Dificuldade para tirar dúvidas e ausência de interação social estão entre as limitações do modelo adotado em 26 estados
A professora de História Elisa Mara Goulart, da rede estadual do Paraná, está no ensino público desde 1992. Atualmente lecionando em diferentes séries dos ensinos fundamental e médio, ela tem um total de 426 alunos sob sua batuta e conta que hoje enfrenta um desafio adicional em relação àqueles que já marcam a realidade do magistério: o sistema de tele-ensino.
O modelo vem sendo amplamente adotado pela Secretaria Estadual de Educação durante a pandemia, que provocou a suspensão das aulas presenciais em escolas de todas as regiões do país.
Um pacote com diferentes ações vem sendo implementado pelo governo local, que agora lança mão de aulas por meio de TV, canais no Youtube e aplicativos de celular para encaminhar conteúdos aos estudantes da rede pública. A modalidade conta como dia letivo e exige pontuação dos alunos por desempenho.
Para a professora Elisa, a adoção do método tem afetado negativamente o processo educacional, com destaque para os prejuízos ocasionados aos docentes, que tentam administrar problemas relacionados à falta de organização do trabalho e dos turnos por parte do governo. A questão, inclusive, é alvo de denúncia de entidades sindicais no Ministério Público Estadual do Paraná.
Elisa aponta que o modelo causa transtornos também naquilo que se refere à autonomia dos professores para a organização e a disposição dos conteúdos.
“Eles têm tentado nos convencer de que nós somos protagonistas nesse processo. Tem muita risada, piada e meme a esse respeito, inclusive. A gente é protagonista, mas eles dizem que você pode mexer nos conteúdos que a sede está mandando, mas dizem que não deve mexer muito, não é aconselhável. Dizem que você pode tirar as atividades, mas aí o aconselhável depois é não tirar. Então, é uma coisa muito complicada. Nunca na vida quis trabalhar com EAD, e agora estou metida nessa encrenca”, desabafa a educadora.
A expansão do sistema de educação remota é uma realidade nacional neste contexto de pandemia. Um levantamento feito pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) mostra que 25 estados e o Distrito Federal (DF) estão adotando a modalidade atualmente. Alguns deles utilizam apenas aulas pela televisão, outros lançam mão de plataformas virtuais e outros ainda mesclam os dois formatos, distribuindo os conteúdos por meio de distintos canais. Apenas o Tocantins não faz uso do método porque a rede de ensino estadual está em férias escolares antecipadas.
“Não há um padrão específico nacional. Por conta da pandemia, o carro estava andando e a gente teve que começar a fazer. Cada estado começou a se virar sozinho, achar uma saída, recriar as atividades, e os professores também”, afirma a presidenta do Consed, Cecília Amendola.
Nos diferentes estados, os secretários de Educação têm dito que a ideia é manter o vínculo dos estudantes com a escola e garantir uma rotina mínima de estudos neste momento de isolamento social. A presidenta do conselho ressalta que o modelo de ensino remoto tem passado por revisões periódicas.
“O que estamos fazendo, a cada 15 dias, um mês, é socializar nossas experiências, e aí vamos vendo o que tem dado certo e o que não tem dado. Mas o fato é que ninguém se preparou pra receber uma pandemia, então, foi necessária muita criatividade das secretarias, dos diretores, professores, de todo mundo, inclusive da família, que não está preparada pra ficar o dia inteiro com o estudante na sua casa. Então, tudo é muito novo”, admite a dirigente.
Adaptações na rotina
A microempreendedora Ceila Sodré de Carvalho tem duas filhas adolescentes na rede estadual de ensino no município de Vila Rica, extremo norte do Mato Grosso, que adota o modelo. Ela conta que as três têm vivido uma experiência diferente, que exigiu adaptações no cotidiano da família.
“A gente está gostando muito. Nós limitamos os horários, definimos algumas coisas pra poder criar uma rotina e, inclusive, até complementamos o conteúdo com pesquisas adicionais por nossa conta. Acho que todo meio de ensino é válido”, considera.
A microempreendedora pondera, no entanto, que percebe algumas desvantagens no método. “Apesar de estar achando bom, acho o sistema limitante. Na escola, sei que a metodologia é um pouco mais rígida. Eu valorizo os dois meios por conta das circunstâncias de agora, da pandemia, mas sei que a convivência das minhas filhas com os outros e com os professores em sala de aula, por exemplo, é muito importante, e agora elas estão sem isso”, sublinha a mãe.
A falta de convívio com a comunidade escolar é, inclusive, destaque na fala de diferentes estudantes ouvidos pelo Brasil de Fato. É o caso do secundarista Pedro Daniel, de 18 anos, aluno da rede pública do Paraná, onde o tele-ensino vem fazendo escola há algum tempo. Submetido ao modelo recentemente por conta das questões relacionadas ao coronavírus no país, Pedro desaprova a metodologia.
