Apesar de fala de Bolsonaro, não se vacina quem quer. Código Penal prevê pena para quem infringir determinação do poder público destinada a impedir propagação de doença contagiosa
Ao dizer aos brasileiros que só se vacina quem quer, o presidente Jair Bolsonaro pode estar incentivando um crime. A Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que ele mesmo editou, assinou e foi aprovada pelo Congresso Nacional, estabelece a vacinação compulsória, entre outras medidas. Está no artigo 3º, inciso 3, alínea d. “E no caso de se recusar a vacina ou descumprir o que for determinado por força dessa própria lei, podemos nos reportar ao artigo 268 do Código Penal, sobre infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa. É crime, está capitulado como pena de detenção de um mês a um ano e multa”, afirma o advogado Carlos Nicodemos.
Integrante da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB e presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ, Nicodemos é taxativo. “Estamos falando de uma pandemia, de um vírus que está matando pessoas. As vítimas já ultrapassam 120 mil. É nesse sentido que as autoridades, tanto do Ministério da Saúde, quando os gestores locais, devem intervir estabelecendo protocolos de obrigatoriedade e prioridade para os grupos em extrema vulnerabilidade.”
O advogado explica a previsão legal de criminalizar aqueles que estimulam recusar a vacina e que acabam levando à propagação da doença. “A obrigatoriedade está regulamentada no campo administrativo cível e encontra amparo penal a título de coibir aqueles que se negarem a fazê-lo. Qualquer omissão da autoridade pública – leia-se do Ministério da Saúde ou mesmo dos gestores locais – poderá ser apurada também a título de improbidade administrativa.”
Crime internacional
O Brasil pode ser penalizado internacionalmente, caso a vacinação compulsória não seja adotada. “Existem representações em face do Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, formulada por vários movimentos sociais”, relata Nicodemos. “Assim como existe no STF uma Adin (ação de inconstitucionalidade) no que tange ao descumprimento de normas constitucionais no enfrentamento à pandemia.”
O representante da OAB lembra, ainda, representações no Tribunal Penal Internacional, em Haia, Holanda, que responsabilizam o chefe de Estado, ou seja Jair Bolsonaro, e não o Estado, a nação brasileira. “Nesse sentido essa decisão, assim encaminhada, de se omitir e propagar o caráter facultativo da vacinação, pode ser dado como um elemento a incrementar essas denúncias e a própria ação no STF. E se apurar a responsabilidade não só do Estado brasileiro mas também do seu chefe de Estado, em razão da posição que ele adotou (estimular pessoas a recusar a vacina).”
O médico infectologista Caio Rosenthal lembra dos tempos em que brasileiros iam para a Europa e os países ficavam preocupados que poderiam levar doenças transmissíveis. “Hoje são eles que trazem para cá”, diz, lembrando o recente surto de sarampo trazido por turistas europeus, que não são vacinados.
Graças ao SUS
O SUS, destaca Caio Rosenthal, é o responsável por esse sucesso na imunização dos brasileiros contra uma série de doenças. “Contamos com o maior e um dos melhores programas gratuitos de imunização do mundo. E graças a isso não temos mais no Brasil poliomielite, rubéola , difteria, catapora etc., doenças que eram tão comuns no passado. E foi graças ao SUS e pelas extensas campanhas de vacinação que essas doenças foram praticamente erradicadas.”
O infectologista lamenta que nos últimos anos esse programa público de imunizações do SUS venha diminuindo por falta de incentivos governamentais. “Nos anos do governo Lula, o trabalhador quando colocava o filho na escola, tinha de apresentar a carteirinha de vacinações. Essa cultura está caindo, infelizmente, e não há incentivo governamental.”
Coordenador da Comissão Intersetorial de Vigilância em Saúde do Conselho Nacional de Saúde, Artur Custodio lembra que o programa de imunizações do SUS, um dos patrimônios do Brasil e que tem sido fundamental na defesa da vida, é estudado e admirado no mundo todo. “Um país deste consegue coberturas enormes, com campanhas públicas, para ricos, pobres”, observa.
Vacina está chegando
Caio Rosenthal reforça a importância da vacinação. “Vamos prestar muita atenção: as vacinas contra a covid-19 estão chegando e já que o presidente não acredita que a covid-19 é uma doença grave, pelo menos nós brasileiros que temos boa informação temos de divulgar que vacinas de modo geral são muito importantes, e as que chegarem para proteger, fazer a prevenção da covid, são fundamentais.”
Rosenthal lembra a vacinação contra gripe que reduz, ano a ano, o número de pessoas adoecidas. “Este ano a porcentagem foi baixíssima, porque tem campanha de vacinação anual contra a gripe e é de graça. As pessoas tomam para não morrer porque essa gripe mata. Nos Estados Unidos morreram milhões de pessoas com gripe.”
A vacinação, alerta o médico, é um direito de todos os brasileiros, e das crianças. “E deve ser obrigação dos pais levar seus filhos para receber todas as vacinas, que não são poucas. O Brasil é um dos países que mais vacina e que tem mais vacinas para prevenção de doenças. Na história da medicina, a vacina, depois da descoberta da penicilina, é o armamento que mais poupou vidas. Mais de 30 milhões de vidas, no mundo, são salvas porque existem vacinas para essas doenças.”
Veio para confundir
“Lamentável que a Presidência da República, mais uma vez, confunda a opinião pública, em vez de assumir o papel de proteção das pessoas”, diz Artur Custodio, sobre o incentivo de Bolsonaro a quem quiser recusar a vacina. Mestre em Saúde Pública, ele ressalta que a decisão sobre a vacinação contra a covid-19 não trata de direitos individuais, mas de proteção à coletividade. “Inclusive a importância disso para a saúde pública mundial, internacional. Uma pessoa consciente, que se negue a uma medida preventiva desse tipo, e que depois seja responsável pela contaminação de outra, com perigo de morte, está cometendo um crime contra saúde pública”, afirma.
Custodio critica ainda o fato de a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) repercutir a fala do presidente. “Faz um papel contra-educativo que beira as notícias falsas, as fake news.”
A “frase infeliz do presidente Messias Bolsonaro, e divulgada ainda por cima pela Secom”, também é citada por Caio Rosenthal. Para o infectologista, Bolsonaro presta um enorme desserviço. “A população já é tão carente, até de água potável. Agora vai querer destruir também o programa de imunizações do SUS. Porque não é uma frase solta ao vento. Tem uma mensagem por trás, obviamente pensada e dirigida. É a mesma coisa, a mesma estratégia daqueles que pensam que a Terra é plana, pessoas radicais, fundamentalistas como ele.”
Fonte: Rede Brasil Atual