Violência, dificuldade para conseguir auxílio, falta de teto seguro: a vida dos LGBTs durante a quarentena

 

Aos 29 anos, Rafaele Ferreira é estudante de artes visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Seu sustento, no entanto, vinha de seu ofício como cabeleireira — majoritariamente de cortes diferentões. Autônoma, com a chegada da pandemia provocada pelo novo coronavírus ela viu a renda secar.

Sem conseguir pagar o aluguel da casa em que morava, na Lapa, no centro do Rio, com duas amigas, teve que voltar para a residência dos pais, na Barreira do Vasco, zona norte da cidade, de onde havia saído três anos atrás. Lá, não aceitam sua orientação sexual. "Minha mãe é muito religiosa, não aceita e até hoje não entende. Aqui, não se pode falar da minha sexualidade. Eles não perguntam, eu não falo."

Este domingo, 17, é Dia Internacional Contra Homofobia, Transfobia e Bifobia. A data cai em meio à pandemia, que atinge também de forma cruel a população LGBT, sobretudo os mais pobres, sem renda, sem acolhimento familiar e marginalizados.

"Com o isolamento social, muitos deles, principalmente autônomos, desempregados e informais, ficaram sem remuneração e precisam voltar para seus núcleos familiares, de onde já tinham sido expulsos. Revivem então inúmeras violências ou se encontram em situação de rua", diz Camila Marins, editora da revista "Brejeiras" e integrante da organização Ocupa Sapatão.

Quando o foco são travestis e transexuais, a situação se agrava. Segundo dados do Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 90% do grupo é composto por trabalhadores do sexo. Como prevenir o contágio para quem o contato físico é justamente a fonte de renda?

Uma população invisível

O Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, da ministra Damares Alves, informou na última sexta-feira (15) que a violência doméstica contra mulheres aumentou durante a quarentena. O Disque 180, canal para denúncias desse tipo de crime, viu em abril sua procura crescer 35% em relação a março.

Mas não há dados sobre o aumento de violência contra a população LGTB. Universa pediu ao ministério informações sobre políticas públicas direcionadas a essa população na pandemia, pedidos de auxílios emergenciais feitos por eles e ações relacionadas a trabalhadores do sexo. A pasta afirmou que só no fim do semestre deve ter algum levantamento.

"Hoje, mais do que lembrar a data, precisamos reivindicar o papel do Estado, ou seja, a implementação de políticas públicas específicas e a defesa do Sistema Único de Saúde", afirma Camila Marins.

"Uma dessas políticas públicas poderia ser a abertura de hotéis para abrigamento de LGBTIs durante a pandemia, com garantia de alimentação. Em abril, a rede hoteleira do Rio de Janeiro registrou 5% de taxa de ocupação, enquanto milhares de LGBTIs vivem em situação de violência."

Não há dados e talvez esse seja o principal dado. Existe uma política de invisibilidade. A subnotificação é uma política de Estado. Quando você não mapeia, você não tem problema e, sem problema, não há o que resolver.

 

"Meu nome é Clay Kardashian"

Organizações civis pelos direitos da população LGBT se mobilizam pelo país para ajudar essa população, distribuindo cestas básicas, materiais de higiene pessoal e de limpeza, além de providenciar assistências variadas.

"Estimo que em alguns lugares do país a busca por ajuda aumentou em 400%", diz a travesti Simmy Larrat, da Atração (Associação Baiana de Travestis, Transexuais e Transgêneros em Ação). "A maior demanda que temos hoje é por CPF. Sem CPF você não consegue nada e muita gente não tem."

Bruna, do Antra, acredita que tenha atendido, pessoalmente, mais de 300 pessoas trans que estavam com problemas para conseguir o auxílio emergencial. "São pessoas que às vezes nem se entendem como pessoas, nem acham que têm direito a nada."

Aos 19 anos, Clayde Kardashian é transexual e vive abrigada na ocupação Casa Nem, instituição do Rio de Janeiro de acolhida para LGBTs em situação vulnerável. Ela trabalha no mercado do sexo "só quando precisa mesmo", conta. Como milhares de brasileiros, Clay, como gosta de ser chamada, ficou sem renda durante a pandemia do novo coronavírus. Cadastrou-se para receber o auxílio emergencial, mas teve problemas.

