Renda de oito em cada dez pessoas sofreu perdas
No momento em que a pandemia de Covid-19 completa um ano no País, o risco de contaminação e mesmo de morte não é o único temor dos brasileiros. De acordo com pesquisa do Instituto Travessia, de São Paulo, feita entre os dias 16 e 17 de fevereiro, para o jornal Valor Econômico, 38% da população aponta o desemprego como a maior preocupação dos entrevistados para 2021.
O levantamento – que abordou um leque amplo de temas – teve como base entrevistas feitas por telefone com 1.003 pessoas em âmbito nacional, com margem de erro de três pontos percentuais, para cima ou para baixo. A maioria da população acredita que mais dias tenebrosos vêm por aí.
Em março de 2020, no início do estado de calamidade pública, 54% concordavam em usar o termo “devastador” para definir o estrago que a Covid-19 provocaria na economia do País. Hoje, são 72%. Nesse período pandêmico, a renda de oito em cada dez pessoas sofreu perdas – o que as levou a alterar hábitos de consumo. Para 11%, até a compra de itens básicos precisou ser cortada.
O “bloco antivacina” não vai além de um pequeno reduto – apenas 13% dizem que “não gostaria de ser vacinado”. Outros 83% responderam que querem receber o imunizante. Um grupo bastante significativo, de 79%, afirma confirar nas vacinas em uso no Brasil – a CoronaVac (fruto da parceria entre o Instituto Butantan, de São Paulo, com o laboratório chinês Sinovac) e a AZD 1229 (resultado de acordo entre a Fiocruz, do Rio de Janeiro, e a dupla AstraZeneca-Universidade de Oxford).
Para Renato Dorgan Filho, sócio e analista do Instituto Travessia, é surpreendente o respaldo dado às vacinas, à revelia da enxurrada de “fake news” que se abateu sobre o tema. Passa por cima também da discussão sobre a efetividade desses medicamentos (entre pouco mais de 50% e 80% para a CoronaVac e a AZD 1229), inferior às versões desenvolvidas por companhias como a Pfizer e a Moderna (acima de 90%). “Isso mostra o quanto as pessoas estão dispostas a aceitar a vacinação. Elas parecem perceber que não têm alternativa e se agarram àquilo que é possível, palpável”, analisa.
Em contrapartida, os brasileiros criticam o processo de vacinação em curso no País. Para 60% deles, falta capacidade de organização ao governo Bolsonaro. A situação melhora um pouco, embora não fique boa, quando a pergunta foca no estado dos entrevistados. Nesse caso, 43% apontam que o esquema atual é satisfatório (ou seja, está sendo bem organizado em nível estadual). Ainda assim, 49% mantêm-se céticos em relação a esse ponto.
O tom das críticas sobe algumas oitavas quando o foco da pergunta é Bolsonaro. Cresceu ao longo da pandemia a desaprovação dos eleitores em torno da forma como o presidente atua diante da crise sanitária. Em outro levantamento feito pelo Instituto Travessia para o Valor, em junho do ano passado, 50% eram contrários às ações do Planalto nesse campo. Agora, o descontentamento atingiu 59%. A cota daqueles que “não souberam avaliar” desabou de 22% para 10%.
Na opinião do cientista político Carlos Melo, professor da escola de negócios Insper, em São Paulo, a pesquisa, no geral, é bastante desfavorável para o presidente. Não por acaso, 66% disseram não confiar na capacidade de Bolsonaro em gerenciar a crise do coronavírus, enquanto menos da metade (31%) disse o oposto.
Sob o ponto de vista econômico, a pesquisa traz outras novidades. Aumentou – e muito – o temor dos brasileiros sobre a magnitude dos estragos que Covid-19 provocará na economia do país. Há um ano, por outro lado, 31% ainda acreditavam que os entraves resultantes da doença seriam momentâneos, passíveis de solução em um prazo relativamente curto. Hoje, só 20% dos entrevistados pensam dessa maneira.
Soller, o técnico do Travessia, frisa que a ideia de um futuro “devastador” é comum aos mais diversos recortes da pesquisa. Essa foi, por exemplo, a escolha de 73% das mulheres e 70% dos homens. O termo foi compartilhado tanto por jovens (73%) entre 16 e 24 anos, como pelos mais velhos (70%), com idades acima de 60 anos. Distribuiu-se ainda de forma equânime, sempre em um patamar entre 69% e 73%, em todas as regiões do país.
A única variação observada nesse tópico teve a ver com renda. Entre os que ganham menos, com até dois salários mínimos por mês, 72% falaram em devastação. Para aqueles que recebem mais de cinco salários mínimos, a maior faixa de renda delimitada na enquete, o termo contou com a concordância de 80%. Ou seja, quem tem mais está mais assustado.
A hipótese de um mergulho tão profundo, indica a sondagem, não assombra as pessoas por acaso. A renda dos brasileiros foi crescentemente comprometida pela pandemia e pela negligência bolsonarista. Em junho de 2020, na primeira vez que o tema foi tratado pelo Instituto Travessia, 74% disseram que a renda familiar foi prejudicada pela crise sanitária. Outros 26% afirmaram que não. Hoje, respectivamente, esses números vão a 80% (seis pontos percentuais a mais) e 19% (sete pontos a menos de “não”).
Os mais pobres foram os mais prejudicados. A queda de renda atingiu 83% dos que ganham até dois mínimos por mês. Entre os que recebem cinco salários ou mais, o bolso de 67% foi afetado. Com relação ao trabalho, 54% disseram que o emprego (deles ou de algum parente) foi “prejudicado” ao longo do último ano.
Assim, o desemprego ocupa, disparado, a liderança dos assuntos tidos como mais assustadores, com 38% das escolhas. Na sequência, apareceram “segurança” (18%), “inflação” (15%), “falta de vacina” (14%), “piora no atendimento a pacientes com Covid” (8%) e “crise política” (7%). Conforme frisa Dorgan Filho, “o ‘desemprego’ agrupa mais da metade das preocupações em comparação com o segundo tema da lista, a ‘segurança’”.
“Outro destaque é a ‘inflação’. Essa é uma preocupação que cresce com muita rapidez entre as pessoas mais pobres”, agrega. “Quando fazemos pesquisas qualitativas – com grupos pequenos de pessoas e discussões mais profundas –, o mesmo medo aparece. Guardadas as diferenças, a impressão é que estamos regredindo para discussões do início dos anos 90, quando as taxas inflacionárias disparavam a todo vapor.”
O apoio às regras de isolamento social perdeu força. Em abril de 2020, 57% defendiam um amplo fechamento do comércio, além de restrições a mobilidade e aglomerações. Em junho, esse grupo representava 45% dos entrevistados. Agora, são 39%.
Hoje, 52% preferem diretrizes mais brandas, um “isolamento parcial”, ainda que a média diária de mortes por Covid não tenha arrefecido e pipoquem focos dramáticos de contaminação, como em Manaus. “Em muitos casos, o medo pode estar perdendo terreno para a necessidade de trabalhar”, aponta Dorgan Filho. “É até um motivo pelo qual o discurso negacionista funciona para muitas pessoas.”
Apenas 19% afirmam ter mantido o padrão de consumo pré-pandemia, ao passo que os 81% restantes deixaram de adquirir, em níveis diferenciados, diversos tipos de artigos ou serviços. Aqueles considerados supérfluos foram despachados por 56% das pessoas ouvidas. Visitas a cabeleireiros e manicures foram reduzidas por 14%. E itens básicos de consumo deixaram de ir para a mesa de 11%.
Por fim, a pesquisa revela que 65% dos brasileiros são contra a volta dos estudantes às aulas presenciais, ante 31% (menos da metade) a favor. As pessoas que defendem a medida, contudo, se concentram nas faixas de renda mais altas. Ainda assim, o tema divide opiniões. Mesmo entre os que ganham cinco salários mínimos ou mais por mês, ela conta com o apoio de 45% dos entrevistados. Outros 45% se opõem.
Esses números mudam para 27% a favor e 70% contra no grupo que recebe até dois mínimos mensais, e 30% a favor e 66% contra na turma com renda entre dois e cinco salários. Conforme Dorgan Filho, esse racha também fica evidente nas pesquisas qualitativas, feitas com grupos pequenos.
“Muitas vezes, nos lares das famílias mais pobres, moram pais, filhos e avós”, diz o analista. “Existe o medo de que o eventual contato das crianças com o vírus resulte no contágio dos idosos. Para quem tem mais dinheiro, esse tipo de problema não é tão premente. Não falta vontade de a vida voltar ao normal, mas o temor ainda é forte.” Uma realidade que, como mostra o geral da pesquisa, parece ir além das salas de aula.
Fonte: Portal Vermelho