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O trabalho infantil fez parte da realidade de 1,9 milhão de crianças e adolescentes entre 5 a 17 anos em 2022, o que representa 4,9% da população brasileira nessa faixa etária. O número de crianças e adolescentes nessa situação vinha caindo desde 2016, chegando a 1,8 milhão em 2019, mas no ano passado o contingente voltou a crescer. As informações são da  Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na quarta-feira (20/12).

A secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Katerina Volcov, aponta dois fatores que podem explicar o crescimento da proporção de crianças e adolescentes que exercem trabalho infantil.

“A redução dos investimentos em políticas sociais e básicas e a pandemia prejudicaram centenas de milhares de famílias”, afirma.

Segundo a PNAD, entre aqueles que estavam em trabalho infantil em 2022, 1,4 milhão estavam ocupados em atividades econômicas, enquanto 467 mil produziam para consumo próprio. As atividades econômicas envolvem algum trabalho na semana de referência que seja remunerado com dinheiro, produtos ou mercadoria ou, ainda, sem remuneração, quando ajudam na atividade econômica de familiar ou parente.

A produção para consumo próprio é responsável por gerar bens e serviços para uso exclusivo dos moradores do domicílio. Algumas atividades relacionadas ao consumo próprio são o cultivo, a pesca, a caça, a criação de animais, ou construção e reparos no próprio domicílio.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho infantil é “aquele que é perigoso e prejudicial para a saúde e o desenvolvimento mental, físico, social ou moral das crianças e que interfere na sua escolarização”.

 Estatuto da Criança e do Adolescente  (ECA) proíbe o desempenho de qualquer atividade laboral por menores de 16 anos, podendo o adolescente trabalhar como aprendiz a partir dos 14 anos. Mas o que consta na lei é bem diferente da realidade, evidenciada pela pesquisa.

 

Leia, a seguir, cinco destaques da pesquisa sobre o cenário do trabalho infantil no Brasil: 

 

1) O trabalho infantil cresceu 7% no Brasil entre 2019 e 2022  

Enquanto o número de crianças e adolescentes com 5 a 17 anos de idade caiu 4,1% entre 2016 e 2019, o contingente em situação de trabalho infantil diminuiu ainda mais (-16,8%). Já entre 2019 e 2022, essa população continuou a decrescer (-1,4%), mas a proporção aumentou 7%, passando de 1,758 milhão em 2019 para 1,881 milhão no ano passado.

A secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Katerina Volcov, aponta a redução dos investimentos em políticas sociais e a pandemia de covid-19 como dois fatores que ajudam a explicar o crescimento do contingente de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. 

De acordo com Katerina, o Brasil dispõe de uma legislação em defesa e promoção dos direitos das crianças e adolescentes, que é um exemplo mundial, assim como existem políticas, mas há lacunas para o funcionamento.

“Para que essas políticas públicas funcionem, principalmente, nas áreas da assistência social, de educação e de geração de renda é necessário e fundamental que os governos municipais, estaduais e federal invistam recursos para essas mesmas políticas”, pontua.

O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), criado em 1996 e que propõe um conjunto de ações para retirar crianças e adolescentes do trabalho precoce, é uma das ações que na avaliação da secretária-executiva precisa ser retomada.

 

2) Mais da metade dos trabalhadores infantis tinham 16 e 17 anos de idade

Mais da metade (52,5% ou 988 mil) das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no período que compreende a pesquisa tinham de 16 a 17 anos. Ao passo que a faixa etária de 14 a 15 anos era de 23,6% ou 444 mil pessoas e de 5 a 13 anos (23,9% ou 449 mil).

De 2016 a 2022, o percentual de crianças de 5 a 13 anos em trabalho infantil ficou estável. Na faixa de 16 a 17 anos, porém, cresceu 1,4 ponto percentual entre 2019 e 2022.

Entre os que estavam inseridos em atividades econômicas, o predomínio era de adolescentes com 16 e 17 anos de idade (60,6% ou 858 mil pessoas). Entre os que produziam para apenas o próprio consumo, havia maior proporção do grupo de 5 a 13 anos de idade (47,5% ou 222 mil pessoas).

Outro dado levantado pela PNAD é que  32,4% dos adolescentes de 16 e 17 anos exerciam o trabalho infantil por 40h semanais ou mais, tendo a jornada mais longa entre todas as faixas etárias. 

Duas em cada cinco (40,6%) crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil trabalhavam até 14 horas semanais e 14% trabalhavam de 25 a 39 horas por semana. Uma em cada quatro (24,9%) dessas crianças trabalhavam por 15 e 24 horas semanais e uma em cada cinco (20,5%), por 40 horas ou mais.

“Em vista dos dados, vemos que são as e os adolescentes os mais afetados pelo trabalho infantil. O Bolsa Família oferece R$150,00 para cada criança de até 6 anos e apenas R$ 50,00 para aqueles (as) com idade entre 7 e 18 anos.  Nós precisamos que todas as faixas etárias, de 0 a 18 anos, pertencentes às famílias que recebem o Bolsa Família recebam o mesmo valor”, defende Katerina Volcov.

 

3) Meninos negros são maioria e meninas ganham menos 

Crianças e adolescentes do sexo masculino representavam pouco mais que a maioria (51,1%) da população de 5 a 17 anos do país e 65,1% daqueles que estavam em trabalho infantil.

O contingente de meninos pretos e pardos  em situação de trabalho infantil (66,3%) superava o percentual desse grupo no total de crianças e adolescentes do país (58,8%). Já a proporção de brancos no trabalho infantil (33%) era inferior à sua participação no total de crianças e adolescentes (40,3%).

Em 2022, o rendimento médio real das pessoas de 5 a 17 anos que realizavam atividade econômica em situação de trabalho infantil foi estimado em R$ 716.  Entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, os meninos tinham rendimento de R$ 757, enquanto as meninas recebiam 84,4% desse valor (R$ 639). 

A disparidade racial também é observada na remuneração. Entre as crianças e adolescentes em trabalho infantil com remuneração, as pretas ou pardas recebiam, em média, R$ 660 e as brancas, R$ 817.  

Os trabalhadores infantis estudantes recebiam, em média, R$ 671, enquanto o rendimento dos que não frequentavam escola chegava a R$ 931. 

 

4) Piores formas de trabalho infantil afetam 756 mil 

Em 2022, o Brasil tinha 756 mil crianças e adolescentes com 5 a 17 anos de idade nas piores formas de trabalho, que envolviam risco de acidentes ou eram prejudiciais à saúde. Isso equivale a 46,2% do 1,6 milhão de crianças e adolescentes que realizavam atividades econômicas. 

Essa proporção caiu de 51,3% em 2016, para 45,8%, em 2019, mas voltou a subir e chegou em 46,2% em 2022. O envolvimento de menores de 18 anos em tais atividades é proibido pelo decreto 6.481, de 12 de junho de 2008.

As piores formas de trabalho infantil são uma classificação adotada por vários países para definir as atividades que mais oferecem riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e dos adolescentes, determinadas na Lista TIP, como o trabalho doméstico.

A metodologia utilizada foi elaborada com o apoio da OIT, do Ministério da Cidadania, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), do Ministério Público do Trabalho e do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, entre outras instituições.  

 

5) Crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil frequentam menos a escola 

Cerca de 97,1% da população de 5 a 17 anos eram estudantes, mas a proporção caia para 87,9% entre as crianças e adolescentes dessa faixa etária em situação de trabalho infantil.

Quase todos (98,5%) no grupo etário dos 5 aos 13 anos frequentavam a escola, assim como os que estavam em situação de trabalho infantil nessa faixa etária (98,5%). Já na faixa dos 14 aos 15 anos, 98,5% frequentavam escola, mas essa taxa era um pouco menor (96,0%) entre os trabalhadores infantis das mesmas idades.

O grupo etário com 16 e 17 anos mostrou uma diferença maior: 89,4% da população com 16 e 17 anos frequentavam escola, mas apenas 79,5% dos adolescentes nessas idades e em situação de trabalho infantil seguiam estudando.

A secretária-executiva do FNPET, Katerina Volcov, chama atenção ainda para a situação das crianças e adolescentes que vivem nas áreas rurais, bem como no Norte do país, e carecem de acesso à educação.

“Precisamos de mais escolas nessas localidades e infraestrutura adequada para o CRAS, o CREAS e os conselhos tutelares. É essencial que os governos estejam articulados a fim de que a rede de proteção que faz o trabalho no território esteja devidamente equipada e com a infraestrutura necessária para poder, de fato, averiguar e colocar essa criança ou adolescente protegidas da situação de trabalho infantil”.

