"Só teremos a inibição dessas atitudes quando tivermos a incorporação do crime de homotransfobia nos protocolos policiais", diz especialista da FGV.

 

Em junho do ano passado, em uma decisão histórica, o STF (Supremo Tribunal Federal) equiparou comportamentos homofóbicos e transfóbicos ao crime de racismo. Havia a expectativa que a decisão da corte não só pudesse pressionar o Congresso a criar legislação específica sobre, mas também alterasse o quadro de preconceito e violência dirigidos a esta população com a possibilidade de denúncia. 

 

No entanto, um ano e quatro meses depois, pouca coisa mudou na prática. Especialistas ouvidos pelo HuffPost Brasil dizem que a criminalização ainda não saiu efetivamente do papel e que ainda há subnotificação. A aplicação da decisão do STF ainda apresenta caráter, sobretudo, simbólico.

 

“A decisão tem um papel educativo no sentido de que mostra para a sociedade que a homotransfobia é um crime sério e não pode ser praticado”, afirma Thiago Amparo, advogado e professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas). 

 

“Eu acho que só teremos, de fato, a inibição dessas atitudes e a consolidação da decisão do STF quando tivermos a incorporação do crime de homotransfobia nos protocolos policiais. Isso não acontece e o que temos, na verdade, é uma grande subnotificação destes crimes”, pontua. 

 

Só que o mau exemplo tem vindo, inclusive, de autoridades. Recentemente, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, definiu o “homossexualismo” como “opção” e afirmou que ele é fruto de “famílias desajustadas”. A declaração do integrante do governo Bolsonaro foi dada ao jornal O Estado de S. Paulo.

 

Na semana passada, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pediu ao Supremo a abertura de um inquérito para apurar se o ministro cometeu o crime de homofobia. 

 

“A decisão do STF pode ser aplicada aqui porque ele não só associou a homossexualidade a famílias desajustadas, como chamou toda essa população de doente, cometendo um erro crasso. Há 30 anos a OMS já disse, em documentos oficiais, que a homossexualidade não é doença”, analisa Ananda Puchta, advogada e presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB no Paraná.

 

“Ao fazer uma declaração pública dessa ordem, ele já está incorrendo em preconceito e discriminação. E ao dizer que os homossexuais são assim porque têm famílias desajustadas e porque ‘optam’ ser quem são é também um não entendimento da natureza humana”, diz a advogada. “Investigações como essas, de uma autoridade do governo, são positivas e podem ter um efeito prático por provocar o Estado a agir da forma correta.”

 

Recentemente, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, definiu o “homossexualismo” como “opção” e afirmou que ele é fruto de “famílias desajustadas”.

No documento, o procurador responsável sugere que o ministro preste depoimento à Polícia Federal. O relator do caso no STF é o ministro Dias Toffoli. Cabe ao magistrado decidir a abertura do inquérito.

 

No entendimento de Medeiros, a afirmação do titular da Educação pode caracterizar uma infração penal ao induzir ou incitar a discriminação ou preconceito, conforme decidido pelo STF em 2019.

 

Para Humberto Jacques de Medeiros, o ministro “proferiu manifestações depreciativas a pessoas com orientação sexual homoafetiva”, com afirmações “ofensivas à dignidade do apontado grupo social”. 

 

Declarações semelhantes à de Ribeiro já foram dadas por outros integrantes ou apoiadores do governo. O combate à pedofilia e à chamada “ideologia de gênero” é uma das bandeiras da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.

 

Pastor da Igreja Presbiteriana, Milton Ribeiro é teólogo, advogado e ex-vice-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sua indicação ao governo foi apoiada pela Anajure (Associação dos Juristas Evangélicos), instituição também ligada à ministra e pastora Damares.

 

Parlamentares atuantes na promoção de direitos da população LGBT já tinham pedido que o caso fosse investigado. O deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) pediu ao Ministério Público Federal que fosse instaurada uma ação penal contra o ministro. 

 

O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) entrou com uma representação no STF e a pré-candidata a vereadora pelo PSOL em São Paulo Erika Hilton entrou com uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) pedindo o impeachment do ministro.

 

Após o pedido de investigação, Milton Ribeiro divulgou uma nota em que afirma que não pretendia “discriminar ou incentivar qualquer forma de discriminação em razão de orientação sexual” e pede “desculpas àqueles que se sentiram ofendidos”.

