“Ela parou de estudar porque ele não deixava, se afastou da família, não podia nem sequer trabalhar. Ela vivia presa dentro de casa”, lembra Geyse Ortega, tia de Airyfer Castro, jovem de 22 anos brutalmente assassinada pelo ex-namorado em março de 2018, na cidade de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul. “O sonho dela era ter uma família de acordo com aquilo que ela acreditava. Ela sonhava em se casar na igreja. Isso custou a vida dela.”
Na manhã do dia 17 de março de 2018, Edmauro Gamarra, 30, que não aceitava o fim do relacionamento, esperou a mãe de Airyfer sair para trabalhar. Ele invadiu a casa e esfaqueou a ex-companheira e seu então namorado, Higor Quintana, que estavam dormindo. Higor morreu no local. Airyfer foi levada ao hospital com vida, mas não resistiu. A filha do casal, que tinha 7 anos, estava presente e assistiu à cena do crime.
A morte brutal de Airyfer pertence à alarmante estatística de mortes de mulheres no Brasil. Vivendo como prisioneira dentro do próprio lar, ela decidiu romper o ciclo de violência e foi amparada pela família. Mas recomeçar lhe custou a própria vida. Ela foi morta no ambiente que deveria ser de acolhimento e proteção, mas se tornou o mais arriscado para as mulheres: a própria casa.
Esta realidade à qual milhares de brasileiras são submetidas no ambiente doméstico é apontada pelo Atlas da Violência 2019, realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). O estudo aponta que, entre 2007 e 2017, 39,2% dos homicídios de mulheres no Brasil aconteceram dentro de casa. Já entre os homens, o índice é de 15,9%.
A pesquisa ainda destaca que as mulheres não estão seguras em nenhum local, mas a trajetória da violência é ainda pior dentro de casa: enquanto a taxa de homicídios de mulheres fora do domicílio subiu 28% em 10 anos, as ocorrências registradas em casa aumentaram 38%. No mesmo período, o homicídio de mulheres negras cresceu 29,9%, enquanto o de não brancas aumentou em 1,6%.
″É um equívoco imaginar que o lar seja a representação de um lugar de paz, um local sagrado, inviolável e até de não interferência por parte da Justiça, do Estado. Não é bem assim. O lar também é um espaço onde a gente identifica as chamadas relações assimétricas de poder”, aponta Silvia Chakian, promotora de justiça do MP-SP e membro do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica).
Essa assimetria, em que um indivíduo exerce poder sobre o outro, segundo a promotora, é o que perpetua estes crimes violentos contra mulheres pelo simples fato de serem mulheres e é expressão do machismo estrutural.
Em vigor desde 2015 no Brasil, a Lei do Feminicídio tipificou como crime hediondo o assassinato de mulheres motivados pela violência doméstica e familiar, assim como devido ao menosprezo ou discriminação à sua condição de mulher. A pena é de 12 a 30 anos de reclusão. No homicídio simples, a pena é de 6 a 20 anos.
″É também dentro de casa que a gente vê a persistência de um desequilíbrio dos papéis exercidos por homens e mulheres ainda hoje”, diz Chakian. “Muita coisa [nos últimos anos] mudou da porta de casa pra fora, mas pouca mudou da porta pra dentro.”
‘Foi como se ele demarcasse o corpo dela como um bicho’
Geyse disse que só soube dos detalhes cruéis da morte da sobrinha um tempo depois. “Descobrimos que ela [Airyfer] não levou nenhuma facada na parte torácica. Ele feriu a minha sobrinha na área da bexiga e na região genital. E isso, pra mim, foi como se ele demarcasse o corpo dela como um bicho, um território.”
Após o crime, Edmauro fugiu, mas ainda no mesmo dia se entregou à polícia. “Aqui a cidade é pequena e foi uma comoção popular”, lembra Geyse. No dia seguinte, devido à repercussão, a casa dele foi incendiada. “De certo foi alguém revoltado com o caso. Mas não é por aí. Eu penso que não é produzindo mais violência que vai fazer a minha menina voltar.”