 

Fonte: livredetrabalhoinfantil.org.br - Educação e Território

Vacina contra a doença foi aplicada pela 1ª vez no Brasil há três anos

 

Há três anos, no dia 17 de janeiro de 2021, foi vacinada a primeira brasileira contra a covid-19. A enfermeira Mônica Calazans recebeu a dose da Coronavac, imunizante produzido pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. Atualmente, o desafio é aumentar a cobertura vacinal do público considerado de risco para a doença, conforme avaliam especialistas ouvidos pela Agência Brasil.

O médico infectologista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ressaltou que, embora a pandemia de covid-19 tenha sido “debelada”, o vírus continua circulando e ainda há mortes pela doença. “Continuam acontecendo mortes pela covid-19. Então uma questão importante é atualizar o calendário vacinal”, alertou.

Durante a pandemia, segundo avaliação do médico, o país passou por momentos muito críticos, como o comportamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e representantes do governo federal, que se posicionavam de forma negacionista e antivacina. Por outro lado, Vecina apontou como positiva a atuação por parte da rede periférica de serviços de saúde pública para conseguir avançar na imunização da população.

“Principalmente a atenção primária [de saúde], que se dispôs e conseguiu avançar muito dentro da possibilidade de vacinação. Apesar da campanha contra, apesar dos negacionistas, nós conseguimos controlar a pandemia graças à expansão da vacinação”, disse.

Primeira pessoa vacinada contra a covid-19 no Brasil, a enfermeira Mônica Calazans contou à Agência Brasil que aquele momento não sai de sua mente. “Eu lembro do momento com muita emoção, me traz a memória [de que] naquele momento a gente estava saindo de uma situação por conta da vacina. Então me traz também muita alegria porque eu estava mostrando para os brasileiros que o que nós temos de seguro para enfrentar a covid-19 é a vacina”, disse.

“Eu entendo que estava representando os brasileiros, a gente não tinha esperança de nada. E, no dia 17 de janeiro de 2021, eu consegui trazer um pouco de esperança no coração brasileiro. Foi uma questão de muita alegria, emoção misturada com esperança. Foi um fervilhão de sentimentos naquele dia”, acrescentou a enfermeira.

Ela lembra de situações no transporte público ao comparar o período mais crítico da pandemia com o momento atual. “Naquele momento tão crucial, tão traumático, as pessoas tinham medo até de sentar ao seu lado [no transporte], as pessoas não se aproximavam. E hoje não”.

“Hoje você consegue andar sem máscara, você consegue ver o sorriso das pessoas, você pega na mão das pessoas, porque anteriormente você não pegava na mão de ninguém”, comparou. Apesar disso, ela destaca a importância de se manter a vacinação contra a covid-19 ainda hoje.

 

Vacinação infantil

O infectologista Gonzalo Vecina Neto ressaltou que atualmente há uma baixa cobertura de vacinação de crianças. “A mortalidade está muito elevada nas crianças abaixo de 5 anos por causa da baixa cobertura”, acrescentou. As variantes que estão circulando atualmente têm uma grande capacidade de disseminação, mas uma mortalidade mais baixa. No entanto, a doença pode ainda acometer de forma grave especialmente os grupos que têm menos defesas imunológicas.

Tais grupos são os idosos, crianças pequenas, gestantes e portadores de comorbidades. “Esses grupos têm uma fragilidade do ponto de vista de enfrentar imunologicamente o invasor no corpo, por isso eles se beneficiam da vacina. Particularmente esses mais frágeis, ao terem a doença, tem uma maior possibilidade de hospitalização e de morte”, explicou Vecina.

De acordo com Rosana Richtmann, infectologista do Instituto Emílio Ribas, a tendência é que se faça a vacinação anual especialmente para os grupos de maior risco, utilizando vacinas que consigam dar proteção contra as novas variantes do vírus causador da doença.

“O que a gente aprendeu com a covid-19 é que o vírus vai tendo pequenas mutações, ele vai mudando a sua genética, vai escapando da nossa imunidade. Isso é um processo contínuo. Então, muito mais importante do que você me contar quantas doses de vacina de covid-19 você tomou nesses últimos três anos, a minha pergunta seria quando foi a sua última dose e qual vacina você tomou. Se você tiver uma dose atualizada, é suficiente”, explicou.

A infectologista destacou que, nos Estados Unidos, já está disponível a vacina mais atualizada, uma monovalente que combate a variante XBB da doença. “O Brasil está usando a bivalente [que combate cepas anteriores], dentro do país é a mais atual, mas não é a mais atualizada disponível no mundo. A gente julga que, neste momento, seria importante o Brasil adquirir essa vacina monovalente atualizada no lugar da bivalente”, defendeu.

Para Richtmann, um dos principais desafios a serem enfrentados neste momento é justamente a vacinação de crianças pequenas, a partir de seis meses de idade, considerado grupo de risco para a doença. Ela ressalta que adultos e crianças maiores chegaram a ter a doença ou tomar a vacina, o que garante alguma proteção contra o vírus.

“Há um desafio para vacinar essa população, porque é uma população virgem de proteção, eles não têm proteção nem adquirida, nem através da vacinação”, disse. Ela reforça a importância de a vacinação de crianças contra a covid-19 fazer parte do Programa Nacional de Imunizações (PNI). “No ano passado, tivemos 135 mortes de crianças, é um número que poderia ter sido prevenido através de vacinação”, acrescentou.

 

Ministério da Saúde

A Campanha Nacional de Vacinação contra a covid-19 no Brasil começou em 18 de janeiro de 2021, após a aprovação para uso emergencial das vacinas Sinovac/Butantan e AstraZeneca/Fiocruz, no dia anterior, informou o Ministério da Saúde (MS), acrescentando que o êxito da campanha foi possível mediante o envolvimento das três esferas de governo.

Até o momento há cinco vacinas autorizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e em uso no Brasil: duas com autorização para uso emergencial (CoronaVac/Butantan e Comirnaty bivalente Pfizer) e três com registro definitivo (AstraZeneca/Fiocruz, Janssen-Cilag e Comirnaty Pfizer/Wyeth). No país, as vacinas covid-19 continuam disponíveis e são recomendadas para a população geral a partir dos 6 meses de idade.

“Em fevereiro de 2023, juntamente com o lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação, foi iniciada a estratégia de vacinação para grupos prioritários com a vacina bivalente e com a recomendação de dose de reforço para essa população a partir de 12 anos. Ainda em 2023, essa estratégia foi incorporada ao Calendário Nacional a vacinação para o público infantil de 6 meses a menores de 5 anos”, disse a pasta, em nota.

Na avaliação de cobertura vacinal, para o esquema primário de duas doses, com as vacinas monovalentes, o MS registra uma cobertura de 83,86%, desde o início da campanha em janeiro de 2021 até janeiro de 2024.

“É importante destacar que, à medida que forem obtidas novas aprovações regulatórias e as vacinas adaptadas às novas variantes, o Ministério vai adequando as necessidades assim que os imunizantes estiverem disponíveis no país por meio do Programa Nacional de Imunizações (PNI), seguindo as recomendações e atualizando os esquemas de vacinação”, diz a nota.

 

Fonte Agência Brasil

Cidade de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, foi uma das mais atingidas pelo alto volume de chuvas do fim de semana - Mauro Pimentel/AFP

Bairros ficaram alagados; 12 pessoas morreram e duas estão desaparecidas

 

 

As fortes chuvas que atingiram a região metropolitana do Rio de Janeiro no último fim de semana e deixaram 12 pessoas mortas, segundo informações do governo do estado, trouxeram novamente para o debate político o tema do racismo ambiental. O termo repercutiu e foi bastante procurado na internet após ser usado pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, em declaração na rede social X sobre o temporal que atingiu seu estado de origem. 

Rita Maria da Silva Passos, integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e pesquisadora e doutoranda do Instituto de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sintetiza o significado da expressão utilizada pela ministra: um conjunto de injustiças que atingem a população mais vulnerável.

“O conceito de racismo ambiental fala justamente sobre práticas, políticas, que afetem direta ou indiretamente povos de cor com relação a sua qualidade de vida ambiental. Ou seja, você precisa zelar pela vida de pessoas que estão em áreas mais vulnerabilizadas, mais suscetíveis a enchentes, alagamentos, remoções… Então, você precisa estar mais atento a políticas que sejam benéficas a essas populações que, historicamente, são excluídas. Ou seja, há um histórico de políticas nocivas à qualidade de vida de pessoas não brancas. E não falamos só de políticas públicas, mas também políticas empresariais”, explica Passos.

Por causa do alto volume de chuvas no Rio de Janeiro, que já eram previstas pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), rios transbordaram e vários bairros ficaram inundados. De acordo com o Inmet, o índice acumulado de chuva na Vila Militar, zona oeste da cidade, no domingo (14) foi de quase 152 milímetros. O Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil informaram que duas pessoas seguem desaparecidas.

O Rio Botas, localizado em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, ficou obstruído pelo lixo. Uma mulher desapareceu no local. O governador Cláudio Castro (PL) chegou a cobrar participação da população na luta contra os alagamentos. Porém, Passos argumenta que a responsabilidade não é só dos moradores, que dependem de ações do governo, como boas políticas de coleta de resíduos e saneamento.

