País terá de rolar cerca de R$ 300 bi por trimestre em 2021; juros estão em alta e prazos, cada vez mais curtos

 

O Brasil terá de refinanciar um quarto de sua dívida pública federal de R$ 4,5 trilhões nos próximos 12 meses, com expectativa de piora em seu perfil. Em 2021, os vencimentos a cada trimestre alcançarão cerca de R$ 300 bilhões.

 

Para rolar esses débitos, o Tesouro Nacional poderá ter de encurtar ainda mais o prazo dos títulos que vende no mercado, buscando pagar juros menores a investidores que exigem taxas cada vez mais altas, sobretudo para papéis com vencimentos longos.

 

Desde o início do governo Jair Bolsonaro, o prazo médio dos títulos emitidos pelo Tesouro caiu a menos da metade, de 5 anos para 2,1 anos. Já os vencimentos em 12 meses dobraram, de cerca de R$ 600 bilhões para quase R$ 1,2 trilhão.

 

Em janeiro de 2019, quando presidente assumiu, apenas 15% da dívida pública venciam em 12 meses. Agora, são 26%.

 

A piora no perfil do endividamento federal vinha de antes da Covid-19, mas foi acentuada com os gastos extras e o aumento do déficit exigidos para enfrentar a epidemia.

 

Agora, a deterioração ocorre mês a mês, com o mercado pedindo juros crescentes para financiar a maior parte de uma dívida bruta total que se aproxima de 100% como proporção do PIB (Produto Interno Bruto).

 

Só entre agosto e setembro, o aumento do estoque da dívida federal com vencimento em 12 meses foi de R$ 223 bilhões.

 

Embora a taxa de juro básica do Banco Central (a Selic) esteja fixada hoje em 2%, o custo médio das emissões de novos títulos da dívida em setembro foi de 4,64% ao ano, refletindo prêmios exigidos pelos investidores.

 

Para evitar pagar juros mais altos em papéis de longo prazo —de quase 8% para os de dez anos, por exemplo—, o Tesouro também vem diminuindo o chamado “colchão de liquidez” que usa para resgatar sua dívida.

 

Essa reserva, que somava seis meses de vencimentos no fim de 2019, agora está próxima de três meses. Para ampliá-la, o Tesouro precisa solicitar ao CMN (Conselho Monetário Nacional) a transferência de resultados cambiais positivos do Banco Central, por exemplo.

 

Na semana passada, o governo reconheceu no documento Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031 que o país pode ficar impossibilitado de refinanciar sua dívida pública se não aprovar reformas que levem a um ajuste nas contas públicas.

 

“O risco fiscal do Brasil está em toda parte”, diz José Julio Senna, ex-diretor da área de Dívida Pública e Mercado Aberto do Banco Central.

 

“Está na Bolsa, que não se beneficiou da enxurrada de liquidez no exterior; na mediocridade do crescimento econômico; no dólar, que já se valorizou mais de 40% neste ano; e nas próprias curvas de juros. Isso tudo reflete a preocupação com a solvência do país.”

 

Senna afirma que como praticamente toda a dívida pública brasileira é denominada em reais, sempre haverá como refinanciá-la. Ele lembra que, na véspera do governo Fernando Collor (1990-1992), ela chegou a ser rolada diariamente no chamado “overnight”. “Rolar vai, mas em que condições?”

 

A dúvida sobre se governo Bolsonaro continuará respeitando o chamado teto de gastos, que limita o aumento da despesa pública à inflação, controlando a dívida, têm jogado ainda mais incertezas sobre o quadro fiscal e o déficit, piorando o manejo do endividamento.

 

Para o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, um problema adicional que agora se apresenta é a inflação, sobretudo de alimentos, impulsionada principalmente pelo dólar em alta diante das incertezas fiscais.

 

A inflação medida pelo IPCA em setembro foi de 0,64%, a maior para o mês desde 2003. Em 12 meses, a taxa ficou em 3,14%, dentro do intervalo estipulado pelo CMN, de 2,5% a 5,5%, para 2020.

 

Para 2021, no entanto, as previsões já indicam um IPCA ao redor de 3,5%, nível próximo do centro da meta, que será de 3,75%.

 

Um dos maiores riscos para a inflação hoje, segundo alguns economistas, é o descontrole fiscal.

 

Com investidores receosos e se protegendo no dólar, sua cotação em alta tem levado para cima também os preços de commodities, como os alimentos. Em 12 meses, a alimentação no domicílio ficou 16,8% mais cara.

 

“Em janeiro de 2021, quando o desemprego estiver ao redor de 16%, os 66 milhões de brasileiros que viveram do auxílio emergencial neste ano não terão mais esse dinheiro e perceberão uma inflação de alimentos muito alta”, diz Pastore.

 

“Como o governo vai reagir? Vai voltar para o teto ou vai aumentar o gasto novamente? Essa é a incerteza que o dólar e o juro em alta refletem.”

 

Neste ano, por conta do chamado Orçamento de Guerra, o governo gastou mais, contornando o teto de gastos.

 

Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, diz acreditar que a equipe hoje à frente do Banco Central não tolerará o risco de aumento da inflação, cada vez mais pressionada pelo dólar, com impactos nas commodities e em bens comercializareis —cuja alta chega a 6,8% em 12 meses.

 

“Não vejo esse Banco Central pensando duas vezes antes de subir o juro de curto prazo para conter eventuais pressões inflacionárias. Aí, todo o perfil de refinanciamento da dívida pública piora mais, impactando novamente no lado fiscal e reforçando outra vez o câmbio e a inflação.”

 

No caso de aumento da taxa de juro de curto prazo, a Selic, não só a atividade econômica tende a esfriar como o custo de rolagem da dívida pública aumenta, deteriorando mais o seu perfil.

 

Se a Selic voltar a subir, o custo para rolar o endividamento no curto prazo pode ficar excessivo, engendrando um círculo negativo de mais dívida, mais alta do dólar e, novamente, de mais inflação.

 

Para Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, embora o setor de serviços, muito deprimido atualmente, represente mais de um terço do computo da inflação oficial, há outros riscos para a escalada dos preços.

 

“O que me pergunto é se as empresas de um modo mais geral, vendo todo o risco atual, não vão querer se antecipar aumentado preços preventivamente. Já vimos isso no passado”, afirma.

 

Segundo a prévia da inflação de outubro, do IBGE, preços de bens industriais subiram 0,88%, em um sinal de que a inflação causada pelo dólar pode estar se espalhando pela economia.

 

Se essa alta for apenas passageira, Castelar considera possível, apesar do estresse crescente, o Tesouro ir refinanciado a dívida pública em vencimentos cada vez mais curtos e a juros crescentes. “Mas isso reduz muito o grau de liberdade e tem um limite.”

 

Segundo José Márcio Camargo, economista da PUC-Rio, a saída mais adequada hoje seria o governo aprovar no Congresso, após as eleições municipais, a chamada PEC Emergencial, que permite o corte de jornada e salário do funcionalismo.

 

Isso abriria uma folga no Orçamento, ajudaria a manter o teto de gastos e a ganhar algum tempo para perseguir outras reformas.

 

“Se houver um sinal crível, com o teto, de que o governo conseguirá fazer superávits para reduzir a dívida pública, mesmo que no futuro, a incerteza se dissipa, os juros caem e o real se valoriza”, diz Camargo.

 

“Mas, se rompermos o teto, pode esperar: teremos o dólar cada vez caro e estaremos no caminho de um grande desastre."

 

Fonte: Folha de SP