A cidade de São Paulo vive uma crise humanitária sem precedentes, com a miséria, a falta de moradia e a fome atingindo milhares de famílias. Um dossiê produzido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal mostra que a situação nunca foi tão grave e começa a demandar atendimentos no sistema de saúde. Levantamento feito entre 1º e 14 de dezembro registrou que cerca de 6 mil pessoas buscaram ajuda em Unidades Básicas de Saúde (UBSs) devido à fome.
Das 483 UBSs que responderam ao levantamento, 122 afirmaram possuir demanda de atendimento para indivíduos com sintomas decorrentes da fome. A maior demanda desse atendimento ocorreu na zona sul da cidade, que respondeu por 53% dos casos. Ela é seguida pela região norte, com 20%. Outros 12% dos casos ocorreram na região leste, 9% na região oeste e 3%, no centro. Alguns casos não tinham a região demarcada.
Segundo o documento da Comissão de Direitos Humanos, essas pessoas estão em situação de rua e sem acolhimento por parte dos equipamentos da assistência social da prefeitura de São Paulo. O relatório aponta ainda que faltam equipamentos como centros de acolhida e restaurantes Bom Prato, indicados como responsáveis por suprir a demanda de alimentação da população de rua da capital. Com isso, muitas pessoas estão em locais que seria preciso se deslocar a pé por vários quilômetros para chegar nesses equipamentos, inviabilizando o atendimento.
Calamidade pública
O documento também destaca que o fim do programa Cozinha Cidadã, extinto pelo governo do prefeito Ricardo Nunes (MDB), no ano passado, agravou a situação. O programa chegou a distribuir 10 mil marmitas por dia. Após muitos protestos, a prefeitura restabeleceu cerca de 3.700 marmitas. O número, no entanto, que não atende a uma demanda ampliada por um cenário de inflação alta, desemprego e queda na renda, marcas do governo de Jair Bolsonaro (PL). Hoje, a população sem-teto na cidade de São Paulo está estimada em quase 40 mil pessoas, como explica o presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua, Robson Mendonça.
“A população continua desempregada, perdendo o emprego, sem poder pagar aluguel e sendo despejada. Houve muita reintegração de posse o que fez com que aumentasse catastroficamente a população em situação de rua na cidade de São Paulo e com isso a fome. E não foi gerado nenhum outro programa de combate à fome. Permaneceram as marmitas compradas pela prefeitura e repassadas à população, mas sem que fosse criado um diagnóstico real da necessidade dos cidadãos”, contesta.
Mendonça diz que nunca viu uma situação como essa e que as pessoas estão fazendo uma “via sacra” pra conseguir alimentos, já que muitos pontos de distribuição estão saturados. “Não tinha visto ainda chegar nessa calamidade pública que estamos passando agora, porque o camarada já está sendo privado do mais importante para a sua dignidade que é a moradia, ele tem problemas de saúde terríveis e vem a fome que acarreta um aumento catastrófico dos atendimentos no SUS, em que vemos hospitais, UBSs e AMAs super lotados e pessoas sem saber qual é o sintoma que está sentido. E nada mais do que a fome e a falta de nutriente básico para a sua sobrevivência”, lamenta o ativista.
Uma crise sem respostas
Coordenador da Pastoral do Povo da Rua, o padre Júlio Lancellotti avalia que uma crise humanitária como essa só foi vista no início dos anos 1990, no governo de Fernando Collor de Mello. “Só vi situação semelhante quando editaram o Plano Collor, congelaram todas as contas e muitas pessoas ficaram desesperadas. Agora é ainda mais grave do que naquela época, porque as pessoas não encontram trabalho, não têm casa, o número de pessoas que vão para a rua aumenta porque as pessoas ficam inadimplentes, não tem como se alimentar e os que ainda têm uma moradia precária precisam escolher entre morar ou comer. Então muita gente vai para a rua para comer”, adverte o pároco.
Para o padre Júlio, é urgente que o poder público crie programas emergenciais de renda básica e refeitórios comunitários, como era o caso do Cozinha Cidadã. Ele destaca que a situação é tão grave, que não adianta entregar doações às pessoas, porque elas sequer têm como preparar os alimentos. “Esse é um agravamento diário, contínuo e sem respostas. O que a gente percebe diariamente, mesmo nas igrejas, é uma busca constante de alimentos. É dramático que as vezes eles falam ‘pode ser um pouco de arroz, ou macarrão, o que tiver’. Porque as pessoas não têm nada, não têm o alimento e nem como fazer. O gás está muito caro e alguns estão cozinhando na lenha ou no etanol. A gente vive uma crise humanitária sem respostas à altura e que amenizem essa situação, que diminuam o impacto da miséria”, critica.
O dossiê dos casos de fome organizado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara lembra ainda da aprovação do Projeto de Lei 465/2021, de autoria da vereadora Erika Hilton (Psol). O PL cria um fundo municipal de combate à fome. Porém, o texto ainda não foi regulamentado pelo governo Nunes e não começou a ser efetivado.
Fonte: Rádio Brasil Atual