“Você não pode responsabilizar a pessoa por uma prática ou uma ação que é de uma instância política governamental. Então, não dá pra você individualizar. A gente tem um processo político hoje em dia de individualizar e responsabilizar o indivíduo, mas na verdade, o que a gente precisa responsabilizar é a política ou a ausência de política. Ou seja, a ausência de coleta de lixo regular é o que acomete essas populações”, declara a pesquisadora.

Um pouco abaixo do nível do mar, os rios da Baixada Fluminense podem sofrer mais com riscos de transbordamentos quando o volume de chuva é grande e se a maré estiver alta. Mas isso não justifica deixar que tragédias aconteçam, segundo Passos. 

“O que a gente tinha que ter era políticas de mitigação e adaptação climáticas e ambientais para que essas pessoas não sofressem com isso. Porque se a gente tem isso na Baixada [Fluminense], na Lagoa Rodrigo de Freitas, que tem uma lagoa gigante, não acontece a mesma coisa. Ou seja, existe uma desigualdade aí no tratamento dessas pessoas”, denuncia.

A entrevista completa, feita pelo apresentador Kaique Santos, está disponível na edição desta terça-feira (16) do Central do Brasil, no  no canal do Brasil de Fato no YouTube..

 

Fonte: Brasil de Fato

Governo de Tarcísio de Freitas pretende privatizar a Sabesp apesar de protestos contrários à medida - Elineudo Meira

A privatização de empresas públicas está entre as principais causas do aumento da desigualdade social no mundo, de acordo com um estudo realizado pela organização internacional Oxfam. O trabalho foi divulgado na segunda-feira (15) e indica que a venda de companhias estatais faz com que empresários fiquem cada vez mais ricos enquanto lucram prestando serviços cada vez mais caros à população cada vez mais pobre.

A Oxfam dedica-se há anos a levantar dados sobre o aumento da discrepância social entre ricos e pobres no mundo. A entidade divulga anualmente um relatório sobre o assunto junto com o início do Fórum Mundial Econômico de Davos, na Suíça, onde lideranças políticas e empresariais de todo mundo reúnem-se para tratar desse e de outros assuntos.

 

Neste ano, o relatório da Oxfam foi intitulado de “Desigualdade S.A.”. Está focado em explicar como grandes empresas estão entre as grandes responsáveis pelo crescimento forte e constante da desigualdade mundial.

Segundo a Oxfam, a riqueza dos cinco mais ricos do mundo dobrou desde 2020. Ao mesmo tempo, 60% da população global – cerca de 5 bilhões de pessoas – ficou mais pobre. Ainda de acordo com a entidade, isso aconteceu, em parte, por conta das privatizações.

No Brasil, há políticos, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que ainda defendem esse tipo de venda do patrimônio público, aliando-se ao interesse de grandes companhias interessadas em expandir seus negócios. Para a Oxfam, o resultado dessas operações é uma maior concentração de renda.

“Uma forma importante – embora subestimada – pela qual o poder das grandes empresas fomenta a desigualdade é a privatização dos serviços públicos. Em todo o mundo, esse poder está pressionando incessantemente o setor público, mercantilizando e, muitas vezes, segregando o acesso a serviços vitais como educação, água e saúde, enquanto obtém enormes lucros bancados pelos contribuintes e destrói a capacidade dos governos de fornecer o tipo de serviços públicos universais e de alta qualidade que poderiam transformar vidas e reduzir a desigualdade”, diz o relatório.

“A privatização pode funcionar bem para os ricos, incluindo as elites econômicas e políticas, que podem se beneficiar financeiramente, bem como quem tem recursos suficientes para pagar por serviços privados caros. No entanto, um robusto conjunto de evidências demonstra que, em muitos casos, a privatização provoca exclusão, empobrecimento e outras consequências prejudiciais”, acrescenta.

 

‘Privatização moderna’

A Oxfam ressalta que o interesse em privatizações é enorme já que “elas movimentam trilhões de dólares e representam imensas oportunidades de geração de lucros”. Instituições como o Banco Mundial, que em tese atua para reduzir a pobreza e desigualdade, seguem apoiando esse tipo de negócio, que hoje acontece de diversas formas: “integração deliberada do setor empresarial em políticas e programas públicos, terceirizações e parcerias público-privadas (PPPs)”, enumera.

“Muitos sistemas contemporâneos [de privatização], como as PPP e a terceirização, podem ser altamente dispendiosos para o Estado e exigir que os contribuintes garantam os lucros do setor privado. Os riscos fiscais das PPPs são particularmente elevados, o que lhes valeu o apelido de ‘bombas-relógio orçamentárias’. O fato desses sistemas representarem frequentemente um fardo pesado para os cofres públicos e geralmente custarem mais do que os serviços públicos coloca em questão os argumentos de que a privatização é necessária porque o setor público carece de recursos suficientes”, escreve a Oxfam, sobre as novas formas de privatização.

Mauricio Weiss, economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acrescenta que a situação financeira dos estados segue como o maior argumento em favor das privatizações. Segundo ele, inclusive no Brasil, o setor empresarial pressiona os governos por corte de gastos e controle do orçamento público. Isso, na verdade, inviabiliza o funcionamento de estatais e a prestação de um serviço de qualidade. Resta ao Estado, portanto, privatizar.

“O que o mercado financeiro fala? Que o Estado tem que cortar os gastos. Se há corte de gastos, o governo reduz o investimento, inclusive nas estatais. Elas param de ter eficiência. Vira um argumento para privatizar”, descreve Weiss. “O privado faz a demonização das estatais porque eles querem privatização a preço baixo no mercado.”

Segundo Weiss, esse discurso de austeridade pautou privatizações de Bolsonaro. Empresas como a Eletrobras tiveram seu controle vendido por valores questionáveis. Empresários ganharam espaço em setores essenciais e com pouca concorrência – no caso, energia elétrica –, demitiram trabalhadores e aumentaram os ganhos da diretoria.

A Eletrobras, por exemplo, lançou um plano de demissão voluntária (PDV) após a privatização para desligar mais de 2 mil trabalhadores. Ao mesmo tempo, a empresa aumentou em 3.500% no salário de seus administradores.

 

Desigualdade tributária

Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, diz que o fortalecimento do orçamento público é fundamental para evitar as privatizações e reduzir a desigualdade. Isso ocorre basicamente cobrando mais impostos dos ricos para oferecer melhores serviços aos pobres.

“Existe um amplo apoio ao fornecimento de serviços públicos universais, e esses serviços têm custo. Os custos são pagos por impostos”, lembrou. “Os impostos precisam ser mais justos para financiar esses serviços.”

No Brasil, no entanto, o sistema tributário contribui com as injustiças, segundo Nascimento. O governo concede descontos em tributos para empresas e sobre determinadas despesas que só beneficiam a população mais rica.

Ele lembra por exemplo que todas as custas médicas podem ser descontadas sobre o Imposto de Renda. Contudo, só ricos têm esse tipo de gasto, já que grande parte da população usa o Sistema Único de Saúde (SUS). “Cerca de 400 mil pessoas deduziram do seu imposto de renda R$ 26 bilhões só em 2022. Isso é 23% de tudo o que foi deduzido em despesas médicas no ano, de acordo com dados da Receita.”

 

Nascimento diz que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sinalizado um esforço para a mudança na tributação sobre renda no país. Para ele, contudo, não é tão claro quanto foi o empenho feito para a reforma dos impostos sobre o consumo, aprovada no ano passado sem um efeito significativo contra a desigualdade.

Ao mesmo tempo, o governo estabeleceu o déficit zero das contas públicas já a partir de 2024 e colocou em vigor o Novo Arcabouço Fiscal (Naf). A nova regra limita o gasto público com base no crescimento da receita. Isso pode enfraquecer ainda mais o estado caso a arrecadação não cresça e acabar, ao fim, fomentando novas privatizações.

 

Fonte: Brasil de Fato

Provas foram aplicadas nos dias 5 e 12 de novembro

 

Os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) já podem ser acessados por meio da Página do Participante,, utilizando o login único da plataforma gov.br.

As provas foram aplicadas nos dias 5 e 12 de novembro de 2023. Ao todo, mais de 3,9 milhões de pessoas participaram do certame. 

De acordo com o Ministério da Educação (MEC), as notas dos chamados treineiros – candidatos que participaram do exame em busca de autoavaliação, sem concorrer às vagas – serão divulgadas somente em março. Já o espelho com a avaliação das redações será disponibilizado em 90 dias.  

Além de avaliar o desempenho escolar dos estudantes ao término da educação básica, o Enem é a principal porta de entrada para a educação superior no Brasil, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e de iniciativas como o Programa Universidade para Todos (Prouni). 

