Para combater o ranking que coloca o Brasil liderando as mortes de pessoas trans no mundo, reunimos novas narrativas 

Entre 2010 e 2018, ao menos 868 travestis e transexuais morreram no Brasil, conforme o relatório mais recente da ONG Transgender Europe (TGEu), revelando que o país é o que mais mata pessoas trans no mundo.  Os números são três vezes maiores do que os do segundo colocado no ranking, o México. (mais dados sobre podem ser acessados aqui). 

Nós acreditamos que nossas narrativas mudam o mundo e para transformar as estatísticas exclusão e violência, reunimos uma lista com 10 escritorxs e poetas trans marginais e contemporâneos, em razão do próximo dia 29 de janeiro, quando é celebrado o Dia da Visibilidade Trans. A data foi criada em 2004, na ocasião do lançamento de uma campanha nacional elaborada por lideranças do movimento de pessoas trans, em parceria com o Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde, durante o governo Lula.

Com indicações do poeta Tom Grito e da rapper Sara Donato, montamos essa lista. Pra gente, a poesia é um gênero que transcende tudo e emociona.

Tom Grito 

Poeta, LGB (T)IQ+, não binárie transmasculine
Pronomes Ele/They
Slamaster no Slam das Minas no Rio de Janeiro (RJ)

Tom Grito

Poeta,
O assunto que me traz até você
É emblemático, problemático
Estatístico e complexo
Eu sei que você sabe do que nos abala em profundo
Atento aos descasos, injustiças do mundo
E brada aos sete ventos
E aos 12 pontos cardiais
Eu sei bem que és um poeta
Um profeta dos novos tempos
Um trovador, um griot
Sei também que você fala
da dor que te atravessa
que contempla o mundo com calma
mas quer justiça às pressas
pois pra quem resiste à luta
três minutos é muito tempo
e quase nada
pra quem ainda tem tanto por sonhar
Eu conheci outros como tu
Poetas, poetas também
que não puderam mais esperar
Não os culpo, não os julgo
Este poema não é sobre eles.
E para que descansem
seus nomes não vou mencionar
Este poema até é sobre desistir
É sobre como a poesia me fez
desistir de me matar
e entender que vencer
não é sobre ganhar
E assim como os amigos que perdi
Também poetas
Eu também ando cansado
Poeta, eu sei que você sabe
que lutar às vezes cansa
Mas eu venho aqui te falar
Poeta,
Quero hoje te pedir pra seguir
Quero hoje te pedir pra acreditar
Quero te pedir pra seguir fazendo com cada um de seus poemas
Uma bolinha de papel
Pra jogar neste grande
sistema de engrenagens
Você chegou até aqui.
Porra, poeta, tá de sacanagem?
Passou sua mensagem
Veio sozinho
Sem tecnico, sem time, sem massagem
Não ganhou nenhum dinheiro
No máximo hotel, uber e ajuda pra passagem
Campeão no seu estado
Exemplo de resiliência, paciência
e coragem
Campeão no seu slam
Fortalecendo a comunidade
Explicando as injustiças
Para os de menor idade
Incentivando a leitura
Diminuindo o preconceito
Fornecendo solução
A quem pensa
que não vai ter jeito
Tornando nacional
Cada microrevolução
Tornando cada poeta
Esperança de transformação
Tornando cada ouvinte
No proximo a declamar
Tornando cada leitor
Em propagador das
Multiplas verdades
Somos muitos,
Poetas
Somos todos, poetas
Somos uma multidão
Mas de que vale o slam
Se a vida do poeta
For interrompida em vão?
Por isso eu te abraço
E te peço, poeta
Reconheça seu próprio valor
Estamos juntos
Somos um movimento
De apoio, afeto e amor
Nada vale nesse jogo
Mais que a cura
A saúde e a sua vida
Já basta o estado
que é genocida
Eu não aceito
Mais nenhum poeta
suicida
E eu não vou esperar até o setembro amarelo
Fingindo que nos outros meses está
tudo belo
Poeta, não tenha medo
Você não está sozinho
Peça ajuda,
Não se culpe
Eu também passei por esse caminho
Conte comigo,
o trajeto é longo,
Vamos juntxs nessa viagem
Já me disseram outros poetas
Já ouvi de Jazz, de Joelle, de Luz e de Guimarães Rosa essa mensagem
Por isso aqui vos repito
Poetas, “o que a vida quer da gente é
Coragem!”

