São eles quem colocam para girar as bicicletas dos entregadores por aplicativo, quando um pneu fura ou algum outro imprevisto acontece no dia a dia. Os mecânicos de rua surgiram espontaneamente para dar apoio aos garotos que carregam as bags nas costas para cima e para baixo. Na humildade, ganharam a confiança e o respeito daqueles que trabalham muito, ganham pouco e não têm grana para bancar consertos em bicicletarias chiques da capital paulista.
De forma geral, os reparos acontecem no chão das calçadas ou ao lado das ciclovias mais movimentadas. Dos sacos e caixas que levam consigo surgem ferramentas e apetrechos capazes de devolver ao trampo, em minutos, a bicicleta de um entregador que teve algum contratempo. E o melhor é que os consertos custam, em média, de R$ 5 a R$ 10, no mínimo três ou quatro vezes menos que em uma bicicletaria tradicional. Sai um valor razoável para quem precisa se matar para tirar R$ 30 por dia em longas jornadas de trabalho.
Todo entregador que passa pela rua Barão de Itapetininga, perto do Theatro Municipal, conhece bem a dupla formada por Philipe Matheus de Carvalho, 20, e Rodolfo Pereira da Silva, o Mineiro, 28 anos. Os dois dividem as ferramentas e o conhecimento para colocar para rodar o exército de caixinhas nas costas que circula pela região central. “Aqui é um ponto por onde todo mundo tem que passar, porque estamos na saída do viaduto do Chá”, afirma Carvalho, que já foi ambulante, trabalhou para aplicativos, mas decidiu se dedicar há seis meses à mecânica no calçadão. “Muito dinheiro não conta. Eu gosto mesmo é de mexer com bicicleta.”
Especialista em bikes motorizadas, o colega Mineiro ressalta que o espírito de camaradagem está acima da grana. Não são raras as vezes em que ele se coloca no lugar do outro e não cobra nada pelo reparo. “Teve um 'brother' que quebrou a corrente outro dia, às 23h. Ele morava na zona leste e não tinha dinheiro para ir embora de condução. Arrumei a bicicleta e ele conseguiu ir para casa, mesmo sem um real no bolso.”
Inventor cria próprias ferramentas
Tiago Assunção Amaro, 22 anos, salva as bikes dos seus colegas de bag e aplicativo durante a noite na região central. Além de trabalhar levando comida de lá para cá, ele também é mecânico e faz remendos e consertos em geral na calçada da avenida Ipiranga, quase na esquina com a São João, até as 2h, quando nenhuma bicicletaria está aberta.
“Só não faço coisa que não dá para fazer ali mesmo, como consertar o quadro da bicicleta. Mas estou tentando até montar uma máquina de solda para resolver isso”, diz.
A resposta expõe outro lado do entregador que também é mecânico. Ainda sem grana para comprar os equipamentos típicos de uma bicicletaria, Amaro arruma tempo para inventar suas próprias ferramentas com o que encontra pela rua. Foi assim que criou uma espécie de compressor para encher pneu, usando, entre outros, um extintor de incêndio. Também fez de uma mesa e de velhas câmaras de ar o suporte para suspender as bikes durante os reparos.
A paixão pelas bicicletas vem de pequeno. Sem grana para levar em bicicletarias, aprendeu a fazer os consertos por si mesmo. Agora, ajuda quem precisa e cobra barato ou quase nada. “Se o cara não tiver nada, faço na camaradagem. Tem aqueles que reconhecem e dão alguma moeda para comprar o material.”
Em média, Amaro faz de 10 a 20 remendos por dia. Durante o carnaval, o movimento aumenta bastante. “O pessoal quebra muita garrafa na rua e o que mais tem é pneu furado”, diz.
Ajuda no orçamento
Já faz pouco mais de um ano que Aroldo Fernandes dos Santos, 65 anos, conserta bicicletas dos entregadores na avenida Brigadeiro Faria Lima, perto do largo da Batata (zona oeste). Para ele, é uma “ajudinha” no orçamento e também uma distração.
“Eu não tenho preço. Eles vêm aqui e, se tiver condições, eu arrumo. Eles ajudam com R$ 5, R$ 6”, conta. “Agora, se vem um desses [ciclistas] de fim de semana, por R$ 30 ou R$ 40 eu não conserto o pneu deles. Ele estão passeando, com bicicletona de R$ 15 mil. Mas também eles só param aqui quando estão com a corda no pescoço e não sabem o que fazer”, completa.
Depois de 26 anos na prisão, Santos passou a valorizar cada dia fora das grades e a bike o ajuda nisso. “Qualquer lugarzinho onde você falar que tem liberdade, lá eu estou. A bicicleta me dá a liberdade para não sofrer.”
Santos conta que é viciado em bikes desde pequeno e que costuma fazer longas viagens pedalando. Ele gasta, por exemplo, um mês para chegar em Lages (SC), onde vive a sua família.
A bike que leva Santos para outros estados não tem marca ou peças que despertem a curiosidade. Mas leva consigo, em detalhe, um crucifixo pendurado no guidão. “Essa aqui é meu ‘urbe’ [Uber]. Eu não ando sem ela, não sei ficar sem uma bicicleta. Vou aonde eu quero.”
O entregador Erik Felipe da Silva, 29 anos, não consegue imaginar como seria sua rotina sem a dupla da rua Barão de Itapetininga. “Minha bikezinha iria parar. Sem meu mecânico, eu não trabalho. Uma hora ou outra, sempre dá manutenção”, diz.
Silva era ajudante de cozinha até março e agora é mais um entre tantos que sofreram com a crise provocada pelo coronavírus. “Na pandemia, o restaurante não está vendendo e tive que vir para a rua. Chego de manhã e saio à noite.”
A grana, claro, é sempre curta e não há tempo a desperdiçar. Por isso, ele conta com a agilidade dos mecânicos de rua para não perder entregas e se manter sempre online. “Você coloca a bike hoje na bicicletaria para pegar só amanhã. Daí o dia não rende. Aqui, ele bota para rodar na mesma hora.”
Silva também tem consigo a confiança dos mecânicos, em uma relação que permite o fiado. “Aqui é na palavra”, diz o entregador.
Bicicletarias fora do itinerário
Se entre os companheiros de rua a camaradagem é a regra, o mesmo os entregadores não dizem sobre as bicicletarias em bairros ricos. Quem roda com a caixa nas costas afirma que é muito caro fazer reparos na zona oeste e na região central da capital paulista, por isso a importância dos mecânicos de rua.
“Eles preferem mexer em bike cara”, diz Gabriel Rosa Novaes Santos, 18. “Mesmo com dinheiro, às vezes, eles não pegam”, conta. Freio, cabos das marchas, catracas e pedivelas costumam se desgastar rapidamente nas longas jornadas diárias. Fora os furos, frequentes.
Para rodar pela cidade, Santos gastou cerca de R$ 800 em melhorias na bike. Um dos investimentos feitos por ele foi na pintura, originalmente verde, como mostra o descascado. Gastou R$ 15 em uma lata de spray para deixar o quadro preto. “Aqui é Corinthians”, diz o morador de Itaquera (zona leste), com a camisa do Timão.
Fonte: Agora SP