Ao ser tocado pela realidade da periferia, da qual era meio protegido pela mãe, uma técnica em enfermagem, guerreira como a maioria das mulheres brasileiras, Maurício se depara com o racismo e com o genocídio da juventude negra, pobre e periférica
O filme de Jeferson De, M8 – Quando a Morte Socorre a Vida (2020) está em cartaz na Netflix. Ambientado no Rio de Janeiro, é inspirado no livro homônimo de Salomão Polakiewicz, publicado em 1996. Antes do país estabelecer cotas raciais e sociais nas universidades, portanto.
Mas essa temática faz parte do filme para retratar as dificuldades enfrentadas por estudantes cotistas, principalmente em cursos “reservados” para a elite, como Medicina. Maurício (Juan Paiva), é o único negro numa sala repleta dos filhos da elite branca.
Criado por Cida (Mariana Nunes), sua mãe, Maurício mora na favela e vai de ônibus para ao curso, onde não é o “seu lugar”. Chega sempre chega atrasado por causa da distância, leva marmita e faz amizade com dois colegas brancos. Um gay assumido e uma garota com a qual engata um relacionamento.
Além de Juan Paiva e Mariana Nunes estão no elenco, Zezé Motta, Lázaro Ramos, Ailton Graça, Léa Garcia, Rocco Pitanga, Raphael Logam e Tatiana Tibúrcio.
Mas a obra não fica apenas na solidão de um estudante negro, pobre e favelado num curso universitário de “brancos” e “ricos”. Maurício começa a questionar certos procedimentos em relação aos cadáveres destinados aos estudos, a partir do momento em que dá de encontro com uma manifestação de mães, no centro da capital fluminense, exigindo respostas sobre o paradeiro de seus filhos. Todos negros e pobres, como se vê na realidade.
Exatamente o ponto nevrálgico colocado por Jeferson De. Na tentativa de chocar com a realidade. Além do tema do racismo, o filme transborda em humanidade no sentido em que coloca a solidariedade como ponto central da esperança de algum dia o Brasil se transformar numa sociedade de oportunidades iguais para todas as pessoas.
Ao ser tocado pela realidade da periferia, da qual era meio protegido pela mãe, uma técnica em enfermagem, guerreira como a maioria das mulheres brasileiras, Maurício se depara com o racismo e com o genocídio da juventude negra, pobre e periférica. Ele se esforça para saber de onde vinham os cadáveres “doados” para os estudos na universidade ao questionar porque eram todos negros.
O filme choca por expor claramente na tela qual é o “lugar do negro” numa sociedade profundamente racista. Maurício chega a ser confundido com um funcionário por um estudante. Mesmo com um certo misticismo revelado por idas a um terreiro de umbanda, a religião de Cida e a visão que Maurício tem do cadáver M8 em busca de solução para o seu caso, a obra circula entre a magia, a ficção e a realidade nas entrelinhas, aliás nas imagens, na fotografia e na montagem.
É aí, numa visão espiritualista, que a morte socorre a vida. A vida de uma mãe que encontra o corpo de seu filho e pode sepultá-lo para finalmente seguir adiante, mesmo com todo o sofrimento acarretado pela dor da perda de um filho. Inimaginável.
Socorre também a vida de Maurício que passa a entender melhor a sua condição na periferia, na universidade, no mundo. Quando o rapaz descobre o seu lugar, não o lugar que lhe é destinado pela sociedade patriarcal e racista. O lugar do enfrentamento ao que lhe oprime e tenta a todo momento tirar-lhe o sentimento de pertencimento.
Ao tratar da morte, o filme realça a necessidade de se viver mesmo quando tudo parece estar contra a vida. Vale a pena resistir. É assim que a morte pode socorrer a vida porque o sonho nunca acaba e mantém a esperança em um outro mundo, totalmente possível. Basta acreditar. Para não perder o hábito: Fora Bolsonaro.
Como o diretor da obra define em entrevista ao G1, o filme “fala sobre a nossa ancestralidade. Sempre temos um passado que nos conta e ilumina o nosso caminho. Que essa ancestralidade nos una com pessoas e seja uma coisa positiva, mesmo quando há morte”.
Fonte: Rádio Peão Brasil