À todxs poetas que pensaram em desistir,
Tom Grito
24 de dezembro de 2019

 

 

 

Valentine Pimenta

Valentine Pimenta, 22 anos. Mulher trans, negra e brasileira, a poesia de Valentine reflete a sua realidade e resistência. Recém-chegada à cena da poesia falada carioca, Valentine rapidamente se destacou, classificando-se para 12 finais em seis meses.

“A auto-estima desceu para o estacionamento subterrâneo e se perdeu
Agora é apenas a imagem distorcida do meu reflexo e eu
As pessoas dizem que eu sou bonita
Mas não é essa a imagem que eu vejo no espelho refletida
A esperança morre a cada dia
Não sei mais se um dia terei uma família
Não penso mais se um dia terei uma filha
Se você não está entendo o que eu quero te falar
Deixe que agora eu vou me apresentar
Eu sou a que está nos lençóis, nos quartos de hotel
nas noites de terça-feira frias
Mas nunca a que está no cinema do shopping
nos domingos cheios de alegria
Eu sou a que não serve para ser amada
Muitas vezes que não merece ser beijada
Eu sou a que eles querem transar na madrugada
Prazer: sou mulher trans negra
E, mais do que a porra da Barbie, sou objetificada
Meu nome é Valentine
Nunca Valentina
Se quiser me encontrar, vai me achar num slam
Nunca numa esquina”

 

 

abigail Campos Leal 

Filósofa, poeta, slamaster no Slam Marginália (batalha de poesia para pessoas trans, não binárias, queer e gênero dissidente), ativista literária, transfeminista, obesa-beleza, ética animal, preta.

memórias aquáticas

y e/u que não sou assim…
bem dos ares
tenho umas brisas
bem aquáticas
(moleculares)
meio lunares.

é que tudo que e/u tenho de querida
e/u tenho em dobro de esquecida.
y ó que na maioria das vezes
nem é por conta da bebida,
ó que fita!

memória de peixe
e/u já te entendi.
é que esque-ser
é vital pra mim.
tá meu sangue pulsendo,
meu remédio, meu veneno!
as vezes é triste,
que nem aquele presente lindo que e/u perdi,
ou o beijo da crush que e/u já nem lembro,
as vezes é alegre,
que nem o desafeto que e/u esqueci
y a cicatriz de amor que já não está mais doendo.

mas não me leve a mal,
não fique mal,
se e/u der umas sequeladas,
umas viajadas,
é que a minha alma,
escamosa y molhada,
já está acostumada
com essa minha história
de memória
frat/urada.

mas nois até tenta melhorar.
caderninho de notas y agenda,
pras ideias não voar
y pros date não furar.
mas mesmo assim,
as vezes algo escapa
y arrasta
minhas lembranças para o mar.

y ainda assim,
entre vazios y viagens,
minha memória estranha
guarda os mais bonitos detalhes.

o ângulo torto que sua boca
faz pra mandar beijinho.
nós três de biquíni
naquela piscina de Valinhos.
aquela fogueira no sítio
que era pura bruxaria.
o jeitinho que você entorta a mão
pra recitar poesia.
você gozando na minha boca
no meio daquela orgia.
ou então, de moletom preto
e martelo na mão,
nois dando fuga da polícia.
aquele amasso dahora
na transarrada do porão.
aquele picnic lindo no PJ.
a primeira vez que e/u
te vi na Dominação.
o seu olhinho puxado,
o seu moicano sapatão caxeado.
na minha casa laricando,
ou aquele ménage
com chantilly vegano.

minha memória é que nem saturno
suga tudo,
deixa nem o suco.
mas você não sabe a alegria que me dá
te ter em mim e poder te recordar.
sua luz em mim só me faz é aqueser.

mas vem cá,
combina comigo,
se tu quiser,
de pelo menos,
só hoje,
agente nunca mais
se esquecer!”