Os resultados também são utilizados como critério único ou complementar dos processos seletivos, além de servirem de parâmetro para acesso a auxílios governamentais, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

 

DIVULGAÇÃO

Pesquisa do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor encontrou agrotóxicos em 58% dos alimentos derivados de carne e do leite

 

 

Duas de três marcas de requeijão analisadas pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) apresentaram resíduos de agrotóxicos. Já nas categorias de carnes analisadas, incluindo o nugget, todas apresentaram índices de agrotóxicos.

Intitulada “Tem veneno nesse pacote”, a pesquisa do Idec foi publicada no Atlas dos Agrotóxicos, da Fundação Heinrich Böll Brasil, e teve como objetivo analisar a presença das substâncias tóxicas em diversos alimentos, entre vegetais, laticínios, carnes e os ultraprocessados. 

O resultado da pesquisa mostrou que em 58% dos alimentos derivados de carne e leite analisados foram encontrados agrotóxicos. Nesse meio, estão duas marcas famosas de requeijão e empanado de frango (nugget). 

As marcas do requeijão são Vigor e Itambé, onde foram encontrados dois tipos de agrotóxicos. Já as marcas de nugget são Seara, que liderou o ranking de “campeões do veneno”, apresentando cinco tipos de agrotóxicos; e Perdigão, que apresentou dois. 

O estudo também encontrou resíduos de agrotóxicos em outras duas categorias de carne, como o hambúrguer de carne bovina e a salsicha. 

Os compostos tóxicos mais encontrados foram o glifosato e seu metabólito AMPA, presentes em 9 dos 24 produtos analisados.

O Idec pontuou que o Brasil é um dos países mais importantes para o mercado de agrotóxicos, ocupando o pódio dos maiores consumidores e importadores de agrotóxicos.

"O país permite limites de resíduos em água e alimentos muito superiores aos da UE. Isto possibilita o registro cada vez maior de novos agrotóxicos, com recordes sendo batidos a cada ano, além do crescimento da importância das commodities na economia brasileira, a partir da ampliação da área plantada e da produção de culturas mais dependentes desses produtos”, afirma o relatório.

 

 

 

O aumento do consumo de agrotóxicos representa um perigo para a saúde da população, em especial para grupos sensíveis, como mulheres grávidas ou crianças, que estão particularmente em risco, alerta o relatório. Os resíduos tóxicos também prejudicam a vida selvagem, o solo e a água. 

O Brasil é um exemplo de falta de regulamentação eficiente que impõe à população teores máximos de resíduos em alimentos. No mercado brasileiro são encontrados, em alguns casos, níveis de resíduos duas ou três vezes maiores do que os limites máximos da UE, e em outros, níveis centenas de vezes maiores.

O estudo ainda reforça que outro prejuízo é o crescimento de conflitos no campo envolvendo a contaminação de comunidades da agricultura familiar ou de povos tradicionais. Um relatório divulgado em outubro pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) aponta que, somente no primeiro semestre de 2023, mais 500 mil pessoas foram alvo de violência no campo em diferentes municípios brasileiros. 

 

Guia Alimentar para a População Brasileira

O Ministério da Saúde disponibiliza um Guia Alimentar para a População Brasileira com princípios e recomendações para uma alimentação adequada e saudável. O guia reforça que a escolha de alimentos in natura, ou seja, alimentos nada ou minimamente processados, como frutas e legumes, são a melhor opção para uma alimentação saudável. 

No entanto, a pasta pondera que os sistemas alimentares baseados na agricultura familiar e em técnicas tradicionais de cultivo e manejo do solo, que priorizam a produção sustentável e sem o uso de venenos vem perdendo força. No lugar, surgem sistemas alimentares que operam baseados em monoculturas, que têm como um de seus principais focos o fornecimento de matérias-primas para a produção dos ultraprocessados.

Além disso, esses sistemas dependem do uso de agrotóxicos, fertilizantes químicos, sementes transgênicas e antibióticos que vão para os alimentos consumidos pela população. Essas substâncias estão diretamente ligadas ao surgimento de doenças como leucemia, Alzheimer outros tipos de câncer e problemas neurológicos. 

 

Fonte: CUT

Paola Cantarini Guerra – Foto: IEA/USP

Este artigo busca refletir de forma crítica e interdisciplinar sobre os impactos da IA, nunca vistos na história humana, em relação ao futuro do trabalho, trazendo um alto potencial de substituição do trabalho humano, não apenas em tarefas simples e rotineiras, como no caso da automação, mas de um espectro muito mais amplo e sem precedentes. Além disso, aborda fenômenos correlatos, como uma maior concentração de renda na nova fase da IA e o surgimento, outrossim, de um novo subprecariado, exemplificado pelas “plafaformas austeras ou de trabalho” (Uber, Airbnb, TaskRabbit e Mechanical Turk).

O texto também discute a emergência de uma nova classe de pessoas consideradas inúteis ou inempregáveis, além dos denominados “trabalhadores fantasmas” ou “zeladores de dados”, essenciais para a área de inteligência artificial, mas invisibilizados e sem qualquer proteção trabalhista, também denominados pela literatura de “cibertariado”. Ainda busca trazer reflexões e contribuir para o debate acadêmico no Sul Global, reduzindo-se o déficit de produção científica na área das humanidades e IA, visando à diversidade epistêmica.

Visa-se, sobretudo, à promoção do pensamento científico e à democratização das discussões sobre a IA, almejando atingir profundidade rigor científico e uma abordagem crítica e inter/transdisciplinar, trazendo, outrossim, uma abordagem que seja ela própria já inclusiva e democrática. Isto no sentido de aproximar diversos campos do saber e diversos tipos de atores sociais (empresas, academia, governo, cidadãos). Com isso, visa-se à democratização da discussão acerca da temática IA como um todo, pois assim acreditamos que estaremos contribuindo para alcançarmos o que se denomina como “justiça de design” e uma abordagem de “co-construção” (co-approach). Como dispõe com propriedade  Sasha Constanza-Chock, na “justiça de design”, exigiria ser repensada a dinâmica do design através de múltiplos eixos de opressão, com destaque para a necessidade da inclusão no sentido de se exigir a participação das comunidades marginalizadas em todas as fases do processo de concepção tecnológica.

“Co-approach”, por sua vez, significa a abordagem com fulcro no entendimento de que, para ser inclusiva e democrática, a governança de IA e a própria IA devem estar atentas à participação de grupos vulneráveis, bem como devem ser repensados os modelos dominantes propostos, em um sentido decolonial. Como exemplo paradigmático de tal abordagem temos, no plano internacional, a proposta do modelo de governança de dados “Maori”, refletindo os princípios e o histórico das lutas das comunidades Maori na Nova Zelândia, com ênfase para a previsão da proteção e equilíbrio entre os direitos individuais e coletivos, com o respeito à cultura Maori e à sua visão de mundo para a formação do processo de decisões tomadas em todo o ecossistema de dados, em um processo de co-desenho. Ainda, como exemplo de governança decolonial, o documento da Global Indigenous Data Alliance, CARE Principles of Indigenous Data Governance traz expressa previsão de proteção da soberania de dados indígena, baseando-se na Declaration on the Rights of Indigenous Peoples (Undrip) da ONU, adotada em 2007.

Daí a importância da revalorização das “humanidades” em geral, para com isso termos de novo reequilibrada a balança, diante do investimento financeiro na técnica, nas áreas de exatas e em compreensões mais mecanicistas e tecnicistas, também acerca da realidade. Destarte, não se poderia deixar de também revalorizar não apenas o pensamento do cálculo, utilitário, ou voltado ao hedonismo, mais próximo de Descartes e da “mimesis”, mas, sobretudo, a “poiesis”, sendo esta central dentro da produção de disciplinas mais próximas das humanidades.

Vivemos na sociedade da informação, sociedade de dados e sociedade 5.0 (Japão), atrelada aos conceitos de pós-humanismo e de transumanismo, falando-se ainda em “virada do não humano”, um conceito macroscópico que traz repercussões sociais de alta magnitude, com foco no descentramento do humano da biosfera, para se tornar verdadeira força geológica, a provocar a chamada era do antropoceno.

Fala-se na nova fase da IA – nova Revolução Industrial – com os “modelos de fundação” – “foundation models” –, que estão acelerando o seu progresso, com habilidades antes não previstas, e em sexta onda da inovação tecnológica, a partir das transformações profundas na sociedade e da economia com as inovações tecnológicas, a partir do início do século 21, sendo que agora as tecnologias digitais e a inteligência artificial são somadas às tecnologias da informação e comunicação surgidas na segunda metade do século 20.