Edmauro e Airyfer namoraram durante 10 anos. Segundo Geyse, que trabalha como conselheira tutelar, episódios de violência entre eles eram constantes e passavam por um ciclo. Nesse período, foram feitos 6 boletins de ocorrência registrando as agressões cometidas. “Quando a coisa apertava, ela vinha para a casa da mãe. Eles moravam em outro lugar. Mas, depois, quando os hematomas desapareciam, ela voltava pra ele e vivia como prisioneira.”
Um ano e seis meses após cometer o assassinato, ele foi condenado a 62 anos e três meses de prisão por homicídio qualificado duplo com o agravante de feminicídio, sem possibilidade de defesa da vítima. A pena do assassino foi aumentada pela presença da filha no local do crime.
Geyse conta que, uma semana antes do assassinato, Airyfer ainda recebia ameaças do ex-companheiro, que se intensificaram após ela iniciar o novo relacionamento e frequentar locais públicos com ele. “O rapaz estava fazendo muito bem para ela, sabe? Mas havia muito medo. O pai avisou, a mãe avisou. Uma semana antes, eu chamei ela e falei: ‘vai acontecer isso com você, uma hora ele vai te matar’. E ela me disse ‘não, tia, ele me ama’.”
O perigo que mora dentro de casa
“O feminicídio é o ápice da violência. Ele é sinal de que nada funcionou”, afirma Fabiana de Andrade, mestre em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo), que se especializou em violência doméstica. “Grande parte das mulheres que são assassinadas por parceiro íntimo decidiu dar um basta na relação. E, a partir disso, se torna um alvo.”
A pesquisa Raio X do Feminicídio em São Paulo, realizada pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo), é uma das poucas que detalha características deste tipo de crime. Segundo os dados, a maioria dos casos é praticada em contexto de relação afetiva - ou seja, cometida por namorados, maridos e amantes.
É apontado que a principal motivação para estes crimes é a separação do casal, que acontece no momento do crime ou anteriormente, e representa 45% dos casos em que há os chamados “feminicídios íntimos”. Ciúme, sentimento de posse ou machismo respondem por outros 30% dos casos em que há relação entre agressor e vítima. Outros 17% tratam de discussão, 2% por motivo financeiro e em 6% a motivação não constava na denúncia.
Estudo do MP aponta que a cada três vítimas de feminicídio, duas foram atacadas em casa, sendo que, em 66% dos casos, o local era residência da vítima. Em 8%, os crimes foram praticados no caminho para a casa ou para o trabalho.
A casa é o lugar em que a mulher, de certa maneira, está ‘desarmada’, no sentido de vulnerabilidade. O ambiente doméstico se torna propício para que a violência aconteça porque ainda existe a ideia do amor romântico
Fabiana de Andrade, mestre em antropologia social pela USP
“A casa é o lugar em que a mulher, de certa maneira, está ‘desarmada’, no sentido de vulnerabilidade. O ambiente doméstico se torna propício para que a violência aconteça porque ainda existe a ideia do amor romântico, de encontrar o ‘parceiro ideal’”, observa Fabiana.
“Isso também está muito norteado pelo que entendemos por ‘ser mulher’. Ainda existe a questão religiosa e a pressão pela manutenção de um casamento, que é sempre atrelada à mulher. É um fenômeno muito complexo. Não dá para falar em uma única causa ou motivação.”
Assim, o risco constante de feminicídio se agrava pelo fato de serem os homens que elas escolheram compartilhar a vida ― e o mesmo teto ― seus principais algozes. O lar, que deveria ser sinônimo de refúgio, proteção e tranquilidade diante da violência externa e urbana, acaba por se tornar um local de medo para as mulheres, vistas como objeto, propriedade e fonte de expressão de uma masculinidade ligada à destruição.
