Cacilda Becker, que teria feito cem anos no último dia 6, ainda é a maior em uma constelação de grandes atrizes, como Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro
Marcello Rollemberg (Jornal da USP)
Pode ser um fato – assim como também pode ser um lugar-comum – afirmar que o palco é o lugar por excelência daqueles que vivem do e para o teatro, seu habitat natural. E o paroxismo disso seria morrer em cena, o ápice de uma vida plena dedicada à encenação, à interpretação. Se é esse realmente o caso, o dia 6 de maio de 1969 pode ser marcado como um exemplo ao mesmo tempo triste e completo de como as cortinas se fecham para uma diva. Naquele dia, ao levar pela 42ª vez a encenação da peça Esperando Godot, do irlandês Samuel Becket, ao teatro paulistano que levava o seu nome, Cacilda Becker emitiu a última fala de seu personagem Estragon no fim do primeiro ato, foi para os camarins e não voltou mais.
Ali, ela sofreu um derrame cerebral e foi levada às pressas ao hospital, ainda vestindo a roupa do personagem. Trinta e oito dias depois, aos 48 anos, a atriz – que foi saudada com “vivas” por Caetano Veloso em seu célebre e catártico discurso durante um festival da canção em 1968 – morria. Velada na capela dos frades dominicanos ao som de uma cantata de Bach, foi enterrada no cemitério do Araçá. Cacilda, que teria completado um século de vida no último dia 6, deixou os palcos para ocupar o lugar mais alto no panteão de grandes nomes do teatro brasileiro. Se podemos dizer – com o risco de alguma injustiça – que o teatro nacional tem pelo duas grandes primeiras-damas – Bibi Ferreira (1922-2019) e Fernanda Montenegro –, vale aqui uma afirmação: Cacilda Becker foi, e ainda é, a “primeiríssima” dama dos palcos do Brasil.
“A história do teatro brasileiro seria outra sem Cacilda Becker. Uma vida transformada em marco nunca será plenamente compreendida e qualquer análise que se limite a um ou dois pontos de vista não permite dar conta da riqueza de sua existência”, afirma o professor Ferdinando Martins, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e também jurado do Prêmio Shell de Teatro. Ele tem toda a razão. A vida de Cacilda vai muito além de um verbete de Wikipédia ou de um sobrevoo sobre sua curta e intensa existência. Ela foi o “marco” ao qual se referiu Martins, o divisor de águas ao se impor como a primeira atriz a se profissionalizar no Brasil, isso nos anos 1940, e ter a coragem e o desprendimento de levar para os palcos nacionais autores instigantes (e por vezes díspares) como o já citado Becket, Tennessee Williams, Edward Albee, Eugene O’Neill, Gil Vicente, Ariano Suassuna e Nelson Rodrigues. “Cacilda magnetizava o público inteiramente. Ela tinha uma eletricidade no corpo”, disse ao jornal O Globo o diretor José Celso Martinez Correa, criador do Teatro Oficina e autor da peça Cacilda, em homenagem à atriz.
Ao todo, foram cerca de 90 peças diferentes, entre o clássico e o contemporâneo, vivendo personagens intensos que seu corpo franzino e frágil parecia desaconselhar. Mas ela ia adiante – comendo um ovo cru e um pouco de carne, como lembrou o diretor e ator de origem polonesa Ziembinski na época de sua morte. Foram tantos personagens icônicos levados à boca do palco que o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu: “A morte emendou a gramática. Morreram Cacilda Becker. Não era uma só. Eram tantas…”.
Porque no palco ela se transformava, mesclando leveza e energia, o que levou o jornalista e crítico Paulo Francis – tão ácido e polêmico em seus escritos – a afirmar, sem meias palavras, que ela era “um monumento de trabalho e audácia no teatro”. Ao compará-la a Bibi e Fernanda Montenegro em um artigo na Folha de S. Paulo rememorando os vinte anos de morte da atriz, Francis, que morreu em 1996, foi adiante: “Ao crítico era muito fácil perceber que a ainda muito jovem Fernanda Montenegro era muito mais regular e competente no uso de seu talento do que Cacilda, mas Fernanda apenas começava e Bibi se desinteressara. Cacilda era a rainha da minha geração de teatro”, afirmou Francis, com seu jeito peculiar de afirmar verdades para ele incontestáveis.
