Serviço é oferecido por empresas, que cobram taxa para saque, mas não há incidência de juros. Especialistas alertam que opção não deve se tornar um hábito
A combinação de orçamento apertado, multiplicação de boletos e inflação de dois dígitos levou o brasileiro a recorrer ao salário do mês seguinte para pagar a dívida de hoje. Ganha espaço entre as empresas a procura pelo serviço de antecipação de parte do salário para fazer frente a despesas emergenciais, gastos do mês, como comida ou escola dos filhos, ou para quitar dívidas com custo maior, como as de bancos e cartões de crédito.
Em geral, o serviço passa a ser oferecido a partir de pedidos dos próprios funcionários, que buscam uma forma de conseguir recursos para situações emergenciais de forma mais barata. Para muitos, a modalidade virou uma saída para chegar ao fim do mês.
Na Creditas, fintech que oferece o serviço desde o final de 2020, ocorreu aumento de mais de 200% nas solicitações de antecipação salarial no primeiro semestre de 2022, em relação ao mesmo período do ano anterior.
Média de R$ 2 mil antecipados
O levantamento foi feito levando em conta o universo de 800 mil funcionários de empresas que têm acesso ao serviço oferecido pela Creditas Benefícios. Cerca de 96% das pessoas que anteciparam seus salários no período acessaram um tíquete médio de R$ 2 mil.
A vice-presidente da Creditas Benefícios, Viviane Sales, destaca que a antecipação é vantajosa para os empregados, pois, não necessariamente, precisam de crédito, mas necessitam dos recursos para resolver questões pontuais:
— Com essa solução, você consegue dar antecipação para quem precisa e no momento em que ela precisa. Temos 80% da população brasileira endividada, 30% negativada e temos mais de 60% dos colaboradores com mais de 50% da renda comprometida. Então, dificilmente isso não está acontecendo nas empresas.
Pela Creditas, o funcionário pode antecipar até 40% do salário. As duas primeiras solicitações são gratuitas e a partir da terceira, há uma taxa de R$ 5. Não há cobrança de juros.
Segundo pesquisa da Creditas realizada a partir de seu próprio serviço, em janeiro de 2022, 63% dos trabalhadores com carteira assinada estão com ao menos 50% da renda comprometida com dívidas.
A analista de sucesso do cliente, Paula Rodrigues, começou a usar o serviço de antecipação em março. Morando sozinha em um imóvel alugado, ela sentiu o orçamento pesar nos últimos meses e passou a recorrer a essa modalidade para situações de emergência. Ela costuma antecipar até 30% do salário pagando R$ 5 por saque:
— Já tive problemas com dívidas há alguns anos e, agora, estou tentando cuidar da minha vida financeira. Antes, era 100% descontrolada. Chegou o caso do meu nome ficar sujo no Serasa. A antecipação acaba sendo boa para emergência, quando aparece uma conta que você não esperava.
Consultoria financeira
A fintech Paketá, que já oferecia crédito consignado a empresas, incorporou a antecipação salarial em seu leque de produtos em fevereiro após perceber que muitas pessoas acessavam o consignado para valores baixos, o que não é indicado. E houve maior demanda por áreas de recursos humanos de empresas.
— Quando a gente fala de antecipação de salário, estamos emprestando dinheiro a um prazo curto, com uma certeza muito grande de que ele vai ser devolvido. Isso faz com que a taxa fique mais baixa na comparação com outros tipos de crédito — disse o CEO da Paketá, Fabian Valverde.
Cerca de 1.750 empresas dos mais variados setores já aderiram ao serviço. A Paketá costuma antecipar de 30% a 40% do salário, com tíquete médio de R$ 500. A taxa por saque varia em cada acordo firmado, podendo ser de R$ 2 a R$ 5. Não há cobrança de juros.
Na opção pelo consignado, por exemplo, a taxa de juros varia entre 1,70% a 3,90% ao mês, a depender da rotatividade dos funcionários.
Na fintech Leve, a antecipação passou a ser ofertada em janeiro, com o objetivo de retirar os funcionários de créditos mais caros.
Taxa de R$ 8,99
A empresa cobra taxa única de R$ 8,99 por saque, sem juros. No consignado, opção que a fintech também oferta, os juros variam de 1,29% a 2,89% ao mês.
Cerca de 10 mil pessoas já têm acesso ao produto, com uso de duas a três antecipações por mês. A procura tem sido feita, principalmente, por empresas de tecnologia.
— Fizemos uma pesquisa qualitativa e identificamos que os usos são para comprar comida, ajudar a pagar o colégio e pagar conta com desconto. Também oferecemos consultoria financeira para os funcionários sem custo. O colaborador fala com um consultor por videochamada ou WhatsApp — destacou o CEO da Leve, Gustavo Raposo.