“Elas não têm como se defender”, aponta a antropóloga. “Também há uma dificuldade no entendimento de que o que está acontecendo é uma violência. Elas são contaminadas pelo entorno, pela família, pela igreja. Nós vivemos em uma sociedade machista, em que uma mulher é contestada absolutamente por tudo o que ela diz. Ultrapassar a barreira do ambiente doméstico e chegar à denúncia se torna um caminho ainda mais delicado.”
‘Ele dizia que eu ia me arrepender de ter nascido’
Em grande parte dos casos, no entanto, nem mesmo longe do agressor a mulher que é vítima de um relacionamento violento está segura. Verônica*, de 45 anos, viveu uma rotina de violência física e psicológica com o ex-marido por mais de dez anos. “Tudo piorou quando descobri que ele estava me traindo. E ele falava: ‘não, isso é coisa da sua cabeça, você está ficando louca’”, lembra. “Eu perdi amizades, ele me afastou de todo mundo, me isolou. Ele queria que eu ficasse dentro de casa. E sempre que eu falava em separação, ele dizia que eu ia me arrepender de ter nascido.”
Anos depois, ela conseguiu se separar e ficar com a casa. Mas foi surpreendida em uma madrugada de abril em 2018: o ex-companheiro invadiu seu lar ao ver um carro diferente na garagem. “Ele começou a buzinar, me xingando de tudo quanto é nome e eu acordei. Ele chegou a tirar o portão de ferro do lugar, conseguiu arrancar no chute, no murro. Amassou o meu carro, o do meu namorado, quebrou vidro, tudo. Eu estava vendo a hora que ele ia entrar na minha casa e me matar. Ele estava com uma força absurda. Eu comecei a gritar para que todo mundo ouvisse.”
Ela e os vizinhos ligaram para a polícia, que chegou antes que o ex-marido conseguisse entrar. Segundo ela, o agressor, ao ver as luzes e as pessoas saindo à rua para entender o que estava acontecendo, fugiu. “Foi por Deus. Se ele tivesse entrado, ele tinha me matado”. A partir desse momento, Verônica* e seus familiares têm medidas protetivas contra ele, e a filha do casal tem visitas monitoradas com o pai mensalmente.
“Não era para eu estar viva. Eu me considero uma sobrevivente. Eu não sei se eu acordo viva amanhã, porque tenho medo dele invadir a minha casa. Ele ainda faz ameaças por mensagens. Eu não tenho mais paz. Estou até pensando em me mudar. Talvez só assim eu tenha uma vida normal, sem medo.”
Leis existem, mas falta investimento
Há 14 anos, a Lei Maria da Penha estabeleceu que é dever do Estado criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres e que todas elas, “independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião”, devem gozar dos direitos fundamentais, “oportunidades e facilidades para viver sem violência”.
Porém, todas as especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil apontam que o crescente número de feminicídios no País se deve, principalmente, à falta de uma rede integrada de enfrentamento à violência doméstica e de acolhimento, uma vez que o feminicídio é o fim do ciclo. Antes de serem mortas pelos companheiros, elas já sofreram outros tipos de agressão.
Na maioria das cidades brasileiras, não existe nenhuma Deam (Delegacia especializada no atendimento à mulher). Essa é a realidade de 91,7% dos municípios no País segundo pesquisa divulgada em 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 90,3% das cidades também não há nenhum tipo de serviço especializado no atendimento à violência sexual.
Entre 2015 e 2019, os recursos para atendimento às mulheres em situação de violência recuaram de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil, segundo levantamento do Estado de São Paulo. O orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foi reduzido de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões neste período.
Em função do Dia Internacional da Mulher, o ministério irá lançar um plano emergencial de combate ao feminicídio, sete meses após anunciar o Pacto para Implementação de Políticas Públicas de Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres, sem nenhuma medida específica detalhada.
“Quando você consegue fortalecer essa rede de atendimento à mulher [sistema de justiça e de saúde] você impede que os feminicídios ocorram”, aponta Nalida Coelho, defensora pública, coordenadora auxiliar do NUDEM (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de SP).
