O filme indiano, “O Tigre Branco” (2021), de Ramin Bahrani, produção da Netflix, consegue com rara sensibilidade mostrar como o sistema capitalista corrói a alma humana e destrói as relações entre as pessoas. Principalmente porque o atual estágio desse sistema tenta mascarar a luta de classes com a ideia hegemônica de empreendedorismo e meritocracia, onde parte da classe trabalhadora tenta superar a pobreza de maneira individual com objetivo de “se dar bem”, de enriquecer e tornar-se patrão.
Baseado no livro homônimo, do escritor indo-australiano Arovind Adiga, publicado em 2008, o filme retrata como os valores da burguesia se interiorizaram em parte da classe trabalhadora, dando razão ao humorista Bemvindo Sequeira, criador da expressão “pobre de direita”, aqueles que sonham em se transformar em burgueses.
Sem ler o livro, não há como fazer comparação entre as duas linguagens artísticas, mas a obra cinematográfica nos leva a pensar sobre o que a globalização capitalista está fazendo com o mundo, tornando os ricos cada vez mais ricos e a imensa legião de pobres cada vez mais na miséria.
Um pouco como o brasileiro “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, o filme indiano apresenta uma Índia dividida em duas castas como diz o protagonista Balram (Adarsh Gourav). Ele vê, a grosso modo, a casta dos “com barriga”, que vivem na fartura e exploram e humilham quem vive do trabalho e os “sem barriga”, que vivem de vender a sua força de trabalho, mas com uma mentalidade serviçal, que os leva a se submeterem a humilhações sem precedentes.
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Balram vê a sua chance de sair do vilarejo, de sua família e da miséria como motorista de Ashok (Raskummar Rao) e sua mulher Pinky (Priyanka Chopra Jonas). O trio brilha em interpretações brilhantes.
O protagonista-narrador, Balram conta a sua história ao escrever um e-mail ao dirigente chinês em visita à Índia. Com a vivacidade peculiar aos trabalhadores que se veem na necessidade de maneirismos para driblar a intransigência e a soberba patronal.
O filme reflete sobre a corrosão da humanidade pelo capital destruidor de vidas e da própria humanidade. Capital cada vez mais concentrador de riquezas em cada vez menos mãos e ampliador da miséria, que é igual em qualquer canto, como cantam os Titãs.
Mesmo com as suas peculiaridades, milhões de indianos vivem à deriva da sociedade, humilhados e profundamente serviçais. Ao mesmo tempo que nutrem uma vontade de não mais se submeter aos patrões, que os tratam como animais.
Balram é uma espécie de Macunaíma – personagem de Mário de Andrade, livro publicado em 1928 e filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969 –, um herói sem caráter, propenso a qualquer coisa para se dar bem na vida.
Entre o sul-coreano “Parasita” (2019), de Bong Joon Ho, que enxerga a saída individual para a superação da miserabilidade e o brasileiro “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que vê a união de forças para vencer o opressor, “O Tigre Branco” denuncia as mazelas de um sistema corrosivo e apresenta a falta de consciência da maioria da classe trabalhadora que os leva a sonharem com a saída da miséria e enriquecerem.
Ao mesmo tempo Ashok, filho da burguesia indiana, e sua esposa Pinky se deslumbram com a meca do capitalismo, os Estados Unidos como forma de superar os traços da cultura indiana em decadência por causa do avanço do capital. Sistema que avança na corrupção de grupos políticos por uma burguesia ávida de se manter no poder a qualquer custo. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.
O filme por vezes remonta ao neorrealismo italiano, movimento cultural surgido após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, mostrando a realidade nas telonas para refletir sobre e mudá-la.
Em 2h05, o espectador fica preso ao filme pelas atuações impecáveis do elenco, a fotografia, a trilha sonora e uma montagem com destaque para o protagonista e a sua falta de perspectivas até vislumbrar uma chance de virar o jogo.
“O Tigre Branco” é um claro exemplo da necessidade das emissoras brasileiras diversificarem as suas programações exibindo filmes de vários países e não se submeterem aos “enlatados” estadunidenses. Enlatados são fracassos de bilheteria nos Estados Unidos, de baixa qualidade, em geral, que por isso são empurrados para emissoras de TV de outros países, quando estas compram alguns filmes de grande público. Aliás, pouco se vê filmes brasileiros com grande destaque nas TVs daqui.
O desejo reprimido, a falta de educação, a necessidade de trabalhar muito cedo e de se submeter a condições de vida indignas sintetizam o filme. indiano. Quem tem acesso à Netflix deve assistir.
Festival francês
Ainda dá tempo de assistir ao My French Film Festival, que termina no dia 15. São 33 obras com poucas possibilidades de serem exibidos por aqui, a não ser em cineclubes, quando passar a pandemia. Dez longas e 10 curtas disputam os prêmios. Totalmente de graça
Fonte: Rádio Peão Brasil