“Conseguia obliterar todas as suas desvantagens criando um vácuo que preenchia às vezes com um gênio de que não tenho lembrança ou esperança de ver igualado no teatro brasileiro”, escreveu Francis.
TBC e TCB
Nascida em uma família pobre em Pirassununga, no interior de São Paulo, Cacilda viu as coisas piorarem quando seus pais se separaram e a mãe teve que cuidar sozinha dela e de suas duas irmãs – Dirce e a também futura atriz Cleyde Yáconis. Em finais dos anos 1930, a família se mudou para Santos, onde Cacilda, ainda jovem, frequentou os círculos boêmios e mais vanguardistas, já que, por ser filha de pais pobres e separados, não podia estabelecer amizade com pessoas da alta sociedade. Mesmo assim, Cacilda conseguiu fazer os estudos de balé, sua primeira vocação artística. Antes do teatro, conseguiu um diploma de professora e, em São Paulo, o emprego de escriturária numa firma de seguros. Mas nada disso tinha a ver com o que a moça realmente desejava.
Por isso, aos 20 anos ela se muda para o Rio de Janeiro disposta a se tornar atriz. Na capital carioca ela começa a pavimentar sua carreira, trabalhando em algumas peças, como Trio em Lá Menor, de Raymundo Magalhães Junior, e Hamlet, esta dirigida por Paschoal Carlos Magno. Mas Cacilda era inquieta e faz o caminho de volta, retornando a São Paulo em 1943 para fazer rádio-teatro e integrar o Grupo Universitário de Teatro, o GUT, criado por Décio de Almeida Prado. Participa de três montagens do GUT e não sossega: pega o ônibus e volta para o Rio, dessa vez para trabalhar com Os Comediantes, grupo responsável por uma verdadeira revolução no panorama teatral brasileiro. Com eles e dirigida por Ziembinski, participa da remontagem em 1946 da peça O Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, no papel de Lúcia.
Apenas em finais dos anos 1940 Cacilda Becker vai se estabelecer de vez em São Paulo – e começar, de fato, a fazer história. Primeiro, como professora da Escola de Arte Dramática, fundada por Alfredo Mesquita e mais tarde incorporada à Universidade de São Paulo. Depois, ao integrar o icônico Teatro Brasileiro de Comédia. Foi no TBC que Cacilda deu seu primeiro e audacioso salto em direção à fama, ao se tornar a primeira atriz a se profissionalizar no teatro brasileiro, já que até então ser ator (ou atriz) era visto como algo diletante – mais um passatempo do que algo a se levar a sério para ganhar a vida. Para Cacilda, não era assim. E ela se aproveitou justamente dessa visão míope da época para virar o jogo. A então “atriz diletante” Nydia Lícia se recusou a fazer um papel na peça Mulher do Próximo, de Abílio Pereira de Almeida, produzida pelo TBC, para não ter que beijar nem dizer “amante” em cena, pois isto podia lhe custar o emprego numa importante loja. Cacilda, que a substituiu, topou o papel, mas exigiu ser contratada como profissional. Acabava ali a história do diletantismo artístico no teatro brasileiro.
“No TBC , ela se firmou como a grande intérprete do teatro brasileiro moderno. Muito magra, não se destacava pela beleza, como suas contemporâneas Maria Della Costa e Tônia Carrero, mas a inteligência rara de Cacilda fazia que ela se construísse como uma mulher bonita”, afirma Ferdinando Martins, da ECA. “Cacilda sabia camuflar-se: foi Antígona, foi uma afoita gata em teto de zinco quente, foi um menino em Pega Fogo, ocultando os seios com fita crepe até a pele sangrar”, relembra ele. Foi justamente ao interpretar “Poil de Carotte”, esse personagem masculino criado pelo francês Jules Renard – e sofrer na pele as consequências de sua obstinação –, que Cacilda ganhou o reconhecimento internacional. Ao se apresentar em Paris, o crítico gaulês Michel Simon, literalmente em lágrimas, a comparou a grandes como Charles Chaplin e Jean-Louis Barrault. “Poil de Carotte não pode ter mais, para mim e para muitos outros, de agora em diante, outro rosto senão o seu”, afirmou Simon.