São apontadas preocupações cada vez mais frequentes com a possibilidade destes novos modelos autonomamente traçarem seu curso, quando, por exemplo, a própria inteligência artificial (IA) instalada em artefatos cibernéticos tiver a capacidade de construir outras IAs melhores, ficando a preocupação quanto ao que seria considerado por elas “melhor” ou com o aumento dos casos de vieses, “bias”, além de um impacto nunca antes visto na história humana com relação ao futuro do trabalho, trazendo um alto potencial de substituição do trabalho humano não apenas em tarefas simples e rotineiras como no caso da automação, mas de um espectro muito mais amplo e sem precedentes.

A IA, em sendo uma das mais disruptivas tecnologias, uma verdadeira força ambiental, antropológica e ontológica, já está a re-ontologizar o mundo, criando novas realidades; apesar de propiciar inúmeros benefícios à sociedade, possui um potencial de afronta a todos os direitos humanos e fundamentais, ensejando como resposta uma proteção contra eventuais violações a tais direitos de forma sistêmica, proativa, abrangente e segura. E isso por meio de algo como a interseccionalidade, através de legislação, “compliance” e boas práticas pautadas em princípios éticos, em uma abordagem holística, inclusiva e democrática, a qual mais se coaduna com as características da IA em sua origem (cibernética). Isso se dá em uma perspectiva não eurocêntrica, mas multicultural.

Assim como ocorre com outras áreas da economia, onde é comum falar-se que quem aufere os benefícios e lucros deveria arcar com os ônus, ao invés de democratizar e socializar tal parte enquanto que a primeira ficaria concentrada em poucas parcelas da população, contudo, fica cada vez mais claro que os benefícios e as oportunidades de tecnologias como a IA raramente são compartilhados de forma equitativa, para podermos falar em uma economia de fato compartilhada, havendo uma ainda maior concentração de renda nesta nova fase do capitalismo de vigilância ou de dados/plataforma, e colonialismo de dados a partir dos últimos desenvolvimentos da IA.

É o que aponta a Unesco, em sua Recomendação sobre a ética da IA, afirmando o seu potencial transformador para afrontar desafios globais, mas ao mesmo tempo, com potencial de risco de incremento das desigualdades e afronta a direitos humanos, caso não sejam considerados os aspectos éticos, falando em uma abordagem de participação inclusiva e diversa, com inclusão de participação de grupos vulneráveis, como os indígenas e locais, por meio de programas adaptados aos contextos locais e em idiomas indígenas. Essa inclusão e visão holística busca garantir que a IA apoie práticas sustentáveis e de respeito à diversidade cultural e linguística, e de preservação de identidades e patrimônios culturais de tais povos, a fim de se falar em uma IA democrática, incluindo a diversidade cultural, de vozes, valores e perspectivas.

Há uma maior concentração de renda na nova fase da IA, já que apenas poucas empresas possuem dinheiro suficiente para grandes e caros computadores, bem como armazenamento e treinamento de dados, essenciais ao “big data”, falando-se no surgimento, outrossim, de um novo subprecariado, como nos casos das denominadas “plafaformas austeras ou de trabalho” (Uber, Airbnb, TaskRabbit e Mechanical Turk), em uma nova classe de pessoas inúteis, não apenas desempregados, mas inempregáveis.

Destaca-se a importante contribuição de Marcelo Finger ao mencionar a necessidade de “reitrenamento” de profissionais que perderão seus empregos devido à IA, não sendo suficiente mais para tal readaptação o Ensino Fundamental completo, ou o Ensino Médio completo, exigindo-se treinamento de nível universitário. A pergunta que fica é quem pagará a conta de tal investimento, o qual além de dinheiro demanda tempo, o qual cada vez menos dispomos diante da crescente aceleração do tempo diante da sociedade de dados e da informação como bem aponta Paul Virilio com o termo “dromologia”..

Portanto, “not all speed is movement”, como aponta Ruha Benjamim, já que a velocidade pode levar a novas formas discriminatórias, ou seja, não se poderia tratar da velocidade como um fim em si mesmo, mas também caberia questionarmos do porquê e para quem; quem se beneficia de determinado sistema de poder, para quem é concebida tal tecnologia, já que a política se encontra agora intimamente relacionada com a velocidade, como destacou Paul Virilio, apontando para uma revolução dromocrática, e para a substituição do termo democracia por dromocracia. A velocidade possui uma íntima ligação também com o capitalismo, e com mais ênfase a partir da crise da década de 1970 provocada pelos países produtores de petróleo, ao requerer um esforço ainda maior para renovação tecnológica do capital, determinando uma aceleração exponencial do tempo de rotação do capital, acentuando-se o clichê “time is money”.

Cumpre ainda pensar que a cidadania digital não é igualmente distribuída, pois há uma verdadeira “exclusão digital” e falta de educação digital diante da falta de habilidades digitais para o uso de novas tecnologias, como aponta a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe  (CEPAL) com ênfase para os povos indígenas do Sul Global, já que a maioria não possui conhecimentos básicos em informática, ou de manipulação de cálculo ou para a instalação de novos dispositivos e softwares e sequer conexão à internet. É o que aponta também o relatório Como promover o acesso universal à Internet durante a pandemia da covid-19, da Organização dos Estados Americanos (OEA), destacando a priorização de áreas urbanas no desenvolvimento de infraestrutura para conectividade na América Latina e no Caribe, não abrangendo, pois, as pessoas em comunidades indígenas rurais e não urbanas.

Assim verifica-se que o conceito de “destruição criativa” de Schumpeter,  representando o caráter disruptivo e revolucionário das revoluções tecnológicas na estrutura econômica, permitindo que a partir de dentro, com a destruição do antigo surja algo novo, diante de ações empreendedoras e da inovação, provocando o surgimento das ondas de crescimento econômico, ao que tudo indica não irá se verificar da mesma forma agora na sexta onda tecnológica, pois o impacto, além de muito maior em empregos de forma global, vem com mais ênfase em certos países como Índia, que possui seu foco econômico em serviços como de “call-center”, e demais países do Sul Global como o Brasil, ou seja, não há que se falar em criação de novos tipos de trabalho facilmente adaptáveis por trabalhadores agora desempregados ou inempregáveis.

Isto porque os novos possíveis empregos a serem criados exigiriam novas competências mais sofisticadas, nível universitário e programas de capacitação que tragam uma perspectiva de recolocação e inserção no mercado de trabalho, além do alto custo de tempo, dinheiro e energia em tais “retreinamentos”. Neste sentido, destacam-se os estudos da Organização Mundial para o Comércio, afirmando a perda de 80% aproximadamente de postos de trabalho em decorrência da inovação tecnológica, além de  pesquisa da Universidade de Oxford de 2013, apontando para a perda de aproximadamente 35% dos trabalhos do Reino Unido nos próximos vinte anos, pesquisas acerca da perda de metade dos empregos da União Europeia e estudo do IPEA apontando para a perda de 54,5% dos postos de trabalho formais nos próximos seis anos no Brasil.

Outro exemplo paradigmático da crescente precariedade do trabalho é o caso dos denominados “trabalhadores fantasmas” ou “zeladores de dados”, essenciais para a área de inteligência artificial, com a função de moderação de conteúdo de redes sociais, mas invisibilizados e sem qualquer proteção trabalhista, também denominados pela literatura de “cibertariado”.

Neste sentido, a promessa de uma cidadania e democracia digitais, em um otimismo utópico, longe de ensejar apenas respostas “distópicas”, daria lugar a teorias críticas que apontam para o surgimento de novas formas de apartheid social, e da “refeudalização”, como destaca Matteo Pasquinelli no livro The Eye of the Master: Uma história social da inteligência artificial, mencionando o caso dos trabalhadores fantasmas do Sul Global e conforme documentado também por Mary L. Gray e Siddharth Suri em seu livro Ghost Work, ocorrendo tal situação mais gravemente em países do Sul Global, com destaque para África, Venezuela, Índia e Brasil, falando-se em “exploração e opressão algorítmica”.

Por outro lado, a resistência às novas formas de colonialismo, vigilância e exploração, conta cada vez com mais adeptos, e longe de ser alguma novidade, embora haja pouca literatura a respeito no Brasil, mas no direito comparado são vários os exemplos que podem ser citados, com algumas iniciativas desde 2016, a exemplo dos princípios FAIR (Findable, Accessible, Interoperable and Reusable) para gerenciamento e governança de dados, e movimentos em torno de soberania de dados indígenas, com crescimento desde 2019 a 2021, como aponta o Grupo de Trabalho Internacional para Assuntos Indígenas (IWGIA), com destaque para a Global Indigenous Data Alliance (GIDA). No mesmo sentido o Protocolo de Inteligência Artificial Indígena de 2020 da lavra do Grupo de Trabalho do Protocolo de IA Indígena, trazendo uma estrutura para o projeto de sistemas de IA com foco nas prioridades, valores e cosmovisão dos povos indígenas.

Outrossim, o relatório Decolonising the Internet produzido em 2018 pela organização global Whose Knowledge constata a problemática da falta de representatividade mundial dos idiomas e dialetos indígenas, sendo que uma resposta a tal questão seria uma maior geração de conteúdo educacional, científico e acadêmico em idiomas indígenas.

