O abandono legal e social que marca o trabalho dos entregadores por aplicativos lembra a situação os operários do início do século XX. Como exemplo mais bem acabado da precarização do trabalho, resultante de uma política econômica antissocial e, sobretudo, da reforma trabalhista de 2017, a figura do entregador reflete as ideias das classes dominantes sobre os direitos trabalhistas.
Ideias que foram expostas com muita clareza, e sem pudor, pelo gerente financeiro da empresa iFood, Diego Barreto, no artigo “Novas relações de trabalho”, publicado no jornal Valor Econômico, no dia 24/7.
Barreto defende que o emprego com registro em carteira é uma forma velha e desgastada de contrato. Segundo ele os “velhos” modelos de negócio e do vínculo empregatício cria uma percepção de segurança, mas, por outro lado exclui “cerca de metade da população que trabalha”. Ele diz ainda que “A nova economia inclui todos, independentemente de sexo, cor, idade, classe social ou experiência prévia”.
Sobre a relação do Ifood com os entregadores, o gerente lança mão de uma argumentação contraditória para justificar a precarização. Em suas palavras “Equilibrar os benefícios para todos os participantes das novas relações de trabalho nascidas no contexto da velha economia, por exemplo, requer dos formuladores de políticas públicas que se libertem da limitação ‘trabalhador sinônimo de empregado celetista’”.
Nesta mesma linha da incompatibilidade entre o tipo de trabalho que defende e o Estado no qual ele opera, Barreto reivindica uma “uma rede de segurança social capaz de abranger o conjunto dos brasileiros que atuam por conta própria – e não apenas os que trabalham com aplicativos”.
Ele diz ainda que “quem precisa ganhar o pão de cada dia não pode esperar” e exalta o MEI como uma forma de “acesso dos trabalhadores independentes à proteção social” o que, segundo ele, “comprova que é possível proteger todo trabalhador independente”.
Ideias confusas e contraditórias
As ideias que o empresário defende sobre os direitos trabalhistas são confusas e cheias de contradições.
Em primeiro lugar não é verdade que a CLT exclui a população das proteções que ela oferece empurrando o trabalhador para a informalidade. Isso é um efeito em cadeia que começa com o empregador que se nega a respeitar tais direitos. Os direitos previstos na CLT existem para formar uma classe trabalhadora forte, com poder de compra, para formar um mercado consumidor, que alimenta as empresas e também o Estado através do pagamento de impostos.
Quando Barreto afirma que a “nova economia inclui todos”, ele não deixa claro em que condições se dá esta inclusão. Ele fala em “sexo, cor, idade, classe social ou experiência prévia”, como um abrangente perfil do trabalhador. Mas é importante notar que a lei não pode ser tão genérica e deve sim distinguir perfis de trabalhadores e tipos de trabalho. Alegar que se trata de uma nova economia que inclui todos pode parecer uma frase bonita, mas ela remonta à exploração do início da revolução industrial que dispunha, sem distinção, do trabalho de menores, idosos, gestantes etc. Ainda sobre este ponto, é também importante que em alguns casos a experiencia prévia seja exigida sim. Não como forma de elitizar o mercado, mas como forma de assegurar a saúde e a segurança do trabalhador no exercício de sua profissão.
Em seu artigo, Barreto defende um tipo de trabalho nos moldes do mais radical liberalismo, e que condena a proteção trabalhista oferecida pela CLT. Mas, contraditoriamente, afirma que cabe aos “formuladores de políticas públicas” regular as desproporções presentes no trabalho dos entregadores e nos rendimentos dos executivos dos aplicativos.
Ora, o Estado deve sim fazer isso! Talvez ele não tenha se dado conta (ou finge que não entendeu) que esta “rede de proteção social” é justamente a razão de ser da CLT e que, por outro lado, a realidade do Brasil hoje, onde se estabelece o Ifood, bem como dos demais serviços do tipo, é, desde 2017, a do desmonte desta rede de segurança social. E é exatamente por causa desse desmonte que tantos jovens se dispõe a esse tipo de trabalho precário.