A vida de Cacilda no TBC durou até 1955, quando a companhia começou a claudicar, perdeu investidores e parceiros estrangeiros e seus atores começaram a buscar luz própria. E Cacilda Becker, ao lado de seu marido Walmor Chagas, da irmã Cleyde Yáconis – já estabelecida como atriz –, do alemão Fredi Kleeman e do sempre presente Ziembinski, funda a companhia Teatro Cacilda Becker, o TCB. Mais do que um jogo de letras com sua alma mater teatral, o TCB é o salto profissional e artístico que já se desenhava com cores nítidas no TBC. Com a sua companhia, Cacilda se multiplicou. Foi a “Karla”, em A Visita da Velha Senhora, de Friedrich Durrenmatt; a “Mary Tyrone”, em Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill; a “Maggie Pollit” de Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams, e “Martha”, em Quem Tem Medo de Virginia Woolf, de Edward Albee, entre tantas outras personas que ela incorporou. Curiosamente, tanto “Martha” quanto “Maggie” foram vividas no cinema por Elizabeth Taylor. E mais uma curiosidade: se a transtornada “Martha” rendeu à estrela hollywoodiana um Oscar, deu a Cacilda o Prêmio Molière de Melhor Atriz, em 1965.
Disciplina e política
Para Cacilda Becker, interpretar não era só decorar falas, vestir um papel e subir ao palco – ou se apresentar no rádio, cinema e televisão, outros meios que ela visitou muito rapidamente. Exigia disciplina – muita disciplina. Normalmente, ela chegava ao teatro cerca de quatro horas antes de o espetáculo começar e repassava todo o texto, para não ter erro. “Zimba, nós vamos ter um trabalho infernal.” Era o que Cacilda dizia para Ziembisnki, sempre que se iniciavam os ensaios de uma peça. “Zimba” era o tratamento afetuoso que ela e tantos outros atores davam para o ator e diretor. “Ela dizia isso, mas dizia com um brilho de alegria nos olhos. Sempre teve um fogo sagrado ardendo dentro daquele corpo frágil, uma paixão mística pelo teatro”, contou Ziembinski na época da morte da atriz.
A fragilidade do corpo, no entanto, nunca impediu a fortaleza interna que ela apresentava. Tanto no palco quanto fora dele. Em 1968, Cacilda suspendeu as atividades da sua companhia para assumir uma missão espinhosa: presidir a Comissão Estadual de Teatro, um cargo difícil, com implicações e problemas que desafiavam uma mulher que sempre se considerou atriz, e apenas atriz. E isso justamente quando o governo militar apertava o torniquete. Ela fez o possível para ser a mediadora entre a classe teatral e o governo. Ao lado de Augusto Boal, diretor de Primeira Feira Paulista de Opinião (1968), por exemplo, ela defendeu a encenação do espetáculo na íntegra, ignorando os cortes realizados pela censura. A convicção daquela mulher mignon, mas firme, convenceu os agentes federais e os censores. Cacilda defendeu artistas, foi ao então nefasto Dops prestar depoimento e tentar soltar atores detidos – entre eles, sua irmã Cleyde Yáconis – e fez o possível naqueles tempos perigosos em que atores eram agredidos dentro de teatros.
Mas a política de Cacilda Becker, na verdade, se desenrolava no palco, e em 1969 ela voltou a atuar, tendo como parceiros Walmor Chagas e seu filho Luis Carlos Martins, que fazia sua estreia como ator. A peça? Exatamente aquela que seria sua última, Esperando Godot. Por 41 apresentações, ela imantou o público. Na 42ª, saiu de cena. “Arte e ofício, palavras que me ocorrem quando penso em Cacilda Becker. Uma excepcional capacidade de criação aliada a um profundo sentido de fazer arte e de ser artista no Brasil”, afirma o ator Abílio Tavares, ex-diretor do Teatro da USP (Tusp) e professor convidado do Departamento de Artes Cênicas da ECA. “Isso faz dela um dos maiores nomes das nossas artes do século 20 e um símbolo muito potente de liberdade, resistência e união para toda a classe artística. Inspiração, Cacilda continua absolutamente necessária, sobretudo em tempos estranhos e sombrios como estes em que vivemos.”
Fonte: Jornal da USP