Contudo, ainda há pouca produção científica a respeito no Sul Global, já que a maioria dos exemplos citados são fontes produzidas no Norte Global, como Austrália e Canadá, como bem aponta Vidushi Marda, ativista e membro da Organização Internacional “Article 19”, por isso se fala em falta de diversidade epistêmica e em uma sub-representação do Sul Global em tais temáticas. Como inciativa no Brasil pode ser citado o projeto desenvolvido no âmbito do Instituto de Estudos Avançados da USP, Cátedra Oscar Sala, denominado “DecolonizAI”. Também cabe destacar importante iniciativa do C4Ai e da IBM, no sentido de fortalecer línguas indígenas no Brasil.

Fabio Cozman, Moreschi e Pereiraa apontam para a situação urgente de se dar voz a tais trabalhadores invisíveis, também denominados por Ricardo Antunes de “infoproletariado”, como no caso dos trabalhadores do Uber, e enfatizam sua situação ainda mais precária no Brasil em comparação com outros países do Sul Global, devido a retrocesso da economia brasileira e ausência de estudos científicos acerca de tal temática, sendo uma “subclasse” ainda mais explorada do que a maioria dos outros “turkers”.

Tal fato é ainda agravado devido ao crescimento do trabalho informal (41,4% da população empregada trabalha de forma informal), e do retrocesso em termos de conquistas trabalhistas e de direitos humanos no mundo em geral, diante da crise dos direitos humanos e crescimento de países não democráticos, conforme aponta o relatório de 2021 da  Freedom in the world 2022 – The Global Expansion of Authoritarian Rule, contabilizando o percentual de apenas 20,3% de países livres, no que tange ao regime democrático, apontando para o crescimento de regimes autoritários no decorrer dos últimos 16 anos.

Apesar das “big techs” se beneficiarem do superávit comportamental, além do trabalho altamente qualificado e com altos cargos e salários, a parte visível da IA como designers, programadores, estatísticos, há uma rede crescente de trabalhadores fantasmas em países do Sul Global, diante do alto nível de desemprego, concentração de renda do país, e aumento de formas de “uberização” do trabalho, responsáveis pela realização de microtarefas, não realizáveis por computadores com eficiência, as “tarefas de Inteligência Humana” (HITs), a exemplo da descrição de imagens para projetos, como o do “ImageNet” e da IA da Amazon Alexa, e em plataformas de trabalho.

São os chamados trabalhadores fantasmas ou invisíveis, os quais são colocados na invisibilidade para permitir que o espetáculo da autonomia das máquinas continue, sendo muitas vezes iludidos com promessas de “empreendedorismo” ou de estarem contribuindo para um mundo mais digital, em uma falsa sensação de liberdade, mesmo que vigiada, sem transparência e sem qualquer direito trabalhista.

O caso dos trabalhadores fantasmas brasileiros é ainda mais sensível e degradado, pois, conforme os Termos de Serviço da Amazon, não lhes é permitido receber seu pagamento em dinheiro, sendo obrigados a usar este como créditos no site da Amazon nos EUA. É uma evidente continuação da exploração colonial, em termos que se pode mesmo qualificar como “ciberescravidão”, sobre o que temos desenvolvido pesquisa em parceria com Willis Santiago Guerra Filho.

Em sentido complementar, a reportagem  Inside Facebook’s African Sweatshop, publicada na revista Time, aponta para várias irregularidades na “contratação” de trabalhadores africanos que atuam como moderadores de conteúdos para a empresa Facebook, corroborando com algumas análises críticas, em sentido semelhante, sobre o fato de a maior parte do Sul Global ser fonte de matéria prima de dados pessoais, em razão da maior fragilidade ou vácuo legislativo, além de também servirem de mão-de-obra digital barata e informal, “freelancers”, atuando como “zeladores de dados” ou “trabalho de dados” (“data work”) através da mediação de plataformas digitais de trabalho. E no entanto, tal força de trabalho é central para o desenvolvimento das tecnologias emergentes, e em especial para o “big data”, a exemplo da que prestam os africanos (Quênia, Madagascar), assim como trabalhadores da Índia, Venezuela e Brasil contribuindo para a exportação do lucro para as empresas sediadas no Norte Global.

Tais trabalhadores, além de não terem nenhuma proteção em termos de direitos sociais, falando-se no surgimento de um novo subprecariado e na uberização do trabalho, sofrem uma ampliação de formas de vigilância do trabalhador, com a utilização de inteligência artificial além da utilização de seus dados pessoais, sem respeito, muitas vezes às normas da LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, em especial quando se pensa nos princípios da minimização de dados, boa-fé e transparência, e na base legal do consentimento (a qual é frágil mesmo com o respeito aos requisitos do livre, específico e informado consentimento). Inclusive cumpre ressaltar que a base legal do consentimento sequer seria válida ou legítima neste caso diante de flagrante não isonomia e equilíbrio em tais relações jurídicas trabalhistas, demandando uma proteção extra via elaboração de um importante instrumento de “compliance”, a Avaliação do Legítimo Interesse”, a qual deverá ser exigida pela legislação como um documento prévio a ser elaborado, de forma obrigatória, além de prever a forma de sua elaboração e padronização, o que não houve por bem a LGPD em seguir o modelo do GDPR neste sentido.

 Valerio De Stefano, professor de Direito do Trabalho na KU Leuven, Universidade de Leuven, Bélgica, aponta para a crescente fiscalização e controle dos empregados, além da falta de transparência quanto a diversos aspectos do trabalho a ser realizado, fazendo parte do que se tem denominado de gestão por algoritmo, monitoramento eletrônico de desempenho e people analytics (análises de pessoas), a exemplo da utilização de tais ferramentas pela empresa Humanyze.

 Em sentido semelhante diversos pesquisadores vêm apontando para uma refeudalização, com a crise de países democráticos e crescimento de governos ditatoriais, crise ou morte dos direitos humanos, tais como Thomas Piketty, ao apontar o retorno ao “capitalismo patrimonial”, uma reversão à sociedade pré-moderna, sendo que há um potencial ainda maior de concentração de renda, com a utilização da IA. É o que afirma  Glauco Arbix, apontando para o condicionamento das operações e das pesquisas avançadas em IA em um grande oligopólio, tanto nos Estados Unidos quanto na China.

 Longe de ser, portanto, uma tecnologia neutra, objetiva e sem “vieses” (bias), o que vem sendo demonstrado por diversas pesquisas acadêmicas e científicas de porte, a IA reflete um imaginário social pré-existente, uma certa ideologia e valores, conforme também o conjunto de dados utilizado e treinado, ou seja, reflete a concepção de mundo dominante, qual seja, ocidental, desenvolvendo uma câmara de eco epistêmica, ampliando casos de discriminação e violação de direitos de grupos vulneráveis como mulheres, hispânicos, negros, indígenas e pobres.

 No tocante especificamente à IA generativa, há recentes pesquisas que apontam para a discriminação e vieses, ausência de respeito ao trabalho intelectual e direitos autorais, além do uso de dados pessoais em larga escala sem qualquer consentimento para treinamento dos algoritmos, com destaque para a  pesquisa realizada pela Hugging Face e Universidade de Leipzig, na Alemanha, comparando diversas imagens geradas pelas versões 1.4 e 2 do Stable Diffusion e Dalle-2, a fim de verificar vieses de gênero e etnia, e avaliar vieses em profissões, concluindo que os sistemas analisados super-representam significativamente os atributos associados à brancura e à masculinidade, havendo, pois, viés étnico e de gênero.

 Como exemplo temos a “Whisper”, desenvolvida pela OpenAI, sendo uma ferramenta multilíngue de reconhecimento, transcrição e tradução de voz desenvolvida por meio da utilização de um banco de dados contendo 680 mil horas de áudio disponíveis na Internet, sem atribuição ou consentimento dos povos indígenas e de modo geral sem qualquer preocupação durante seus primeiros meses de desenvolvimento pelo menos, com medidas de “compliance” adequadas.

 Verifica-se, pois, que ocorre a utilização de dados indígenas sem nenhum controle, sem respeito à legislação, o que, consequentemente, reforça as desigualdades de poder históricas e predominantes que invisibilizam os povos indígenas e tiram o controle sobre sua produção cultural. Há com isso um incremento do risco de homogeneização, polarização, manipulação de comportamentos e emoções dos usuários e de segregação ideológica. Isto ocorreria devido ao reforço a visões similares e unilaterais que reforçam tal ponto de vista e minam o discurso e diálogo democrático.