 

 

 

BIXARTE

Bixarte é poeta e cantora paraibana. Suas poesias abordam problemáticas sociais e convidam seus espectadores a refletir durante sua apresentação. A poeta é bicampeã do Slam Estadual PARAHYBA e a primeira trans não binária a ganhar duas edições consecutivas no seu Estado, representando-o no Slam BR.  Lançou os discos Revolução e Faces.

 

“ei, presta atenção
eles querem nos matar
porque sabem que bicha é revolução”

 

 

Preto Teo

Poeta, produtor e  ator da zona leste de São Paulo. Transmasculino, é slamaster no Slam Marginália (batalha de poesia para pessoas trans, não binárias, queer e gênero dissidente)

“deu meia noite a lua se escondeu
lá na encruzilhada
saudando seu tranca rua
bicha preta apareceu

me olha
vai, me olha
não, lindinho, eu tô mandando você me olhar mesmo
tô mandando você olhar pra minha carne
a ponto de enxergar os meu pêlos
enxergar a minha boca

você vê, mesmo? ou você olha um par de lábios sacodindo no ar
enquanto raciocina se é menino ou menina
essa coisa erguida na tua frente
essa coisa que no teu crivo não sabe se avalia escura o suficiente pra pôr junto daqueles que você fetichiza, estigmatiza, mutila, genocida
essa coisa que se remexe incomodando esse teu cu estático
analfabeto das múltiplas tecnologias afetivas do corpo que é livre
essa coisa que desfila na tua frente ocupando pélvis múltiplas, que geme agudo, pede tapa, pede força, dá gostoso e você o que?
você aí nessa tua punheta clandestina de banheiro público mijado fétido covil raso de outros vermes castos, batizados, purificados na missa dominical da primeira hora transmitida na rede globo

punheta essa que você vai bater mais tarde pensando em mim, fala a verdade
seria ótimo se não fosse trágico
saber que naquela fração de segundo
naquela minúscula fração de segundo que percorre o orgasmo
você escorreu sua porra pensando em me fazer sangrar
é ou não é? nos dois minutos que passaram entre tirar o seu ego pra fora da calça
e agitar ele até cuspir um catarro da sua autoestima
validada, registrada em cartório, reconhecida, legalizada
você pensou em 5 formas diferentes de me proporcionar violência
e pelo menos umas 30 de rebolar na minha prótese feito a vagabunda que você sabe que
EU SOU
eu y cada uma das fudidas que encontra na ressignificação do gesto a possibilidade de prazer, na torção da palavra, no cruzamento de afetos, na descolonização da carne, no consumo de bons ilícitos e é claro
na antropofagia dos teus

vagabundas anarquistas multiplicadoras dos gêneros, domadoras das masculinidades amedrontadas das feminilidades pagãs, brujas assassinas do desamor, alertamos:
existe muito mais coragem aqui, muito mais força, muito mais sangue, a vitória é certa.

mas você? você não ouviu nada. você sequer fala a nossa língua.”

 

 

 

Kika Sena

Alagoana que vive em Brasília (DF), se define como  a primavera! sereia vulcânica atlântica aflita. Mulher trans e travesti periférica. Performer, poeta e ousada.

“[…]
tacaram fogo nim mim
tacaram fogo no meu cabelo
tacaram fogo na minha pele
tacaram fogo nos meus olhos
tacaram fogo na minha respiração
13
tacaram fogo na minha voz
logo
não puderam me conter
poluí seus ares com meu grito
queimei suas casas caras brancas
com meu choro
queimei suas esperanças brancas
tingi tudo de preto
sou brasa forte
tição pós-apocalíptico
pior que deuses ditadores
não mexe
não mexe
não mexe
não mexe comigo não…
que à dor
à dor
à dor
à dor
eu sei reagir.”

