Saúde tinha uma aprovação mais de duas vezes superior à do presidente. De acordo com o levantamento, 76% dos entrevistados aprovavam o desempenho do ministério no combate ao coronavírus, contra 33% que achavam boa a gestão de Bolsonaro sobre a crise.
Quando começou a montar seu gabinete, Bolsonaro se vangloriava de ter feito escolhas técnicas e não políticas para os ministérios. Para a Saúde, escolheu o médico ortopedista Mandetta, que já havia sido secretário de Saúde em Campo Grande (Mato Grosso do Sul) e deputado federal. Como em outros casos em seu gabinete, no entanto, o presidente descartou a tecnicidade do subordinado por não corroborar as suas teses.
Histórico de ações irresponsáveis
O desserviço prestado pelo presidente em meio à grave crise sanitária foi visto não só em declarações, mas também em várias ações irresponsáveis, tomadas em tom de provocação.
Na primeira delas, depois de falar que a epidemia era “fantasia” - e quando a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e do próprio Ministério da Saúde já era evitar aglomerações -, Bolsonaro não só estimulou uma manifestação em apoio a ele e contra o Congresso, como deixou o isolamento e cumprimentou e abraçou manifestantes em frente ao Palácio do Planalto no dia 15 de março.
Nos dias anteriores, vários membros da delegação que havia viajado com ele aos Estados Unidos tinham testado positivo para o coronavírus. O presidente havia feito um primeiro teste - que, segundo ele, teve resultado negativo -, mas a orientação médica era de que seguisse isolado até fazer um segundo teste. Bolsonaro nunca apresentou o documento com o resultado. Pelo menos 23 pessoas que tiveram contato com ele na viagem tiveram o diagnóstico confirmado.
Em seguida, Bolsonaro declarou guerra aos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio, Wilson Witzel, por adotarem medidas restritivas de circulação como forma de combate ao coronavírus.
“Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia na questão do coronavírus. (...) Não [vamos] exterminar empregos, senhores governadores. Sejam responsáveis. Espero que não queiram me culpar lá na frente pela quantidade de milhões e milhões de desempregados”, disse Bolsonaro em entrevista à TV Record em 23 de março.
No dia seguinte, Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional de rádio e TV e defendeu que o país “voltasse à normalidade”. Disse que os governadores deveriam “abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa” e afirmou que a imprensa “espalha o pavor”, “tendo como carro chefe o anúncio de um grande número de vítimas na Itália, um país com grande número de idosos e com um clima totalmente diferente do nosso”.
“O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos de idade”, disse.
Ele ainda afirmou que, pelo seu “histórico de atleta”, se fosse contaminado pelo vírus, não precisaria se preocupar - “nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.
Bolsonaro cumprimenta e abraça apoiadores em frente ao palácio quando orientação já era evitar aglomerações.
Cinco dias depois, Bolsonaro afrontou as orientações do então ministro da Saúde de isolamento social e circulou pelo comércio de Brasília, gerando aglomeração de apoiadores. A cena se repetiria no último dia 10, feriado de Sexta-feira Santa. O presidente deixou o palácio e foi à farmácia, ao hospital e ao prédio em que um de seus filhos mora. Promoveu aglomeração e cumprimentou apoiadores depois de coçar o nariz.
Depois desse episódio, Mandetta deu uma entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, dizendo que o povo brasileiro não sabe “se escuta o ministro da Saúde ou se escuta o presidente” e que a falta de uma “fala unificada leva para os brasileiros uma dubiedade”.
Bolsonaro ainda sugeriu por diversas vezes que governadores estariam “inflando” os números de casos confirmados e de mortos para justificar as políticas de isolamento. “O que estou vendo também, em alguns estados do Brasil, se eu não estou politizando, se eu for ver, quase ninguém mais está morrendo de H1N1. Todo mundo é covid-19. Parece que a intenção é de potencializar isso para falar: ‘Tá vendo, o que eu fiz justificou, morreram tantas pessoas. Se eu não tivesse feito, teriam morrido cinco, 10 ou 20 vezes mais’”, disse o presidente em 27 de março.
A teoria foi reforçada por seus filhos e apoiadores nas redes sociais. Carlos Bolsonaro chegou a postar no Twitter um vídeo em que supostamente um médico é agredido por familiares de uma mulher que morreu com pneumonia. No laudo, o médico teria colocado que a morte era suspeita de covid-19, o que revoltou familiares. “Confere? Que Deus conforte esta família!”, escreveu o filho do presidente. Pneumonia é um dos quadros decorrentes da covid-19 e os casos só entram para a contagem de mortes após comprovação do diagnóstico por teste laboratorial, o que muitas vezes só vem dias após o enterro.