 É o que aponta Luciano Floridi, no livro  Onlife Manifesto – Being Human in a Hyperconnected Era, falando em riscos para os processos democráticos, normas e direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, já que as esferas públicas são cada vez mais controladas pelas corporações, com destaque para o risco de “censura corporativa”, sendo uma censura tanto estética como política,a exemplo de censura a fotografias de mulheres com seios de fora, ou ao se limitar/glosar o conteúdo produzido por drag queens, por serem consideradas falas agressivas, sem se observar o contexto de elaboração de tal linguagem, sem conseguir detectar a intenção e a motivação, ou seja, a moderação de conteúdo realizada pela IA nas redes sociais não é capaz de reconhecer o valor social de determinados conteúdos.

 Tal perspectiva envolve o que Ângela Davis denomina de “interseccionalidade”, já que há uma soma de discriminações, diante de vieses diversos, de gênero, raça e classe.

 Além de “bias” em termos de discriminações flagrantes e danos a direitos fundamentais, como prisões de inocentes em razão de reconhecimento facial, policiamento preditivo ou sistemas como o Compas (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions) utilizado nos EUA, há também casos de recusa ou aumento de valor de empréstimo, seguro ou financiamento, conforme seu “profile”, respostas negativas em seleção de empregos, a depender do critério e valor considerado pelo algoritmo de IA que faz tal seleção, ou banco de dados utilizado, falta de treinamento adequado dos dados com diversidade adequada, falta de equipe multiétnica, interdisciplinar e representativa de diversos grupos vulneráveis, falhas de arquitetura técnica ou de design, e ausência de sistemas regulatórios.

 Tais problemáticas são ainda mais preocupantes em um país como o Brasil com população afrodescendente e indígena, e com histórico de décadas de passado colonial e regime ditatorial, e onde muitas vezes sequer se tem o reconhecimento do racismo, falando-se em uma forma de racismo implícito, não obstante, institucionalizado, ao contrário, por exemplo, dos EUA, onde seria uma situação explícita, o que, por sua vez facilitaria as estratégias de resistência e combate.

 Os povos indígenas e outras parcelas vulneráveis da população são mais profundamente afetados pelo desenvolvimento e pela aplicação da IA, sendo a IA considerada como o novo colonizador para os povos indígenas, ou seja, fala-se no surgimento de um novo colonialismo, a exemplo do que ocorre com os desenvolvimentos em biotecnologia de forma mais geral, que dependem dos recursos dos povos indígenas e foram apelidados de exemplos de biocolonialismo.

 A IA, portanto, reflete os valores e ideais específicos da visão de mundo científica ocidental, seguindo a ideologia e valores dos programadores que são treinados e trabalham dentro do paradigma da visão de mundo científica ocidental, com base em uma ontologia reducionista de dados e uma epistemologia artificial de algoritmos, não representando a diversidade ontológica e epistemológica do mundo, e refletindo as limitações de visões homogêneas de mundo, na sua maior parte representativas da visão de homens jovens e brancos.

 Verifica-se, pois, que os criadores de tecnologia, tal como os seus homólogos do marketing, estariam a codificar a raça, etnia e gênero como características imutáveis que podem ser medidas, compradas e vendidas, em uma verdadeira proliferação da codificação racial, em sistemas rígidos e que perpetuariam “ad eternum” tal classificação, falando-se no surgimento de uma nova casta social.

 É o que se pode observar ao se analisar o sistema criminal norte-americano, e também com maior razão o sistema penitenciário brasileiro, já que além de possuir já um viés em sua estrutura, por priorizar seletivamente a captura de negros e latinos, no caso dos EUA, e de “negros jovens”, no caso do Brasil, traduz-se em uma penalidade eterna ao ex-condenado, já que diversos estados possibilitam a negação do direito de votar, mesmo após o cumprimento da pena, uma inexplicável penalidade extra e sem remição, além de ser quase impossível uma recolocação profissional, condenando-os à marginalidade e a um perpétuo retorno ao sistema prisional (afirma-se que 90,5% dos presos, com a utilização do reconhecimento facial pela polícia brasileira, são negros).

 Para Ruha Benjamin há um paradoxo em tal sistema: a discriminação legalizada proporcionada pelo sistema penal dos EUA. A própria raça é tecnologia concebida para separar, estratificar e santificar as muitas formas de injustiça experimentadas pelos membros de grupos racializados, como de último demonstra à saciedade os trabalhos de Achille Mbembe.

 Contudo, onde há poder há resistência como afirmava Michel Foucault, e daí o apelo à reescrita de códigos culturais dominantes e à incorporação de novos valores e novas relações sociais no mundo. Precisamos de uma “revolução de valor e despertar democrático radical”, como diz Ruha Benjamim, que combata a influência da ética utilitarista na área de IA, com uma abordagem crítica pautada em um “ethos abolicionista”, voltando-se para parcelas da população vulnerável, a exemplo da “abordagem transfeminista dos dados e da justiça social”, e uma abordagem feminista e decolonial, como a da Rede de Pesquisa de Inteligência Artificial Feminista “f<A+i>r, criada com apoio do International Development Research Centre (IDRC) do Canadá, em março de 2020.

 Tais exemplos são paradigmáticos pois focam em possíveis respostas e não apenas nos problemas, e, pois, em um sentido não apenas crítico ou reativo, mas proativo, pensando-se em ferramentas e outras práticas em seu potencial de empoderamento por meio também da tecnologia, a partir do reconhecimento da diversidade cultural, da inclusão e do contexto específico de utilização da IA e do treinamento e banco de dados utilizado.

 Destaca-se o documento Governing data and artificial intelligence for all – Models for sustainable and just data governance, do Parlamento Europeu de 2022, trazendo a perspectiva de “data justice”, se preocupando com a elaboração de “human rights impact assessments” por priorizar direitos, além de apostar na criação de modelos alternativos de governança que incluam formas locais de soberania digital como a indígena. Aponta ainda para a importância do constitucionalismo digital por oferecer uma linguagem de direitos e para poder desafiar excessos tanto do poder público como do privado, trazendo o aspecto da diversidade e da inclusão e buscando um reequilíbrio das relações no âmbito digital, com o respeito aos direitos fundamentais. No mesmo sentido o documento do AI Now Institute, Report 2018, apontando para a estrutura de Avaliação de Impacto Algorítmico (AIA) compreendendo o envolvimento da comunidade como parte integrante de qualquer processo de “revisão”, tanto como parte do estágio de projeto quanto antes, durante e depois da implementação, com o fim de se garantir a legitimidade, imparcialidade e independência da produção de tal documento de “compliance”.

 Nesta mesma linha a Declaração de Toronto que deverá haver uma garantia de que grupos potencialmente afetados e especialistas sejam incluídos como atores com poderes decisórios sobre o design, e em fases de teste e revisão, além da revisão e elaboração de documentos de “compliance” por especialistas independentes.

 A IA deve, pois, ser compreendida em sua relação com o contexto sócio-cultural em questão. Com isso, além de se aproximar a teoria da prática, também se contribui para o preenchimento de um “gap“, já que muitas vezes as soluções técnicas envolvendo a IA são tomadas sem estudos empíricos do contexto social. É o que aponta o artigo  Designing for human rights in AI. Além disso, pode dar ensejo ao denominado “emergent bias”, que surge com a modificação do contexto de uso da aplicação da IA ou do treinamento de dados. Em sentido complementar é o que aponta o documento Predictably Unequal? The Effects of Machine Learning on Credit Markets, afirmando haver um potencial maior de “bias” em “contextos”, em domínios com documentado passado histórico de discriminação.

 Outro importante exemplo de tal abordagem decolonial, repensando-se as ferramentas tecnológicas para incluírem os valores de comunidades e grupos vulneráveis e tornados invisíveis, é a proposta da Coding Rights, em parceria com o Co-Design Studio do MIT, ao experimentarem um jogo denominado Oracle for Transfeminist Futures, com base em pedagogias invertidas, ao criarem uma mudança decolonial, passando dos modelos paternalistas para os solidários, por meio do diálogo intercultural, e do reconhecimento da ética digital intercultural, partindo do reconhecimento da insuficiência de uma perspectiva ética globalizante. Da mesma forma, no âmbito dos Direitos Humanos, há uma reconstrução destes em um sentido mais alargado e inclusivo, por meio do multiculturalismo e do pluralismo, reconhecendo outras abordagens acerca do conceito de “ética”, como aquelas indígenas, e sobre o conceito de dignidade humana, a partir do que significa viver uma boa vida, tal como no passado greco-romano, obliterado pela predominância do judeo-cristianismo no Ocidente.

 Outros exemplos podem ser citados, como a organização FATML (Justice, Accountability and Transparency in Machine Learning) com foco na definição, medição e redução do viés algorítmico, a ACM Conference on Fairness, Accountability, and Transparency, e a Algorithmic Justice League (Liga da Justiça Algorítmica), de iniciativa de Joy Bowlamini, trazendo uma visão interseccional de gênero e raça, e o “Compromisso de Segurança Facial”, exigindo das empresas uma posição pública no sentido de mitigar o abuso da tecnologia de análise de reconhecimento facial.