"Coloquei meu nome social e meus dados. Clay Kardashian é meu nome e eu quero ser chamada e respeitada pelo meu nome. Aí apareceu que meus dados não foram encontrados. Eu desisti de fazer. Em uma segunda tentativa, resolvi tentar meu nome de registro, o nome com que nasci. Aí deu certo. Acho que há transfobia e discriminação de identidade de gênero", diz ela.

Os sistemas para alteração do nome social não são integrados. Você faz a retificação no Detran, mas precisa fazer também na Receita Federal e em todas as instâncias pelas quais você já passou. A cada nova instância é preciso passar por um novo constrangimento

Maria Eduarda, advogada trans, presidente do grupo Pela Vida e membro da comissão de diversidade de gênero da OAB

Casa Nem: um porto seguro para muitos

Pedro Lucas Tavares, 20, é um homem trans que está, durante a pandemia, vivendo na Casa Nem. "Se eu não tivesse vindo para cá, teria ficado na rua", diz ele. Pedro, que há um ano mora de favor na casa de várias pessoas, viu-se sem ter onde dormir quando o isolamento social começou — e não quis voltar para a casa do pai, que o expulsou por não aceitar sua identidade de gênero.

À frente da ocupação, a ativista transexual Indianare — que já distribuiu cerca de 1.800 cestas básicas com apoio da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual, da Secretaria Municipal de Educação, de empresas privadas, ONGs e doadores físicos — conta que viu a demanda por abrigo crescer em meio à pandemia. "Depois que saiu o auxílio emergencial do governo, algumas pessoas foram embora", diz.

Não é o caso de Pedro, que, mesmo tendo recebido os R$ 600, acha melhor ficar por lá do que voltar para a casa dos pais. "Minha mãe se estressava com meu jeito de falar, de andar, com as minhas roupas. Meu pai me dizia que ali as coisas iam ser do jeito dele, me ameaçou, apanhei", conta ele.

"Quando eu disse que era trans, ele ameaçou me matar. Antes, quando eu falava que queria sair de casa, ele me trancava no quarto. Nesse dia, ele me expulsou." A Casa Nem, assim, virou um porto seguro.

O que os estados têm feito?

Universa entrou em contato com todos os estados do Brasil em busca de saber quais foram as medidas tomadas em relação às necessidades das pessoas LGBTs na pandemia. Apenas seis responderam.

AL: diálogo

A Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) de Alagoas, responsável pela articulação de políticas destinadas à população LGBT, afirmou que tem mantido diálogo permanente com as lideranças LGBT para apurar casos de violação de direitos humanos e direcioná-los, de acordo com a demanda, para as demais secretarias, como a de Saúde e Assistência Social, ou acionando órgãos da Justiça.

PE: serviços remotos

Já a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Pernambuco (SJDH-PE) informa que tem dado continuidade, de forma remota, aos serviços do Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), voltado à população LGBT+, a fim de garantir os direitos desta população, prevenir e enfrentar qualquer situação de LGBTfobia, "na certeza que esta é uma das formas mais graves de violação da dignidade humana".

ES: cestas básicas

No Espírito Santo, a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos afirma que mantém o diálogo com a população LGBT+ a fim de acompanhar suas necessidades, em especial divulgando massivamente os canais de denúncias. Além disso, as atividades do Conselho Estadual LGBT continuam ocorrendo de forma online e o programa ES Solidário oferece cestas básicas, kits de higiene e de limpeza para coletivos LGBT+.

RJ: atendimento

No Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Direitos Humanos informa que já distribuiu cerca de mil cestas para a população LGBT mais vulnerável e que os oito Centros de Cidadania e um Núcleo de Atendimento Descentralizado estão funcionando diariamente. Casos de LGBTIfobia estão sendo recebidos e encaminhados à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.

PA: abrigos

A Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda informa que está acolhendo pessoas em situação de vulnerabilidade social em abrigos nas cidades de Belém, Santarém e Marabá -- entre os acolhidos, há grupos de população trans. Eles recebem alimentação diária, kits de higiene e roupas e participam de atividades de esporte e lazer, além orientações da equipe de assistência social.

TO: cestas básicas

A Secretaria de Estado da Cidadania e Justiça (Seciju), por meio da Gerência de Diversidade e Inclusão Social, diz que durante a pandemia está arrecadando cestas básicas e distribuindo para a comunidade LGBT. Além disso, afirma a pasta, deve iniciar ainda este mês um projeto cujo objetivo é visitar os pontos trans do estado para entregar máscaras e álcool em gel.

 

Fonte: Universa