Neste artigo, publicado no jornal The New York Times em novembro de 2016, Mark Lilla, cientista político, jornalista norte-americano e professor de humanidades na Universidade Columbia, em Nova Iorque, analisa como o foco na pauta identitária foi decisivo para a derrota de Hillary Clinton nas eleições americanas de 2016.
Segundo ele: “a fixação em diversidade nas nossas escolas e na imprensa produziu uma geração de liberais e progressistas narcisisticamente inconscientes das condições fora de seus grupos autodefinidos, e indiferentes à tarefa de alcançar os americanos em todas as esferas da vida”, ao passo que, segundo ele, esta fixação “encorajou americanos brancos, rurais, religiosos a pensarem neles mesmos como um grupo em desvantagem, cuja identidade está sendo ameaçada ou ignorada”.
É uma verdade incontestável que os Estados Unidos se tornou um país mais diversificado. Também é uma coisa bonita de se ver. Visitantes de outros países, particularmente aqueles que têm problemas em incorporar diferentes grupos étnicos e fés, estão surpresos com o que conseguimos. Não perfeitamente, é claro, mas certamente melhor do que qualquer nação europeia ou asiática hoje. É uma história de sucesso extraordinário.
Como essa diversidade deve moldar nossa política? A resposta liberal padrão por quase uma geração agora é que devemos tomar consciência e “celebrar” nossas diferenças. O que é um princípio esplêndido de pedagogia moral – mas desastroso como uma fundação para políticas democráticas na nossa era ideológica. Nos últimos anos o liberalismo americano entrou em um tipo de pânico moral sobre identidade racial, gênero e sexual, que distorceu a mensagem do liberalismo e o impediu de se tornar uma força unificadora capaz de governar.
Uma das muitas lições da última campanha eleitoral presidencial e seu repugnante resultado é que a era do liberalismo identitário deve ser levada ao fim. Hillary Clinton estava em seu melhor e mais edificante momento quando falou sobre os interesses americanos em assuntos mundiais e como eles se relacionam com a nossa compreensão da democracia.
Mas quando se tratava de assuntos de casa, ela tendeu a seguir a trilha da campanha. Perdeu aquela visão ampla e escorregou na retórica da diversidade, chamando explicitamente eleitores afro-americanos, latinos, LGTB a cada parada. Esse foi um erro estratégico. Se você vai mencionar grupos nos Estados Unidos, é melhor você mencionar todos eles. Se não, aqueles deixados de fora vão notar e se sentir excluídos. O que, como os dados mostram, foi exatamente o que aconteceu com os brancos da classe trabalhadora e aqueles com fortes convicções religiosas. Exatamente dois terços de eleitores brancos sem nível superior votaram em Donald Trump, assim como 80% dos evangélicos brancos.
A energia moral que cerca a identidade, é claro, tinha muitos bons efeitos. A ação afirmativa reformulou e melhorou a vida corporativa. O “Black Lives Matter” entregou um alerta para cada americano com consciência. Os esforços de Hollywood para normalizar a homossexualidade em nossa cultura popular ajudaram-na a ser aceita nas famílias americanas e na vida pública.
Mas a fixação em diversidade nas nossas escolas e na imprensa produziu uma geração de liberais e progressistas narcisisticamente inconscientes das condições fora de seus grupos autodefinidos, e indiferentes à tarefa de alcançar os americanos em todas as esferas da vida.
Desde muito cedo nossas crianças estão sendo encorajadas a falar sobre suas identidades individuais, mesmo antes de tê-las. Na época em que elas chegam a faculdade, muitas presumem que o discurso da diversidade esgota o discurso político, e têm chocantemente pouco a dizer sobre questões perenes como classe, guerra, a economia e o bem comum.