 É assim que se vem falando em uma “desobediência epistêmica” na luta contra o “epistemicídio”, morte ou invisibilidade de saberes populares, tradicionais e locais e agora na luta também contra uma nova forma de colonização, por meio do extrativismo de dados, apostando-se em práticas contra-hegemônicas (Epistemologias do Sul) e de tecnologias com “ethos” abolicionista, a exemplo do Movimento de Tecnologias Não Alinhadas (MTNA), com foco na autodeterminação e governança de dados de cada comunidade.

 Ruha Benjamin também destaca vários exemplos de ferramentas com o “ethos abolicionista”, e na forma de um design subversivo, ao contrário do design dominante como parte de um projeto colonizador, com base na equidade e na solidariedade, e para engendrar a libertação, tal como a “Appolition”, a qual direciona os recursos para que as pessoas sejam livres. A iniciativa arrecadou “doações” distribuindo estas para organizações locais para pagamento de fianças, em especial no caso de negros e latinos, os quais não teriam condições financeiras de arcar com tal valor, afetando estas de forma desproporcional.

 Outras iniciativas importantes são: o trabalho da Stop LAPD Spying Coalition e outros esforços de combate à vigilância; o “Auditing Algorithms”, desenvolvendo uma comunidade de investigação em torno da prática da auditoria independente; o “Data & Society Research Institute”, trazendo fundamentos para a elaboração de “responsabilidade algorítmica”; o modelo “DiscoTech” (“descoberta de tecnologia”), desenvolvido pela Detroit Digital Justice Coalition visando a desmitificação da tecnologia como primeiro passo para mobilizar a participação da comunidade no questionamento e na formação de decisões “impulsionadas por dados” que têm impacto na vida das pessoas; o projeto “Os Nossos Corpos de Dados” (ODB), recontando as histórias de vigilância e discriminação baseadas em dados a partir da perspectiva daqueles que são normalmente vigiados e tornados invisíveis; a “Allied Media Network” e o Portal Tecnológico Comunitário de Detroit, com foco em princípios justiça digital. A organização Stop LAPD Spying Coalition, está empenhada na investigação de ação participativa para compreender as experiências dos membros da comunidade de intensificar a vigilância; a “Hyphen-Labs”, e o desenvolvimento de desenhos subversivos que impedem o reconhecimento facial; o “Data for Black Lives”, um coletivo crescente de organizadores, acadêmicos, cientistas de dados, apontando para a necessidade de elaboração de um Código de Ética de Dados, e a urgência de equipes envolvendo cientistas de dados e investigadores negros.

 As ferramentas abolicionistas, desta forma, preocupam-se não só com as tecnologias emergentes, mas também com a produção diária, a implantação e a interpretação de dados. Exige-se uma abordagem mais holística e uma abordagem orientada para a justiça e emancipatória da produção, análise e envolvimento público de dados como parte do movimento mais amplo para as vidas negras, indígenas e de outras populações vulneráveis.

 A justiça, neste sentido, não é um valor estático, mas uma metodologia contínua que pode e deve ser incorporada na concepção tecnológica. Também por esta razão, é vital que as pessoas envolvidas no desenvolvimento tecnológico se associem àqueles que fazem um importante trabalho sociocultural honrando ferramentas narrativas através das artes, humanidades, e organização da justiça social.

 Tal nova forma de colonialismo fica clara se pensarmos, por exemplo, que quando os dados são coletados de comunidades indígenas, eles devem ser reconhecidos como dados indígenas que são coletados em um contexto indígena, com respeito a direitos processuais e materiais, tal como disposto na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o que até o momento não vem sendo objeto de preocupações práticas e concretas na área de proteção de dados e inteligência artificial.

 Os povos indígenas têm o direito de participar da tomada de decisões em assuntos que afetem seus direitos, por meio de representantes escolhidos por eles mesmos, de acordo com seus próprios procedimentos, bem como de manter e desenvolver suas próprias instituições indígenas de tomada de decisões. É o que preceitua o modelo de soberania de dados e de governança de dados Maori defendendo os direitos e interesses inerentes que tais grupos possuem em relação a qualquer tipo de tratamento de dados pessoais no âmbito da IA.

 Outro exemplo de tal abordagem decolonial é o Indigenous Navigator, permitindo o controle, gerenciamento e a transparência acerca dos dados pessoais de comunidades indígenas, e de como seus direitos são reconhecidos. Ao contrário de como se dá em geral, os dados pessoais coletados não são os dados estatísticos oficiais, mas dados que refletem as percepções, os valores, a ideologia e as experiências dos povos indígenas. Contudo, embora seja previso que em tal processo há o reconhecimento do direito de consentimento livre, prévio e informado, este revela-se bastante frágil se pensarmos que diversos documentos, como “termos de uso”, por exemplo são típicos contratos de adesão e não dispõem de informações claras, transparentes, dificultando o entendimento e compreensão.

 O modelo governança de dados Maori refle, pois, os princípios e o histórico das lutas das comunidades Maori na Nova Zelândia, trazendo a previsão da proteção e equilíbrio entre os direitos individuais e coletivos, com o respeito à cultura Maori e à sua visão de mundo para a formação do processo de decisões tomadas em todo o ecossistema de dados, em um processo de co-desenho, ao contrário como se dá geralmente, quando os dados pessoais e informações são produzidos por terceiros, fora de tal representatividade adequada, com a reescrita de suas histórias e valores. 

Há ainda a previsão de uma licença social para o uso dos dados pessoais de tal comunidade, estabelecendo um “framework” a ser respeitado para qualquer tipo de tratamento de tais dados pessoais, qual seja, o respeito aos valores sociais e à visão de mundo de tal comunidade.

 São iniciativas que focam não apenas no âmbito regulatório, mas também técnico, social e ético, ampliando-se o olhar para a governança da inteligência artificial, e para a necessária construção de novos imaginários sociais.

 Do que se trata então, é de se (re)imaginar novas possibilidades para a relação humano-algoritmo e neste sentido se repensar a relação natureza e cultura, técnica, e, portanto, também a partir da valorização de metodologias outras, que priorizem a imaginação e a sensibilidade, atingindo com tal cruzamento e “antropofagia”, novos devires, novas possibilidades, e novos modos de habitar e viver, diante da interface humano-algoritmo, com destaque o papel da poética, em especial, da poética negra e indígenas como uma poética do futuro. 

Trata-se de pensarmos na necessidade de justiça algorítmica em novas bases, com fulcro em um novo paradigma, já que a equidade e justiça algorítmica convencional estão ainda centradas no Ocidente e em uma visão eurocêntrica, de acordo com seus valores, métodos e concepções. 

Tais temáticas são essenciais e necessitam ser abordadas adequadamente, em uma perspectiva de estudo crítico e inter/transdisciplinar da IA, diante da dissolução das fronteias entre exatas e humanidades, bem como para se pensar no desenvolvimento das bases epistemológicas e fundacionais para a IA voltada ao Sul Global, envolvendo, outrossim, reflexões sobre qual o nível adequado de proteção a direitos fundamentais e humanos de populações vulneráveis, via regulação e governança, em face das novas tecnologias disruptivas, em especial da IA. Vislumbramos, inclusive, em nossa pesquisa antes referida, possa estar despontando mais que nova geração, verdadeira nova dimensão daqueles direitos, neste processo de ciberescravização, cujos sujeitos são já híbridos sócio-tecnológicos, direitos a serem consagrados em um novo contrato social, agora tecnosocial, além de natural, a ser efetivamente firmado e implementado, assim evitando a situação catastrófica em que nos encontramos, em escala planetária.

 Ao invés de propostas com base em um convencionalismo de cima e ocidental, dentro de uma lógica da colonização digital e da monocultura, visa-se o desenvolvimento de uma IA levando-se em consideração a “co-construção” pelos grupos vulneráveis, afirmando-se seu direito de contribuir e auferir benefícios dos ecossistemas de dados, sua autodeterminação informativa, e sua soberania de dados, como forma de controle sobre os dados pessoais. Tal proposta se fundamenta em uma perspectiva de decolonização da governança de dados e da inteligência artificial, e, portanto, de uma IA democrática, multicultural e inclusiva.

 Tal perspectiva envolve também uma decolonização do imaginário social, já que até o momento a governança de dados e a IA se pautaram por uma matriz colonial e eurocêntrica, sem levar em consideração os modos de vida e as epistemologias próprias do povo indígena e da população afro-descendente, ou seja, os dados pessoais são produzidos por terceiros, na maior parte das vezes, fora de tal representatividade adequada, com a reescrita de suas histórias e valores, ocasionando, pois, a desconexão com tais contextos e a possível ocorrência de bias”, já que há uma definição e conceituação através do olhar e das narrativas de colonização, em um estado de dependência do Estado colonizador.

 

Fonte: Jornal da USP

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