Estudo realizado na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP mostra como a mulher se torna vítima de agressões por conta de resultados de jogos de futebol
Não bastassem os diversos episódios de violência ligados ao futebol, principalmente os confrontos entre torcidas – nos estádios e fora deles – que chegam a causar mortes, uma pesquisa da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP constata que a mulher também é vítima de diversos tipos de agressão, principalmente quando o resultado de um jogo de futebol é considerado “inesperado e negativo”. A constatação vem de uma pesquisa de mestrado desenvolvida pela economista Isadora Bousquat Árabe, no Departamento de Economia da FEA.
“O que denominamos resultado ‘inesperado e negativo’ é quando uma equipe que tem um favoritismo acaba sendo derrotada, não confirmando as expectativas”, descreve a economista e autora do estudo de mestrado Gol Contra: Impacto das partidas de futebol na violência contra a mulher, apresentado em 2022. A pesquisa, que contou com a orientação da professora Paula Pereda, foi realizada com base em dados obtidos de Boletins de Ocorrências (BOs) de 737 municípios dos estados de São Paulo (645) e do Rio de Janeiro (92), no período de 2015 a 2019.
A partir das ocorrências registradas, a pesquisadora realizou um trabalho minucioso de análise e cruzamento com outras informações. No mesmo período (2015 a 2019) ela coletou todos os jogos do Campeonato Brasileiro das séries A e B, que somaram, ao todo, 3.800 partidas. “Também coletamos dados de sites de apostas para verificar quais eram os resultados esperados dos jogos. Ou seja, em cada jogo, tivemos as informações de quais eram os times que detinham as maiores expectativas de vitória”, explica a economista ao Jornal da USP.
De acordo com os resultados da pesquisa, foi constatado que o número médio de boletins de ocorrência referentes a incidentes de violência doméstica, dentro de casa, aumenta em cerca de 7,5% quando ocorrem resultados negativos e inesperados.
As subnotificações
Ao cruzar as informações obtidas nos BOs registrados nas delegacias normais, Isadora percebeu que havia subnotificações de casos. “Um exemplo disso é quando uma agressão ocorreu à noite, mas foi notificada somente no dia seguinte”, conta. De acordo com a economista, essas dificuldades com relação aos dados de ocorrência de violência doméstica devido a subnotificações e, pela diferença entre ocorrência e notificação, mostram a necessidade de mais políticas públicas que visem à criação de canais de denúncia alternativos, principalmente para casos em que a vítima mora com o agressor.
Para exemplificar como poderiam funcionar canais alternativos, Isadora lembra que, no começo da pandemia, com a preocupação da alta dos casos de violência doméstica devido às medidas de isolamento social, a Polícia Civil do Estado de São Paulo permitiu que crimes referentes à violência doméstica possam ser reportados on-line por meio da Delegacia Eletrônica e Delegacia da Mulher on-line. “Não se faz necessário ir até a delegacia reportar o crime”, como ressalta a economista.
Mas entre tantos jogos e informações, como detectar se, de fato, as agressões teriam relação com os jogos? “Nós filtramos todos os crimes de violência doméstica que aconteceram dentro de casa em até quatro horas após os horários dos jogos. Independente da hora em que o crime foi notificado”, explica a economista, destacando que “os efeitos que resultaram em agressões foram mais vezes detectados em jogos considerados clássicos, nos dois Estados”.
Além disso a economista também verificou que atos violentos contra as mulheres eram nos dias em que os clássicos aconteciam durante a semana. “É quando os jogos são mais assistidos em casa, pela TV”, justifica Isadora. A pesquisa de Isadora foi iniciada em 2020, em pleno período de pandemia da covid-19.
Motivações ao estudo
Dentre as motivações para empreender seu estudo, ela destaca um trabalho realizado nos EUA, em 2011, que estudou casos de violência contra as mulheres ocasionados por resultados inesperados nos jogos da National Football League (NFL), a liga esportiva profissional de futebol americano dos Estados Unidos. “De acordo com a pesquisa, foi constatado que a violência aumentava em cerca de 10% quando ocorriam os resultados inesperados”, destaca Isadora, lembrando que essa pesquisa utilizou, principalmente, dados de sites de apostas norte-americanos. “Então, por que não empreender estudo semelhante tendo como objeto o futebol brasileiro?”
Um outro caso que motivou a pesquisadora a realizar seu estudo foi um crime ocorrido em janeiro de 2021, quando um empresário assassinou sua esposa depois de uma discussão iniciada após uma partida de futebol entre duas grandes equipes de futebol de São Paulo. “Esse caso, que teve grande repercussão nos noticiários, também nos motivou a investigar mais profundamente as possíveis ligações entre a violência contra a mulher e os resultados inesperados no futebol”, descreve Isadora.
O estudo de Isadora também permitiu verificar alguns tipos de violência que atingem as mulheres nos casos de resultados negativos ou inesperados.
“Além da violência física, identificamos o efeito também sobre a violência psicológica contra a mulher. É importante ressaltar que a violência doméstica possui cinco formas: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial”, descreve a economista, ressaltando que, em todos os casos, o homem figura como o agressor e a mulher como a vítima”.
Outra pesquisa recente sobre o mesmo tema, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBP), uma ONG sem fins lucrativos, com apoio do Instituto Avon, mostrou que em dias de jogos, segundo registros de BOs, as ameaças contra as mulheres aumentaram em 23,7% e as lesões corporais em 20,8%.
Campanhas educativas
Isadora acredita que seu estudo possa colaborar para medidas que visem a reduzir essa prática contra a mulher. Além disso, ela destaca uma iniciativa da Federação Paulista de Futebol (FPF) que foi adotada no Campeonato Paulista de 2022. Com o slogan Violência contra a mulher é um problema nosso – Denuncie! Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, a campanha resultou de uma colaboração da FPF com os clubes. “A campanha foi bastante veiculada durantes as transmissões dos jogos pela TV e por emissoras de rádio”, lembra a pesquisadora.
A pesquisadora também é integrante do grupo de pesquisas EconomistAs, da FEA, que visa a estudar as várias dimensões da diferença de gênero no Brasil.
Brasil fora da Copa
A eliminação do Brasil pela Croácia, na Copa do Mundo Fifa do Catar 2022, por certo foi um resultado considerado “negativo e inesperado”. E talvez possa ter causado episódios de violência contra a mulher. “É difícil a gente afirmar que pode ter um efeito, mas devemos considerar, com todas as evidências, que qualquer evento que cause uma decepção somado a um alto consumo de álcool e aglomerações pode representar, sim, situações de potencial risco para as mulheres”, considera a economista.
Isadora diz que não é possível afirmar se houve casos de agressões. “Eu ainda não tive acesso a dados que poderiam confirmar tal situação. Mas é de se esperar! Casos em que há ressentimento e decepção masculinas, e dentro de casa, somados ao alto consumo de álcool podem significar risco de ocorrências de violência contra a mulher”, reforça a pesquisadora.
Fonte Jornal da USP