Especialistas afirmam que ausência de diversidade fragiliza democracia e compromete direitos de vulneráveis
A democracia do Brasil enfrenta uma desigualdade representativa em todos seus poderes, principalmente no Legislativo. Embora a distância de representação entre a elite e a grande maioria da população excluída venha sendo reduzida, ainda é muito desproporcional. Como exemplo disso, de todos os deputados e senadores no Congresso atualmente, apenas 17,8% são negros – que representam 55% da sociedade.
Nas eleições de 2020, a plataforma 72 Horas compilou com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a distribuição dos fundos públicos para financiamento de campanhas. “Nossos estudos demonstram que a cada R$ 1 repassado do fundo especial para candidatos homens e brancos, apenas R$ 0,08 foi repassado para candidatas mulheres pretas. E R$ 0,0018 para candidatas mulheres indígenas”, afirma Fefa Costa, idealizadora da plataforma em entrevista ao Congresso em Foco.
A desigualdade representativa no Legislativo deve ser uma das pautas prioritárias para esse ano. O analista político Antônio Augusto de Queiroz, ex-diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), afirma ser fundamental reduzir, em 2022, a sub-representação de negros, mulheres, indígenas e LGBTQIA+. “Nós temos um Congresso conservador e a eleição desses grupos mudaria esse perfil. O Brasil tem muitas políticas públicas atrasadas, seja em relação ao meio ambiente, combate ao preconceito ou até sobre direitos sociais. Então a inclusão representativa oxigena o parlamento”, diz Queiroz. Ele acredita numa mudança de cenário já neste ano eleitoral.
A relação entre desigualdades e a fragilidade na representação desses grupos enfraquece a democracia no Brasil. Um relatório da Oxfam Brasil intitulado Democracia Inacabada, apresentado no ano passado, explica como a participação e a representação popular são instrumentos indispensáveis para efetivar comandos constitucionais por uma sociedade mais justa e igualitária.
Degeneração democrática
O estudo, inclusive, alerta que a democracia depende da existência de um padrão de igualdade entre os cidadãos. Caso contrário haverá uma influência desproporcional sobre aqueles que se encontram em posição de governo. “As instituições públicas tenderão a reforçar os mecanismos de desigualdade e a democracia se degenera, até entrar em crise. Assim, não seria incorreto dizer que, sem um padrão mínimo de igualdade, a democracia sempre estará incompleta. Pois não será capaz de refletir o interesse de todos os atores da sociedade de maneira equânime”, afirma o professor de Direito, Oscar Vilhena Vieira, da Fundação Getulio Vargas (FGV), no documento da Oxfam.
Ao analisar a relação entre desigualdades e democracia, o estudo da Oxfam aponta que as mulheres negras representam 27,8% da população brasileira, mas ocupam apenas 2,53% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Além disso, no ranking anual de mulheres nos parlamentos nacionais da Inter-Parliamentary Union (IPU), o Brasil ocupa só a 133ª posição, numa lista de 192 países.
Desde 1998, o número de deputadas federais cresceu, mas ainda está longe de corrigir a desigualdade de gênero do Legislativo. Naquele ano, 484 homens ocupavam as cadeiras da Câmara Federal, com apenas 29 mulheres eleitas. Já em 2018, 436 representantes masculinos foram eleitos, ante 77 deputadas federais. No Senado, o problema é ainda maior: de 81 cadeiras, apenas 10 são ocupadas por senadoras. Nenhuma é negra.
A desigualdade representativa no Legislativo também é observada entre os negros ou indígenas. Na Câmara, 126 parlamentares autodeclarados negros ou indígenas foram eleitos em 2018, representando 24,56% dos assentos da Casa. O total representa 23 parlamentares a mais do que no pleito anterior, em 2014 – um aumento de 4,87%. Ou, seja, três em cada quatro deputados são brancos.
‘País de poucos’
Para o professor Douglas Belchior, fundador da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra Por Direitos, a ausência de diversidade no parlamento é reflexo da história do Brasil. “Os espaços de poder seguem essa lógica de representar poucos. Homens, brancos, ricos ou corporações. O Brasil real nunca foi representado em seus espaços de poder. Então, essa eleição é, mais uma vez, o momento de enfrentar esse desafio e garantir a presença de povo. É difícil, pois a lógica eleitoral continua viciada, com um modelo em que o poder econômico determina o resultado. Mas continuaremos lutando para eleger representações populares”, afirma Belchior.
A partir desse déficit representativo na democracia, sem camadas diversas nos espaços decisórios, o resultado é a falta de políticas públicas que olhem para essas populações para reduzir a desigualdade. De acordo com Douglas, a atual composição do Congresso Nacional facilita agendas conservadoras e a aprovação de reformas que prejudicam o setor mais vulnerável.
“O machismo, a homofobia e o racismo são próprios da história brasileira. Por isso, a presença desses grupos no parlamento é fundamental para enfrentar esses preconceitos. E, acima de tudo, formular políticas a nosso favor. Quem vive as dores dessas necessidades, do preconceito à falta de saneamento básico, pode formular melhores saídas que vão melhorar a vida dessas pessoas”, observa o fundador da Uneafro.
No ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou o novo Código Eleitoral, que tem sua vigência a partir da eleição deste ano. O texto traz cinco proposições com mudanças na legislação eleitoral e partidária. Entre elas, uma contagem em dobro, exclusivamente para fins de distribuição entre os partidos dos recursos dos fundos eleitoral e partidário dos votos dados às candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados.
Mudanças eleitorais
De acordo com Queiroz, do Diap, essa mudança dará mais recursos no fundo partidário para cada voto dado em negro ou mulher. “Isso pode ser um estímulo para que os partidos invistam nesses candidatos. Os partidos mais progressistas são os que mais buscam essa representatividade, mas ainda não dão o espaço ideal. Agora, com o estímulo da nova legislação, podemos ver esse cenário mudar. Diante do desprezo do atual governo com essas camadas sociais, é preciso de uma eleição legislativa que faça um contraponto a esse pensamento.”
A adoção de políticas públicas sociais inclusivas é apontada como uma alternativa mais eficiente para o país avançar no enfrentamento à desigualdade representativa no Legislativo. Na avaliação de Douglas Belchior, o modelo de eleições do Brasil obedece a lógica que só privilegia o poder econômico, o que ainda transformações estruturais nos partidos.
“O dinheiro determina o resultado eleitoral, seja ele privado, que serve para comprar a atuação dos congressistas, ou pelo fundo partidário. Há regulações para que o fundo seja investido em candidaturas de determinados segmentos sociais, mas ainda percebemos muita fragilidade. Na próxima eleição, candidaturas negras devem ter mais aporte financeiro, mas não ainda numa proporção suficiente para ter mais chances de vencer. A ideia não é só reduzir desigualdade na distribuição de recursos, mas possibilitar a chance de se eleger, com preparação prévia, prioridade partidária e espaço publicitário”, defende.
Ele acrescenta que, enquanto os partidos são o “muro mais alto para a eleição de pessoas negras”, um dos caminhos é o diálogo direto com a população. “Estamos fazendo esforços para eleger uma bancada maior possível, criando um número consistente de parlamentares para que o próximo governo não fique refém do fisiologismo. Por isso, é importante provocar na sociedade esse desafio de eleger setores populares”, finalizou.
Fonte: Rede Brasil Atual