Outra postura polêmica é sua defesa irrestrita da cloroquina como método para combater a covid-19, desde a fase inicial da doença e mesmo sem comprovação científica da sua eficácia para esse tratamento. Segundo Bolsonaro, é preciso que o remédio seja tomado “até o quarto ou quinto dia útil do tratamento”.
Até o momento, no entanto, o Ministério da Saúde só indica o uso da cloroquina para pacientes que estejam internados com quadros graves ou críticos de covid-19. A principal preocupação do Ministério da Saúde é com o potencial da droga de gerar arritmias cardíacas, por isso a administração só é autorizada no Brasil em ambiente hospitalar, com acompanhamento do risco cardíaco do paciente.
Impacto do discurso de Bolsonaro
A postura irresponsável do presidente tem impacto direto sobre a população. Levantamentos já mostram um relaxamento na adesão ao isolamento em algumas regiões.
No Estado de São Paulo, que concentra 39% dos casos e 45% das mortes de todo o país, a taxa de isolamento social caiu de 59% para 50% entre o domingo, 12, e a segunda, 13. O governo estadual diz que o ideal seria uma taxa de 70% para conter a propagação do vírus. Os dados de isolamento são obtidos por meio de monitoramento de celulares, a partir de metadados de localização.
No Rio de Janeiro, segundo estado com maior número de casos e de mortes, a taxa de adesão ao isolamento foi de 53,8% no sábado, segundo dados da empresa In Loco.
Um simulador que calcula a “Pressão hospitalar por covid-19”, elaborado por um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo, calcula que, com a evolução de contágio, São Paulo e Rio devem ficar sem leitos de UTI para internar pacientes com a doença entre 4 e 6 de maio.
No último domingo, uma carreata em São Paulo contra o governador João Doria e a quarentena imposta por ele e a favor de Bolsonaro interditou trechos da Avenida Paulista, a mais importante da cidade. Um grupo também levou um caixão para a manifestação e dançou com o objeto - em uma referência infeliz a um meme que circula pelas redes brasileiras.
O comportamento do presidente preocupa autoridades pelo país. À CNN Brasil, o prefeito de Manaus (Amazonas), Arthur Virgílio, criticou a postura de Bolsonaro. “Atitudes como a do presidente, que sai tranquilamente às ruas e mostra que para ele não há perigo em nada, fazem com que hoje muitas ruas em Manaus estejam cheias de carros.”
O sistema de saúde em Manaus já está em alerta máximo. A taxa de ocupação dos leitos do estado chegou a 91%, segundo dados do governo, e o número de casos quintuplicou nos primeiros dez dias deste mês — um aumento vertiginoso. Para se ter ideia, em todo o país, no mesmo período, o número de casos dobrou.
Virgílio pediu apoio do Congresso para se manifestar com clareza sobre a postura de Bolsonaro. “É fundamental que um poder não atrapalhe o outro. Para desmobilizar, basta um passeio em uma feira.”
Além dos dados concretos do afrouxamento na adesão popular à quarentena, o discurso de Bolsonaro vem sendo repetido por apoiadores, como o próprio presidente evidencia em vídeos postados em suas redes sociais.
No último dia 3, um deles mostra um grupo de simpatizantes - aglomerados - em frente ao Palácio da Alvorada, residência do presidente, pedindo a reabertura do comércio e pregando que “Deus não vai permitir” mais mortes por coronavírus no Brasil. Na véspera, Bolsonaro havia dito que “a vida tem que continuar” e que “Papai do Céu está conosco, acreditem em Deus”.
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A forte pressão do presidente por flexibilizar o isolamento também fez com que o ministério orientasse recentemente a migração, das medidas de distanciamento social ampliado para o distanciamento seletivo, nas cidades e estados cujo número de casos confirmados não tiver impactado em mais de 50% da capacidade hospitalar instalada antes da pandemia.
No modelo seletivo, apenas grupos considerados de risco, como idosos ou pessoas com doenças crônicas, ficam isolados. O restante da população pode retomar as atividades econômicas. De acordo com o documento, “pessoas abaixo de 60 anos podem circular livremente, se estiverem assintomáticas”.
Para o médico e pesquisador Julio Croda, ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, no entanto, a flexibilização do isolamento social coloca em risco a capacidade de resposta do sistema de saúde à pandemia.
“A gente tem que trabalhar com taxas e não números absolutos porque 50% da capacidade do Amazonas não é a mesma coisa que 50% da capacidade, por exemplo, do Rio Grande do Sul. Depende de quantos leitos você tem”, diz. Segundo Croda, em cidades com pouquíssimos leitos, por exemplo, 50% “não significa nada”. Além disso, a falta de testes prejudica o diagnóstico sobre o real impacto da doença na população local.
Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/