“Sinceramente, eu estou achando bem ruim, pois a comunicação e a interação com os professores são bem difíceis, e é difícil acompanhar o que eles passam pela TV ou pelo computador. Esse método de ensino parece mais complicado de entender, e é ruim porque não temos como tirar dúvidas no momento em que elas surgem. Caso você não entenda algo, não é como no colégio, onde os professores repetem até você entender”, compara.
O desabafo do estudante faz coro com a percepção da professora Elisa Mara Goulart, para quem a educação remota impede mecanismos considerados essenciais ao processo de repasse de conteúdo. “A gente acredita na interação social. A escola não é só conteúdo. É uma troca também de experiências, e essas vivências se refletem no fazer pedagógico e na construção do humano. É preciso sempre olhar pra isso”, afirma.
“Laboratório”
No Distrito Federal (DF), por exemplo, o governo iniciou, em abril, um processo de teleaulas com três horas diárias na TV Justiça para os cerca de 460 mil alunos da rede pública que estão em casa neste período. Também foi criada uma plataforma virtual para estudantes de ensino médio, mas, até o momento, essa duas programações não são consideradas como dia letivo, e sim como atividades complementares. Por conta disso, não contabilizam presença nem cobram pontuação dos alunos.
Os conteúdos abordados trazem histórias, práticas de esporte em casa, princípios de alfabetização, matemática, ciências, além de temas voltados à educação profissional e à Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Crítico do método, o Sindicato dos Professores do DF (Sinpro-DF) teme a eventual implementação efetiva do modelo de teleaulas. Para Rosilene Correa, da direção da entidade, a iniciativa seria uma espécie de laboratório para reduzir os investimentos em educação e, consequentemente, precarizar o ensino. Na visão da entidade, a medida também tem por trás interesses econômicos de empresas que comercializam pacotes com esse tipo de conteúdo.
“O discurso do governo é de que é uma excepcionalidade, pra atender a este momento, mas a gente sabe que as intenções não terminarão com a pandemia. Na verdade, é um bom ensaio que eles estão fazendo pros experimentos, e com certeza tem muita gente de olho grande, já vendo a educação como algo exposto a um balcão de negócios”, afirma Correa.
A diretora pondera que a restrição do sindicato não implica o entendimento de que a educação a distância seria necessariamente um modelo desprovido de qualidade. “Ela tem o propósito dela dentro de um projeto que tem que ser cumprido, que é um programa pra atender um público que já tem mais autonomia, maturidade, que não tem acesso à escola presencial no tempo certo, etc. Estamos falando aqui de ensino superior, de pós, enfim, mas pra nossa meninada, não é aplicável”, sublinha a dirigente.
Exclusão
O secretário de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Gilmar Soares, considera que a expansão do modelo é uma “tragédia” para o país. Ele aponta que o método favorece a exclusão porque há famílias que não têm acesso às tecnologias exigidas por esse tipo de ensino.
Uma pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), que auxilia o Comitê Gestor da Internet no Brasil na implementação de projetos e decisões, aponta que 39% dos domicílios brasileiros não têm acesso à internet por falta de computador.
Essa condição marca a realidade de 38% das unidades que estão no meio urbano e 44% daquelas localizadas na zona rural. Os dados são de 2018. Entre o público pesquisado, em 60% dos domicílios de área urbana e em 65% dos que se situam no campo, os entrevistados afirmaram que o motivo da falta de acesso à internet seria o preço do serviço, considerado alto. Para a CNTE, esse contexto faz com que a opção pelo modelo de educação a distância ponha em xeque a participação dos estudantes cujas famílias não podem bancar aparatos e serviços tecnológicos.
“Eu, por exemplo, tenho dois filhos no ensino fundamental. A secretaria de educação enviou um material com apostila pra que a gente imprimisse. Tive que pagar R$ 10. Pra não ter que sair de casa pra resolver isso, um pai teria que ter computador, tinta, internet, etc. Lembremos que muitos dos domicílios não têm nem acesso à banda larga e a outras ferramentas, então, você pode imaginar a dificuldade que é pros meninos dessas famílias acompanharem isso”, afirma o dirigente.
Soares frisa que, por conta dessas exigências, o sistema tende, com o tempo, a desfavorecer ainda mais as populações e comunidades historicamente vulneráveis, que têm maior dificuldade de acessar esses mecanismos.“Vai aprofundar as desigualdades, por exemplo, entre as escolas privadas e as públicas, vai atuar do ponto de vista de aprofundar o quadro de exclusão que nós temos com relação às escolas indígenas, quilombolas, do campo, na educação especial”, exemplifica, acrescentando que seria preciso garantir o direito à educação a todos os segmentos.
Por conta desse motivo, a CNTE está entre as entidades que defendem a retomada do ano letivo somente após o fim das políticas de isolamento e da pandemia. “E que, nesse retorno, seja assegurado aos estudantes aquilo que é de direito. Qualquer condição de eventualidade tem de ser muito bem discutida no retorno e dentro de cada contexto, pois estamos falando de uma realidade educacional em que há um alto contingente de estudantes que não tem computador ou tablet em casa”, finaliza o professor.
Fonte: Brasil de Fato