 

De acordo com Ribeiro, a fala foi “interpretada de modo descontextualizado” e trechos da entrevista “retirados de seu contexto e com omissões parciais, passaram a ser reproduzidos nas mídias sociais, agravando interpretação equivocada e modificando o real sentido daquilo que se pretendeu expressar”.

 

População participa da Parada LGBT do Rio de Janeiro, em 2019.

A decisão do STF diz que crimes de discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans devem ser equiparados ao crime de racismo até que o Congresso Nacional crie legislação específica sobre esse tipo de violência. 

 

A pena é de até 3 anos e o crime é inafiançável e imprescritível, como o racismo. Até então, crimes motivados por orientação sexual ou identidade de gênero não tinham nenhuma tipificação penal específica no Brasil. 

 

Segundo o HuffPost apurou, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) não tem informações específicas sobre processos em que a lei do racismo foi aplicada diretamente no entendimento do STF. 

 

Isso porque todas as informações disponibilizadas no sistema de Justiça referentes ao tema, a partir da decisão do STF, são classificadas como racismo, e não é especificado, por exemplo, se é um caso de preconceito por orientação sexual ou identidade de gênero.

 

Em 2019, ano da decisão do Supremo, processos por crime de racismo aumentaram 69%, segundo o CNJ. Foram 1.793 casos, contra 1.063, em 2018. Destes casos, não são especificados os que podem ser sobre homofobia.

 

O órgão é cobrado por entidades do movimento LGBT para que crie uma norma que regulamente a ação das delegacias pelo País. O CNJ afirma que ”não tem atuação junto às polícias, apenas aos órgãos do Poder Judiciário”.

 

Como a legislação uniformiza os crimes de racismo, buscar os dados nas Secretarias de Segurança Pública, que são as responsáveis por implementar especificações no registro do boletim de ocorrência, é o caminho mais eficaz tanto para ter um retrato das notificações deste tipo de crime, quanto para saber se já houve algum tipo de julgamento após a decisão do Supremo no País. 

 

Segundo a presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB no Paraná, foi implementado no estado um campo específico no boletim de ocorrência que permite que esses casos sejam diferenciados no momento do atendimento nas delegacias.

 

“Mas não são todos os estados que têm esse comportamento. A gente só consegue olhar os [casos] julgados, de acordo com os que foram colocados na ponta. Ou seja, no boletim de ocorrência e na investigação da polícia civil. Por isso, cada estado tem a prerrogativa de fazer a implementação da forma que achar melhor.”

 

“O que poderíamos ter é uma unificação desses dados pelo sistema de segurança pública. E uma uniformização de como declarar um crime de LGBTfobia”, diz Puchta, que fez sustentação oral no plenário do Supremo como amicus curiae (amigos da corte) no julgamento sobre a criminalização.

 

Os dados mais recentes sobre a notificação dos crimes de homofobia pelo País foram divulgados pelo Jornal Nacional, há duas semanas. A equipe de reportagem realizou levantamento junto às Secretarias de Segurança Pública dos estados, por meio da Lei de Acesso à informação.

 

Até o momento, segundo a reportagem, 9 estados informaram que não tem dados a respeito porque não conseguem separar esses dados de outras ocorrências: Maranhão, Tocantins, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rondônia e Sergipe.

 

Outros dois estados, Bahia e Pernambuco, deram respostas inconclusivas. Apenas outros 15 estados e o Distrito Federal informaram as estatísticas ao jornal. Juntos, eles tiveram 161 casos registrados em delegacias. A Paraíba, segundo a reportagem, teve o maior número de casos: 73.

 

Thiago Amparo explica que, mesmo com a decisão do Supremo, há pouco mais de um ano, as dificuldades para fazer valer um direito já estabelecido persistem. Entre elas, há o despreparo das instituições e do Estado. 

 

“Existe um papel limitado do poder público. Seria preciso ter a coleta de dados, que todos os estados tivessem delegacias especializadas, que o Ministério da Justiça tirasse do papel o Pacto Nacional de Combate à LGBTfobia, por exemplo.”