Em grande parte, isso é por causa dos currículos de história do ensino médio, que anacronicamente projetam as políticas de identidade de hoje de volta ao passado, criando uma figura distorcida das principais forças e indivíduos que moldaram nosso país. (As conquistas dos movimentos de direitos das mulheres, por exemplo, foram reais e importantes, mas você não pode entende-las se você não compreende primeiro a conquista dois pais fundadores em estabelecer um sistema de governo baseado na garantia de direitos).
Quando os jovens chegam na faculdade, eles são encorajados por grupos de estudantes, membros da faculdade e também administradores, cuja tarefa em tempo integral é lidar com – e aumentar a significância de – “questões de diversidade”, a manter esse foco neles mesmos.
A “Fox News” e outros meios de comunicação conservadores fazem um grande esporte de zombaria da “loucura no campus” que envolve essas questões e, na maioria das vezes, eles estão certos. O que apenas joga nas mãos de populistas demagogos, que querem deslegitimar o aprendizado nos olhos daqueles que nunca pisaram num campus. Como explicar para o votante médio a suposta urgência moral de dar aos universitários direito de escolher os pronomes de gênero designados para ser usados quando ao abordá-los? Como não rir junto com aqueles eleitores de uma história de um brincalhão da Universidade de Michigan que escreveu em “Seu Majestade”?
Essa consciência da diversidade no campus ao longo dos anos foi filtrada pela mídia liberal, e não de modo sutil. Ações afirmativas para mulheres e minorias em jornais e radio difusoras americanos foram uma extraordinária conquista social – e até mudaram, literalmente, a face da mídia de direita, quando jornalistas como Megyn Kelly e Laura Ingraham ganharam proeminência. Mas parece também ter encorajado a suposição, especialmente entre jornalistas e editoras mais jovens, que simplesmente concentrando-se em sua identidade elas fizeram seu trabalho.
Recentemente eu realizei um pequeno experimento durante um sabático na França: por um ano inteiro eu li apenas publicações europeias, e não as americanas. Meu pensamento foi tentar ver o mundo como os leitores europeus viam. Mas foi muito mais instrutivo voltar para casa e perceber como as lentes da identidade tinham transformado as reportagens americanas nos anos recentes. Com que frequência, por exemplo, a história mais preguiçosa do jornalismo americano – sobre o “primeiro X a fazer Y” – é contada e recontada. A fascinação com o drama de identidade até afetou as reportagens estrangeiras. Por mais interessante que seja ler, diga, sobre o destino das pessoas transgênero no Egito, não contribui em nada para educar os americanos sobre as poderosas correntes políticas e religiosas que vão determinar o futuro do Egito, e indiretamente, nosso próprio. Nenhuma grande agência de notícias na Europa pensaria em adotar tal foco.
Mas é no nível da política eleitoral que o liberalismo identitário falhou mais espetacularmente. A política nacional em períodos saudáveis não é sobre “diferença”, é sobre comunalidade. E vai ser dominada por quem melhor capturar as imaginações dos americanos sobre nosso destino compartilhado. Ronald Reagan fez isso muito habilmente, seja o que for que alguém possa pensar de sua visão. Bill Clinton também, que pegou uma página do livro de estratégias e planos de Reagan. Ele apreendeu o Partido Democrata longe de sua ala consciente de identidade, concentrou suas energias em programas domésticos que beneficiariam a todos (como o seguro nacional de saúde) e definiu o papel dos Estados Unidos no mundo pós-1989. Permanecendo no cargo por dois mandatos, ele foi então capaz de realizar muito para diferentes grupos na coalisão Democrata. Políticas de identidade, por contraste, são largamente expressivas, não persuasivas. E é por isso que nunca ganham eleições – mas podem perde-las.
