Após decisão do Supremo, companhias atropelam regra e determinam cortes e suspensão
Grávida de quatro meses, a designer Paula se preparava para uma reunião com um cliente quando recebeu um aviso de que a partir do dia seguinte passaria a trabalhar por apenas meio período e que seu salário seria reduzido pela metade. “Foi apenas um aviso, não teve negociação, nada disso.”
Marina, fonoaudióloga no Rio de Janeiro, estava de férias –que já tinham sido antecipadas de junho para abril– quando recebeu um email em que era informada da decisão da empresa: por 30 dias, seu salário e jornada de trabalho seriam reduzidos em 70%.
“Confesso que ainda estou tentando entender se eles poderiam mesmo fazer isso sem passar pelo sindicato. Estou procurando informações”, diz.
Em alguns dias, dizia o aviso, ela receberia o acordo para que o entendimento fosse oficializado. O complemento à remuneração viria do governo federal. Foi também por email que Juliana foi informada de que a empresa havia decidido suspender seu contrato por um mês.
Relatos de trabalhadores que foram apenas comunicados de que seus contratos seriam suspensos ou que a jornada seria reduzida vêm dos mais diversos setores da economia, como saúde, propaganda, tecnologia da informação, arquitetura e comunicação.
Os nomes desses que contam suas histórias à reportagem foram trocados para evitar constrangimentos, pois eles continuam ligados às empresas.
Em comum, têm a ausência da negociação. No lugar do acordo individual, as empresas aplicaram um tipo de imposição coletiva, no qual os cortes são aplicados de maneira linear, sem considerar especificidades, valor do salário ou tempo de casa.
Em 1º de abril, o governo Bolsonaro publicou a Medida Provisória 936, por meio da qual criou um benefício emergencial baseado no valor do seguro-desemprego, e permitiu a realização de acordo individual para reduzir jornada e salário ou suspender contrato.
O professor de direito do trabalho da USP Antônio de Freitas Jr. diz que a imposição da decisão é uma temeridade, uma vez que a MP é explícita quanto à necessidade um entendimento entre as partes. “[A MP prevê] acordo individual escrito, e não um comunicado unilateral”, afirma.
Os acordos realizados dessa forma, diz, poderão ser contestados na Justiça. “Entendo que o procedimento não observa os termos da MP e sujeita a empresa ao debate judicial pelo pagamento dos valores que foram reduzidos.”
Para Cássia Pizzotti, sócia da área trabalhista do escritório Demarest, a aplicação das reduções após mera comunicação pode ser considerada um tipo de aliciamento dos empregados.
A MP prevê algumas situações que exigem acordo coletivo, como nos casos de redução de jornada e salário em percentuais diferentes de 25%, 50% ou 70%. Trabalhadores que ganham mais do que R$ 3.135 e menos do que R$ 12.202 só podem ter redução de 25% por acordo individual –qualquer outra negociação precisa ser coletiva.
O advogado Otavio Pinto e Silva, sócio do Siqueira Castro, considera que a MP permite a comunicação unilateral por parte da empresa, ainda que a recomendação dele seja a de sempre optar por uma primeira manifestação de intenção, na qual a empresa comunica analisar a adoção de medidas, e deixa aberto para os funcionários se posicionarem.
Ainda que, num momento delicado como o atual, recusar a redução possa resultar em demissão, essa decisão cabe ao funcionário. Ele afirma que, na prática, o que a MP cria é um contrato de adesão: ou o trabalhador aceita ou não continua.
A medida provisória está em vigor desde a publicação e precisa ser votada na Câmara e no Senado em até 120 dias ou perde a validade.
O advogado Leonardo Jubilut diz que a garantia do acordo individual pressupõe a existência de um entendimento entre as duas partes envolvidas.
Para a advogada trabalhista Priscila Arraes Reino, o procedimento demonstra como, na prática, não existe acordo quando a discussão é individual. “O funcionário não tem igualdade de condições, vai ter que aceitar ou pode ser demitido”, diz. “Se ele questiona, ainda fica como alguém que impõe dificuldades em um momento delicado.”
A recomendação da advogada para quem for surpreendido por um aviso de que as medidas serão adotadas é buscar o sindicato da categoria, que poderá orientar ou ao menos analisar se o termo proposto pela empresa está adequado.
“O sindicato também poderá tentar intervir, buscar uma negociação para todos. A ideia é despersonalizar a discussão”, afirma.
A necessidade de um entendimento deixa de ser necessária, diz Jubilut, nos casos em que o sindicato da categoria já conduziu uma negociação coletiva que permita essas alterações contratuais –seja para suspender o contrato por até dois meses, seja para reduzir a jornada e o salário por até três meses.
ENTENDA AS DIFERENÇAS
1) Acordo coletivo
A negociação é conduzida pelo sindicato da categoria e vale para todos os funcionários daquela região
Quando ele é feito, a empresa pode apenas informar a adoção das medidas autorizadas pelo governo
2) Acordo individual
É necessário que haja uma negociação na qual o empregado fica confortável para recusar
Não há nada que impeça a empresa de demiti-lo, mas a dispensa será sem justa causa e ele terá direito à multa de 40% do FGTS
3) Comunicação ao sindicato
Mesmo nos casos de acordo individual, as empresas precisam avisar os sindicatos em dez dias sobre as alterações nos contratos
Fonte: Folha de SP