Velhas novas ideias
Travestidas de novas e modernas, as ideias de Diego Barreto retrocedem ao início da industrialização no Brasil, quando as leis trabalhistas eram tênues, difusas e não fiscalizadas, quando não havia sindicatos e as empresas impunham suas regras de exploração ao trabalhador.
É uma grande mentira, repetida por liberais decadentes com a esperança de que possam mudar o passado e impor essa “verdade”, que a proteção ao trabalhador prevista na CLT inibe a geração de empregos. Sob a CLT o país cresceu e se urbanizou. Grandes industrias e um pujante setor de serviços se formou no Brasil guiados pela bussola da CLT.
Por outro lado, após a aprovação da famigerada reforma trabalhista, sob o argumento de que baratear o emprego geraria o ambiente competitivo capaz de aquecer a economia e que isso beneficiaria o trabalhador, o que se verificou foi o aumento do desemprego, uma explosão de trabalhos regados à superexploração e precarização, além de um assombroso rebaixamento da proteção social, configurados sobretudo no aumento da pobreza.
Leis trabalhistas são a marca de um Brasil mais moderno e urbano
A CLT tem 77 anos. O trabalho escravo no Brasil durou 330 anos. São apenas 77 anos em que o trabalhador tem acesso a um mínimo de proteção social contra mais de 3 séculos em que o trabalhador não apenas não tinha nenhum direito, como era uma propriedade do patrão. Importante notar que a abolição da escravidão e o advento do trabalho assalariado não foi resultado de um processo revolucionário, de revolta e insurgência popular. Embora essas revoltas tenham existido e tenham pressionado para o fim daquele regime desumano, a transição foi feita por cima, elaborada e executada pela elite, que naquele caso era a monarquia, interessada em se adequar às demandas do capitalismo.
Com isso, mesmo que a escravidão tenha sido extinta em 1888, a mentalidade escravocrata permaneceu nas relações entre patrões e trabalhadores e se perpetuou anos a fio como um pilar destas relações. Não é exagero dizer que convivemos com vestígios dela ainda hoje.
A conquista da CLT, neste contexto histórico, representou uma ruptura radical com a mentalidade escravista. E sua implementação forçou a sociedade a desenvolver uma nova visão não apenas das relações de trabalho, mas também sobre o trabalhador, que passa a ser visto como cidadão.
Setenta e sete anos não é um período longo, se considerarmos sob este ângulo. Mais do que isso, se considerarmos que estas 7 décadas da CLT foram entrecortadas por períodos de ditadura e governos repressivos, como o fim do Estado Novo, o governo Dutra e a ditadura militar, e que esta proteção social aconteceu e se desenvolveu de forma combinada com liberdade política e cultural sobretudo, após a Constituição de 1988, temos um período muito curto de evolução da cidadania no Brasil.
Isso mostra que a CLT não é velha. Ao contrário disso, ela é resultado da organização de trabalhadores em torno da defesa de direitos e dignidade e marca um processo de modernização do país. Um processo que rompeu com as oligarquias rurais, de mentalidade escravocrata e imperial e que inseriu o trabalhador na sociedade.
O discurso que hoje condena a CLT como um entrave à oferta de trabalho, este sim é velho. Ele remonta à um Brasil colonial, à passagem do trabalho escravo ao trabalho assalariado, onde os senhores, ainda impregnados da visão escravista, consideravam que os novos assalariados não tinham direito nenhum.
Desde meados da segunda década do século 21, entretanto, os avanços civilizatórios conquistados pelos brasileiros sofrem graves ameaças configuradas em um renascimento da extrema direita. Ao contrário dos eventos que culminaram com a CLT, o retrocesso social que vivemos hoje baseia-se na retirada de direitos e na desvalorização do trabalho.
Se por um lado a CLT baseou a formação de uma classe média consumidora de produtos e serviços, por outro, seu desmonte congregado principalmente na reforma trabalhista e refletido no trabalho dos entregadores por aplicativos, faz o caminho inverso, retirando a população da classe média e a jogando-a na pobreza e no abandono.
Jogando-a em uma situação em que a sobrevivência, imperativa, baseia-se na lógica exposta por Barreto “quem precisa ganhar o pão de cada dia não pode esperar”.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical