Ao referendar, nesta quinta-feira (11/3), a liminar concedida por Dias Toffoli, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, foi responsável pela formação de maioria para rejeitar a tese da legítima defesa da honra.

A ministra apenas acompanhou o relator, sem divulgar voto. Toffoli tinha vetado a tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, argumentando que a traição conjugal é questão do âmbito privado, passível de acontecer tanto a homens quanto a mulheres. Portanto, é inconstitucional a existência de um direito subjetivo a agir com violência diante dela.

A decisão de Toffoli teve três aplicações práticas: "(i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme a Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa; e, por consequência, (iii) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento".

Gilmar Mendes foi o primeiro a acompanhar o relator, divergindo apenas com relação à aplicação da decisão a todas as partes processuais (Toffoli tinha votado para que a decisão abrangesse apenas as defesas dos réus). Luiz Edson Fachin acompanhou Gilmar quanto à abrangência da decisão.

Marco Aurélio e Alexandre de Moraes também concordaram com o veto, mas Alexandre ampliou ainda mais o escopo em seu voto: "Entendo que o emprego desse argumento, a fim de convencer o julgador (jurados e magistrados) no sentido da existência de um suposto, e inexistente, direito de legítima defesa da honra, leva à nulidade do ato e do julgamento, impondo seja outro realizado no lugar".

Repercussão

Advogados apoiaram a decisão, mas alertam para o direito à ampla defesa e para questões que ainda precisam ser esclarecidas.

"Essa era uma tese arcaica e sexista, que dava amparo a crimes violentos contra a mulher, além de representar uma grande contradição em relação à Lei Maria da Penha e aos princípios de justiça e igualdade de nossa Constituição", diz Anne Wilians, advogada e presidente do Instituto Nelson Wilians. "Caiu tarde. Agora há um degrau a menos que justifique o feminicídio e outras injustiças."

Paula Sion, criminalista e sócia do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados, diz que foi totalmente acertada a decisão do Supremo. "O Direito sempre deve acompanhar a evolução da sociedade. A tese da legítima defesa da honra, embora muito utilizada em tempos passados no júri, na defesa de maridos supostamente traídos, nunca teve e não tem o menor cabimento. A Constituição defende o direito à vida e homens e mulheres têm exatamente as mesmas garantias. Seria lícito uma mulher matar um homem se fosse traída? Como entender aceitável o contrário? Lembrando que o adultério já não é mais crime desde 2005", analisa.

Para a criminalista Mayra Mallofre Ribeiro Carrillo, sócia do Damiani Sociedade de Advogados, o avanço do processo civilizatório deveria "redundar naturalmente na rejeição da tese pelo Tribunal do Júri, instituição democrática composta por cidadãos comuns que refletem os anseios da sociedade na qual estão inseridos". "No entanto," completa, "ainda existem poucos casos em que a absurda tese é acolhida pelo Júri Popular. Daí a necessidade da intervenção da Suprema Corte como catalizadora do processo civilizatório, em seu papel de guardiã dos direitos à vida, à dignidade da pessoa humana e à igualdade". 

Marina Veras, advogada e coordenadora da área Pro Bono do WZ Advogados (WZ Social), sustenta que a decisão do STF é um posicionamento necessário. 

"Para que haja uma efetiva diminuição da desigualdade e discriminação estruturais, e que afetam as mulheres da pior maneira possível, é primordial que o Poder Judiciário revise a forma de aplicação e proteção dos direitos da mulher. Como coordenadora de um projeto pro bono, vivencio diariamente inúmeros casos de mulheres vítimas de violência doméstica, que estão inseridas em um ciclo de violência que se inicia em casa e termina, muitas vezes, nos tribunais. A forma como o Estado processa e julga os crimes cometidos contra essas mulheres, muitas vezes sendo coniventes com o comportamento violento, pode ser considerada parte desse ciclo. O Brasil possui marcos jurídicos fundamentais na luta contra a violência de gênero, como a Lei Maria da Penha, de 2006, e a tipificação do feminicídio, em 2015. Assim, impossível não reconhecer o importante passo que esse julgamento representa para a garantia dos direitos constitucionais da mulher", diz. 

Mônica Sapucaia Machado, advogada especialista em direito das mulheres e professora do IDP, avalia que os votos dos ministros do STF em relação à impossibilidade da teoria da legitima defesa da honra são mais do que a afirmação, óbvia, da inconstitucionalidade da pseudoteoria e que validar tal argumento seria uma "afronta aos direitos humanos". "Os votos demonstram que a Suprema Corte brasileira incorporou o entendimento de que os direitos das mulheres são direitos humanos e que a estrutura sexista perpassa todas as esferas sociais e, por isso, precisa ser combatida cotidianamente. É um alívio saber que essa teoria assombrosa foi, de vez, rechaçada pelo STF."

Fernanda Tórtima, especialista em Direito Penal e sócia do Bidino & Tórtima Advogados, vê o tema como sensível. "O STF está fazendo o sopesamento entre valores constitucionais: o princípio da ampla defesa e a soberania dos veredictos do júri popular, que são mitigados, embora não completamente afastados, em benefício de princípios ainda mais caros, como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do direito à vida."

Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucionalista, sustenta que a tese, enquanto causa de exclusão da ilicitude, é incompatível com o sistema jurídico constitucional. "A Constituição é guiada pelos princípios fundamentais de proteção à vida e da dignidade da pessoa humana, isso sem falar da manifesta discrepância da hierarquia existente entre os dois bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, a resultar em anacronismo a aceitação do sacrifício do maior, a vida." 

Ele complementa que, nesse sentido, "o entendimento manifestado pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal representa um avanço significativo para a toda a sociedade, assim como substancial contribuição para o combate da violência doméstica e familiar contra a mulher, cujos efeitos didáticos e preventivos, espera-se, sirvam para refrear os crimes de feminicídio pelo cometimento do delito contra a mulher por razões ultrapassadas de atingimento da honra do agressor, com menosprezo à sua condição feminina".

Efeitos para o Tribunal do Júri

A excrescência da tese de legítima defesa da honra é evidente, mas o que preocupa especialistas é a forma como a decisão foi tomada e seus impactos para a soberania do Tribunal do Júri. A ADPF foi apresentada pelo PDT para dirimir conflitos entre tribunais sobre a validação da aplicação da tese pelo júri.

Segundo o partido, Tribunais de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça ora anulam sentenças com base no artigo 593, inciso III, "d", do Código de Processo Penal (CPP), por manifesta contrariedade à prova dos autos, ora mantêm as absolvições com base na soberania do júri.

Conforme defendem os advogados e pesquisadores Tiago Bunning Mendes e Jeferson Borges Jr, em artigo publicado na ConJur, a decisão do STF se choca "com a sistemática do Tribunal do Júri adotada em nosso ordenamento (íntima convicção e quesito genérico de absolvição) e mitiga garantias constitucionais inarredáveis no processo penal (plenitude de defesa e soberania dos veredictos), que se prestam a proteção do mais débil, que durante o processo são os réus e não os ofendidos(as)".

Rodrigo Faucz Pereira e Silva, professor de Processo Penal e advogado especializado em Tribunal do Júri, elenca as questões que considera ainda precisarem de esclarecimentos. "E se o acusado mencioná-la no interrogatório? Deve o juiz dissolver o Conselho de Sentença? Por quantas vezes? E se o marido não matar a mulher e, sim, o seu amante? E se for a mulher que mata o homem nessa mesma situação? Também estaria proibida a legítima defesa da honra? E se a defesa sustentar que se trata de uma causa de diminuição de pena, mas não pedir absolvição? Isso caracterizaria sustentação 'indireta' da legítima defesa da honra?".

"São questões que não foram devidamente refletidas para que o resultado possa ser aplicado no caso prático", analisa. "Mas reafirmo: o marido cometer feminicídio e sustentar legítima defesa da honra é absolutamente lamentável e pavoroso. No entanto, preocupa-me a consequência prática de tentar suplantar as necessárias políticas públicas por intermédio da mitigação, mesmo que indireta, de princípios fundamentais constitucionais, como a soberania dos veredictos e a plenitude de defesa."

O juiz Carlos Alberto Garcete, também em artigo publicado pela ConJur, pondera que qualquer fato criminoso demanda apuração, mas a decisão do Supremo estaria limitando o poder de investigação. "Obstar, assim, que vários questionamentos sejam explorados por suposto viés de que poderia 'induzir' a suposta legítima defesa da honra é coarctar a construção lógico-probatória, o liame que leva à compreensão de um fato, e, em última razão, ao exercício da garantia constitucional de plenitude de defesa em reação à imputação do Estado-acusação."

O advogado Cezar Roberto Bittencourt ainda levanta a questão de que todos os bens jurídicos, independentemente de sua natureza, podem ser protegidos por legítima defesa, inclusive a honra. "Importa, evidentemente, analisar, nessa hipótese, a necessidade, moderação e, principalmente, a proporcionalidade dos meios utilizados na defesa desses bens jurídicos. Esse é o parâmetro adequado para o enfrentamento das teses defensivas, especialmente o da legítima defesa", defende em artigo.

"Modernamente, defendemos a invocação do princípio da proporcionalidade na legítima defesa, na medida em que os direitos absolutos devem circunscrever-se a limites muito exíguos", completa. "Seria, no mínimo, paradoxal admitir o princípio da insignificância para afastar a tipicidade ou ilicitude de determinados fatos, e sustentar o direito de reação desproporcionada à agressão, como, por exemplo, matar alguém para defender quaisquer valores menores."

A advogada criminalista Adriana d'Urso também faz uma ressalva especificamente em relação ao terceiro item da decisão de Toffoli, que trata da abrangência do veto. Para ela, o tópico "ultrapassa os limites legais e afronta a plenitude do direito de defesa, garantida pela Constituição Federal, ao impedir que o advogado criminalista possa sustentar referida tese em plenário".

"Cabe à sociedade, representada pelo Conselho de Sentença (jurados e juradas), refutar a absurda tese. Por outro lado, o direito de um advogado sustentar o que bem entender no interesse da defesa de seu cliente não pode ser tolhido", pondera. "A defesa não pode ser cerceada, limitada, amputada, mutilada, especialmente durante os trabalhos no plenário do Tribunal do Júri."

A insegurança causada por uma decisão que visa a acabar com atrasos machistas no sistema jurídico dá força à tese defendida por Lenio Streck e Aury Lopes Jr. Em entrevista à ConJur, eles afirmaram que a reforma do Código Penal em 2008, ao extinguir a necessidade de fundamentar a decisão, criou uma aberração.

"Se o jurado continuar a decidir por íntima convicção, não há como impedir qualquer tese em plenário. Não adianta fazer lei dizendo 'é proibido usar...'. Se o jurado decide como quer, absolverá como quiser. Afinal, não precisa fundamentar", afirmou Streck em relação à legítima defesa da honra, na ocasião. "Como é o júri hoje, ninguém pode se queixar de absolvições absurdas ou até mesmo de condenações bizarras."

Para Aury, o problema é que "temos um quesito genérico para absolver por motivos metajurídicos (o que também deveria ser vedado, pois nenhum julgamento poderia ser feito fora da prova e do Direito), esse é o ponto. Com isso, voltamos para a questão nuclear: a falta de fundamentação das decisões impede, inclusive, que se saiba se esse foi o motivo e se faça a revisão".

 

Fonte: Conjur