“Você dá opções para ela sair de uma situação de violência. Só se diz ‘mulher, você pode sair dessa situação violenta porque você tem essa, essa e essa opção’, quando você tem uma rede de enfrentamento estruturada. E não temos.”
Especialistas avaliam que, nos últimos anos, houve certo amadurecimento por parte da sociedade, do poder público e da Justiça na consciência e no diagnóstico da violência contra a mulher. Mas ainda é incipiente a implementação de medidas de prevenção, como educacionais, a respeito das relações de gênero e também as que promovam reflexão por parte dos agressores. Essas medidas estão previstas na Lei Maria da Penha.
“Nós temos uma lei que é considerada a terceira lei mais importante do mundo no combate e na prevenção da violência contra a mulher mas, por outro lado, com menos investimento, existe a tendência de aumentar o número de casos, sem conseguir prevenir as mortes”, aponta Nalida.
A Defensoria Pública de São Paulo, por meio do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, disponibiliza cartilhas com orientações de atendimentos à mulher vítima de violência, além de endereços de delegacias especializadas.
Redes autônomas de acolhimento entre mulheres
Geyse, tia de Airyfer, vítima de feminicídio no MS, transformou sua dor e indignação em força motora para ajudar outras mulheres em situação de violência. “Eu que limpei a casa depois do crime. Minha família ficou toda destruída e eu sou como se fosse um esteio para eles, sabe? Mas só aparento ser forte. Nós estamos no meio do Pantanal, onde o homem trata a mulher como gado. Não temos o que querer aqui. Eles é que decidem absolutamente tudo.”
No Mato Grosso do Sul, estado em que Airyfer foi assassinada, 61 mulheres foram mortas em 2017, segundo o Atlas da Violência. Porém, não há detalhamento do quanto destas mortes foram feminicídios.
De acordo com dados mais recentes da Secretaria de Direitos Humanos do MS, no primeiro semestre de 2019, foram registrados 24.646 casos de violência contra a mulher, o que corresponde a um registro a cada 12 minutos.
Entre os registros, 10.218 são casos de violência doméstica, 9.305 são ameaças, 4.249 são lesões corporais dolosas. Também foram registrados 792 casos de estupros, 60 tentativas de feminicídio e 22 feminicídios.
De janeiro até julho do ano passado, a Casa da Mulher Brasileira do estado, localizada em Campo Grande, realizou 82.561 atendimentos a vítimas de violência doméstica e seus familiares, incluindo acompanhamento psicossocial, oferta de alojamento e de transporte, atendimento policial e judicial.
Logo após o assassinato de sua sobrinha, em 2018, Geyse criou um grupo de acolhimento na internet em que conseguiu reunir mulheres não só de Aquidauana, mas do Brasil todo. Atualmente, o grupo tem mais de 3 mil participantes.
“Eu percebi que existiam outras mulheres naquela situação e eu vi que precisava fazer algo com a morte da minha sobrinha, precisava ajudar a levantar mais vozes, fazer com que outras pessoas não passem por isso.”
Geyse conta que, em uma cidade de 44 mil habitantes, ela se tornou uma espécie de “agitadora social” por levantar a sua voz. Ela diz que “não é psicóloga”, mas que gosta de se “sentir útil”, e, por isso, mantém sua porta aberta para mulheres em situação de vulnerabilidade.
″Às vezes, só o que elas querem é conversar, pensar como sair da relação. É bom para mim também. Eu não faço terapia, o que eu faço é conversar com as pessoas. Me faz bem”, diz. “Elas até me avisam: ‘não me manda mensagem, porque ele controla o celular. Deixa que eu falo com você quando eu puder’.”
Além de promover este acolhimento online e offline, neste domingo (8), em que o Dia Internacional da Mulher é lembrado, ela e outras mulheres do grupo, em parceria com a Delegacia de Atendimento à Mulher de Aquidauana, vão realizar uma panfletagem nas áreas mais movimentadas da cidade. “A gente vai distribuir informação. Porque é disso que a gente precisa também.”
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Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/