O novo interesse, quase antropológico, da mídia no homem branco revela tanto sobre o estado de nosso liberalismo, como faz sobre essa figura muito caluniada e previamente ignorada. Uma interpretação liberal conveniente sobre a última eleição presidencial diria que Trump ganhou em grande parte porque ele conseguiu transformar desvantagem econômica em raiva racial – a tese “whitelash” (uma forte reação de pessoas brancas aos avanços de outros grupos raciais). Isso é conveniente porque sanciona uma convicção de superioridade moral e permite aos liberais ignorar o que aqueles eleitores disseram que eram suas principais preocupações. Também encoraja a fantasia que a direita Republicana está condenada a extinção demográfica a longo prazo – que significa que os liberais têm apenas que esperar o país cair em seu colo. A surpreendentemente alta porcentagem do voto de Latinos em Trump deve nos lembrar que quanto mais tempo os grupos étnicos estão aqui nesse país, mais politicamente diverso eles se tornam.
Finalmente, a tese “whitelash” é conveniente porque absolve os liberais de não reconhecer como sua própria obsessão com diversidade encorajou americanos brancos, rurais, religiosos a pensarem neles mesmos como um grupo em desvantagem, cuja identidade está sendo ameaçada ou ignorada. Tais pessoas não estão na realidade reagindo contra a realidade de nossos diversos Estados Unidos (elas tendem, afinal, a viver em áreas homogêneas do país). Elas estão reagindo contra a onipresente retórica de identidade, que é o que eles querem dizer por “politicamente correto”. Os liberais devem ter em mente que o primeiro movimento de identidade na política americana foi a Ku Klux Klan, que ainda existe. Aqueles que jogam o jogo de identidade devem estar preparados para perde-lo.
Nós precisamos de um liberalismo pós-identitário, que deve basear-se nos sucessos passados do liberalismo pré-identitário. Tal liberalismo se concentraria em alargar sua base apelando aos americanos como americanos, e enfatizando as questões que afetam a vasta maioria deles. Falaria para a nação como uma nação de cidadãos que estão nisso juntos e devem ajudar uns aos outros. Quanto a questões mais estreitas que são altamente carregadas simbolicamente e podem afastar aliados em potencial, especialmente aquelas que tocam em sexualidade e religião, tal liberalismo trabalharia silenciosamente, sensivelmente e com um senso de escala adequado. (Parafraseando Bernie Sanders, os Estados Unidos estão fartos de ouvir sobre malditos banheiros liberais).
Os professores comprometidos com tal liberalismo direcionariam a atenção em sua principal responsabilidade política em uma democracia: formar cidadãos comprometidos conscientes de seu sistema de governo e as principais forças e eventos da nossa história. Um liberalismo pós-identitário também enfatizaria que a democracia não é apenas sobre direitos; também confere deveres em seus cidadãos, como os deveres de se manter informado e votar. Uma imprensa liberal pós- identitária começaria educando a si mesma sobre as partes do país que foram ignoradas, e sobre o que importa lá, especialmente religião. E levaria a sério sua responsabilidade de educar os americanos sobre as principais forças moldando a política mundial, especialmente sua dimensão histórica.
Há a alguns anos atrás eu fui convidado para uma convenção sindical na Flórida, para falar em um painel sobre o famoso discurso de Franklin D. Roosevelt de 1941, Quatro Liberdades. O salão estava cheio de representantes de seções locais – homens, mulheres, negros, brancos, latinos. Nós começamos cantando o Hino Nacional, e então nos sentamos para ouvir uma gravação do discurso de Roosevelt. Enquanto eu olhava para a multidão e via a variedade de rostos diferentes, fiquei impressionado em como eles estavam focados no que eles compartilhavam. E ouvindo a voz comovente de Roosevelt enquanto ele evocava a liberdade de expressão, liberdade de crença, liberdade de querer e a liberdade do medo – liberdades que Roosevelt exigiu para “todos no mundo” – lembrei-me de quais são os verdadeiros fundamentos do liberalismo americano moderno.
Mark Lilla, professor de humanidades na Columbia e estudioso visitante na Russell Sage Foundation, é autor, mais recentemente, de “The Shipwrecked Mind: On Political Reaction.”
Fonte: Rádio Peão Brasil
Tradução: Luciana Cristina Ruy