Pelo lado das empresas, a antecipação é uma forma de ajudar na saúde financeira dos funcionários e, com isso, melhorar sua produtividade
Foi o caso da empresa de pagamentos Pague Veloz, que passou a contar com a antecipação no final de 2020, depois de identificar a demanda por parte dos trabalhadores.
— Pelos canais que temos aberto, percebemos muitas solicitações de empréstimo, de antecipação do salário, se teria alguma forma de adiantamento ou de vale. Começaram a surgir muitas questões financeiras e, por isso, pensamos nisso para melhorar a saúde financeira dos colaboradores — disse a coordenadora de RH, Karine Moraes.
Até o momento, 50% dos 383 funcionários já usaram. A empresa aderiu a um programa de educação financeira, com 70% de adesão.
— Vimos que fez muita diferença. Os colaboradores passaram a trabalhar com mais tranquilidade — diz Karine.
A Emicol, que fabrica produtos eletroeletrônicos, começou a usar o serviço. Na companhia, pode ser antecipado até 30% do salário.
Para analistas, é preciso cuidado
— É opção rápida, fácil e segura para uma emergência ou necessidade —disse a analista de administração e benefícios da Emicol, Julia Rodrigues de Paula.
Para profissionais de educação financeira, o serviço de antecipação pode ser benéfico para quem tem maior planejamento financeiro e quer sair ou evitar dívidas mais caras. No entanto, ponderam que é necessário cuidado para a prática não se tornar um vício que comprometa a renda no mês seguinte.
— O cuidado é que isso pode criar um hábito. Muitas vezes a antecipação está tapando o sol com a peneira. Fazer uma antecipação pequena só para quitar uma dívida e não pagar juros pode ser interessante. Mas a pessoa que recorre a essa prática tem que ter a consciência de que não vai receber o salário integral — disse o consultor Vinicius de Marchi, da W1 Consultoria Financeira.
Para quem apenas busca fazer frente a um imprevisto, trata-se de modalidade mais barata do que as opções de crédito disponíveis, uma vez que não há cobrança de juros, apenas taxa fixa para saques.
Redução de gastos
O consultor ressalta, porém, que o problema por trás da antecipação frequente do salário do mês seguinte é a falta de educação financeira.
Adenias Gonçalves Filho, sócio da consultoria Bem-Financeiro, afirma que é preciso envolver toda a família na reorganização das contas domésticas para que o valor adiantado não faça falta depois:
— O que mais importa é fazer a lição de casa e reduzir gastos. Aquilo que tem comprometimento fixo, como aluguel, terá de ser pago. Mas em gastos variáveis é possível ter disciplina, evitando, por exemplo, compras parceladas.
Com altas taxas de juros praticadas pelo mercado em diversas modalidades de crédito, Filho diz que adiantar o salário pode ser mais vantajoso do que pegar um empréstimo consignado. Com controle e estratégia, até vale a pena solicitar o adiantamento de alguma quantia para viabilizar uma renda extra.
— Se a pessoa pega R$ 1.000 e paga só R$ 5, é uma taxa baratíssima. É possível, então, usar essa antecipação de forma inteligente, comprando produtos que possam ser comercializados com velocidade e alta lucratividade depois — analisa.
E acrescenta:
— Tem muita família que vende doces, cachorro-quente, salgadinhos. Mesmo endividada, a pessoa pode usar o dinheiro para comprar material para fazer bolo, vender e sair do aperto. Só é necessário ter consciência de que essa é uma oportunidade para que o impacto lá na frente seja o menor possível.
Dicas para ficar no azul
Orientações dadas por Ricardo Teixeira, coordenador do MBA de Gestão Financeira da FGV, e Jansen Costa, da Fatorial Investimentos
Evite fazer gastos fora do seu orçamento
A maior dica para lidar com as dívidas é evitá-las ao máximo. Um dos grandes vilões é o parcelamento: ele pode caber no bolso naquele mês, mas as cotas mensais podem se chocar com gastos sazonais, como, o pagamento do Imposto de Renda ou IPVA.
Fique por dentro da taxa de juros de cada operação
Cartões de crédito e cheque especial costumam ter os juros mais elevados do mercado, portanto, esses pagamentos devem ser prioridade. Quando já se contraiu a dívida, vale a pena trocá-la por outra com juros mais baixos, ou, na negociação, tentar reduzir o percentual dos juros cobrados.
Se fechou acordo, não atrase o pagamento de parcelas
Outra dica é só fechar um acordo caso tenha certeza de que a parcela definida cabe no orçamento. Para isso, o planejamento financeiro é essencial. Gastos fixos e variáveis do mês devem ser anotados para ver o que sobra para pagar a dívida. A parcela de cada mês não pode ultrapassar o valor planejado.
Avalie se vender algo pode resolver o problema
Quando não sobra dinheiro, vale pensar em vender algum item para quitar o débito. Nesse caso, é melhor fazer o pagamento à vista e tentar garantir um desconto maior.
Fonte e Foto: O Globo