 

O Pacto Nacional de Combate à LGBTfobia, mencionado pelo especialista, foi lançado pelo governo federal, então sob comando de Michel Temer, em 2016. O projeto tem como intenção fortalecer ações regionais de enfrentamento à violência contra esta população. Até 2018, apenas 11 estados aderiram. 

 

Segundo Marina Reidel, mulher trans e diretora de promoção de direitos LGBT do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, o Pacto está sendo remodelado. Ainda não há prazo para que saia do papel.

 

″Ele será redesenhado porque a gente precisa ter o olhar da Justiça e da segurança pública em conjunto e estamos em diálogo interministerial para determinar as competências dos estados”, disse ao HuffPost, em junho.

 

Em 2019, o Disque 100, canal oficial de denúncias do governo federal, recebeu 846 denúncias em 2019, frente a 1685 em 2018, cerca de 49,8% a menos.

Diante dos dados insuficientes sobre estes crimes e da eventual impossibilidade da aplicação da lei de racismo para esses casos, a indenização por danos morais pode ser outro exemplo de punição para esta conduta, dizem os especialistas.

 

Na última sexta-feira (2), a Justiça do Rio de Janeiro determinou, por meio de uma Ação Civil Pública proposta pela Defensoria do Estado que o pastor e ex-secretário de Assistência Social e Direitos Humanos do estado, Ezequiel Cortaz Teixeira, pague uma indenização de R$ 100 mil em benefício da população LGBT do Rio. 

 

″É notória a violação e os prejuízos maiores no que se refere à imagem da população LGBTI+ fluminense, salientado-se a perplexidade do conjunto das declarações da parte do réu, visto que ocupava à época dos fatos um cargo política de grande relevância social”, disse o juiz Sandro Lucio Barbosa Pitassi na decisão.

 

Em 2016, quando estava à frente da secretaria, Teixeira afirmou publicamente que acreditava na cura gay, comparando a homossexualidade a doenças graves como Aids e câncer. A indenização por danos morais deverá ser revertida para ações do programa Rio Sem Homofobia, do governo do estado. 

 

Ezequiel também será obrigado a fazer divulgação do inteiro teor da sentença em veículo de grande circulação no Estado do Rio, no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária que pode variar de R$ 500 a R$ 100 mil. 

 

“Essa sentença tem grande relevância e valor educativo, na medida em que evidencia que discriminar pessoas LGBT é conduta inaceitável, que deve ser repudiada com os rigores da lei”, afirma a defensora pública Letícia Furtado, coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e dos Direitos Homoafetivos (Nudiversis) da DPRJ.

 

LGBTfobia no Brasil

 

Em 2019, o Ipea incluiu pela primeira vez no Atlas da Violência as violações contra a população de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais. A avaliação é de que a situação tem se agravado e que a população sofre de invisibilidade na produção oficial de dados e estatísticas.

 

Foram usados dados das denúncias registradas no Disque 100 e de registros administrativos do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) do Ministério da Saúde

 

O número de homicídios denunciados ao Disque 100 subiu de 5 em 2011 para 193 em 2017. Já as lesões corporais aumentaram de 318 em 2016 para 423 em 2017, passando por um pico de 783 casos em 2012.

 

Já os dados do Ministério da Saúde apontam que, entre 2015 e 2016, aumentou o número de episódios de violência física, psicológica, tortura e outras violências contra bissexuais e homossexuais, sendo a maioria das vítimas solteiras e do sexo feminino.

 

Canal oficial do governo, o Disque 100 registrou diminuição expressiva do número de denúncias sobre violência contra essa população em todo o Brasil. Em 2019, o canal recebeu 846 denúncias em 2019, frente a 1685 em 2018, cerca de 49,8% a menos. A limitação do alcance do sistema do Estado e a subnotificação é admitida pelos próprios integrantes da administração federal.

 

Por esse motivo, os levantamentos do Grupo Gay da Bahia, iniciados na década de 1980, se tornaram referência. Em 2019, o grupo registrou 329 mortes violentas de pessoas LGBT no País. Entre elas, 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%). 

 

Em relação aos anos anteriores, observou-se, assim como no Disque 100, uma redução de casos. O ano recorde foi 2017, com 445 mortes, seguido em 2018 com 420. Há uma  diminuição de 26% frente a 2017 e 22% em relação a 2018.

 

fonte: Huffpostbrasil.com