 

 

 

Piê Poeta

Piê é mineiro de Belo Horizonte (MG), trans não binário, autista, artista, biólogo, poeta, professor escritor, ator, artista plástico e músico. Foi vencedor do Slam MG em 2018 e é o atual campeão brasileiro de slam, vencendo o SlamBR 2018 e representando o Brasil na Copa do Mundo, em Paris. Participa da Coletiva Manas, do Sarau Comum e do Coletivoz. Começou a participar de slams em 2016. Já publicou 14 zines de forma independente.

 

“Ás vezes eu sinto
como se o corpo fosse explodir.
do nada.

De tanto que
me queimam
esses olhares
incandescidos
de ódio
e
repulsa. “

 

 

Ari Ex

poeta, não binário, MC, da zona norte de São Paulo para o mundo

Aquenda

Ari Ex
sobrevivente
irmã
vou te falar
já vi nessa caminhada
vários se afastar

pagava de parceiro
fotinho junto e pá
pra sustentar imagem
e no sistema se blindar

e pros preto sobra só
fome, apanhar e pó
e os sonhos tudo ceifado
vivê levando enquadro
vai para parede ai, ô, preto safado

paz?
paz é o caraio, tio
cansei de esculacho
vai cobrar patrão
não quem ta fudido embaixo

nem vem achando que eu tenho medo de macho
com sangue no zóio, se preciso eu arregaço
não adianta passar pano
salve, Sara, aqui eu rasgo

tava mó suave
disseram que eu ameaço
agora voltei para cobrar o saldo
y saúdo as irmãs
bixas, pretas, travestis
parceiras de caminhada
nus corre até aqui

porque na fome e na brisa
muito eu aprendi
salve a sapa caminhão
e a suas parati

mas, por falar em vingança, cobrança
só ouvi ideia torta desde que era criança
agora fez piadinhas, zero saco, os macho dança

as bixas tão marginalizadas
mas organizadas
cansada de dor e de ser criminalizada
nóis só queria sair e dar umas risadas
mas, quem é que dorme em paz
com João Victor e uma Dandara
mortos a cada dia nas calçadas

bixa não é piada
a vida é engraçada
com tanta ideia torta
eu fiquei até passada

por dinheiro e poder
várias casacas viradas
eu tô virada, viada
irada

com tanta ideia torta correndo na minha quebrada
os verme de boa e as mina sendo abusada
ameaçada
processada

brankkko dizendo que o racismo acabô
mas eu passei de kepe e o cuzão logo gelou
primeiro atravessou e depois ainda olhou
por que ensinam desde cedo que o crime é que tem cor
povo preto tá cansado de todo esse horror

as bixa de bode começando a requisitar os agressor
as mina começando a subir estuprador
arrancar sangue se preciso, até nos dar nosso valor

dinamitá esse cis-tema
em luto y luta por amô

é
pode rir, mas não desacredita não, senhor
é as mina, as bixa e as preta
que tão tacando o terror

 

 

Paulínio Flóki

 

poeta, não binário, MC, paulistano

Agora eu tenho 19 anos

falam que eu estou confusa
mais confuso é quem quer me dar beijo
mas não dá, porque se assusta

eu beijo mina, diva, bixa, viado e sapatão
eu não tenho lista de pré-requisito
eu não tenho um padrão

(…)

eu posso até ter falado muito
me embolado
ter falado demais
mas é que eu só comecei a falar
três anos atrás

 

 

H TA 

poeta, trans, cantora, da zona leste de São Paulo, resistente

macho alfa

espancada
invadida
desfigurada

pois é

quem nos deseja
também nos ataca

no Brasil, transfobia é o que mais mata
nossa luta é antiga e somos esquecidas

 

 

•  •  •  •  •

O Margens se junta às reflexões sobre a data e a existência da população tarns para destacar outros aspectos da vivência de importantes poetas trans que se encontram à margem da heterossexualidade, do mercado editorial ou da existência limitante de caber num rótulo.

Fonte: https://margens.com.br/