Ela é a primeira super-heroína de quadrinhos da Índia. Ela cavalga um grande tigre de Bengala, e, em vez de leggings, veste sári ou um salwar kameez, outra roupa tradicional entre as mulheres indianas. Ela também é alguém que sobreviveu a um estupro coletivo e que fez de seu trauma, uma arma.

Priya, a personagem em questão, é surpreendente sob muitos aspectos. Ela inicia sua jornada como um garota camponesa indiana simples, mas em três graphic novels aclamadas pela crítica, combate os demônios do estupro, do ataque com ácido e, mais recentemente, do tráfico sexual. Mas quem imagina decapitações e cenas de vingança sangrentas inspiradas na deusa Kali ― uma das divindades do hinduísmo cuja representação é manchada de sangue, com cobras e um colar de crânios ― pode acabar se decepcionando.

As tramas dos três livros possuem uma nuance crítica: o fato de que rejeitam a dicotomia de bem versus mal vista na maioria das histórias sobre super-heróis. E o modus operandi de Priya é diferente de muitos outros: ela não apenas derrota os vilões como reconhece o sistema sociocultural que os criou. Outro aspecto inovador dos livros: Priya foi uma das primeiras HQs da Índia a usar realidade aumentada. As histórias ganham vida surpreendente quando você scaneia as capas e páginas com o aplicativo chamado Artivive.

Priya foi vista pela primeira vez em Priya’s Shakti, de 2014, publicado contra o pano de fundo do estupro coletivo hediondo cometido em Délhi em dezembro de 2012. Nessa história de origem, somos apresentados a Priya, uma jovem que é humilhada e rejeitada depois de sofrer uma agressão sexual. Em seu desespero, ela pede ajuda aos deuses.

Enquanto o Senhor Shiva quer castigar todos os homens por converter-se em “degenerados”, revogando sua capacidade reprodutiva, a deusa Parvati tem outra ideia: ela envia Priya em uma missão para salvar o mundo, mudando as normas sociais profundamente patriarcais que levam à violência contra as mulheres.

Em Priya’s Mirror, de 2016, Priya dá as mãos às vítimas de ataques com ácido para juntas combaterem o rei demônio Ahankar e divulgarem uma mensagem sobre corpos e liberdade das mulheres.

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Uma cena de Priya and The Lost Girls

No livro mais recente da série, Priya and the Lost Girls (Priya e as garotas perdidas, em tradução livre), lançado em 2019, Priya volta para seu povoado para investigar o desaparecimento de meninas e mulheres jovens, entre elas sua própria irmã Laxmi. Ela então descobre que elas foram levadas a um prostíbulo subterrâneo na cidade que é comandado por um demônio chamado Rahu cujo poder vem do controle que ele exerce sobre a mente e o coração de mulheres. Cabe a Priya libertá-las do feitiço dele e intervir para salvá-las, sendo que os habitantes de suas aldeias as rejeitam.

Priya é mais uma guerreira de justiça social do que uma cruzadista sedenta de sangue. Mas isso não a impede de ser incisiva e forte quando mergulha em montanhas vulcânicas com o tigre voador que ela amansou para ser seu pet, espalhando seu sangue divino sobre monstros míticos para derrotá-los.

“Priya não é uma super-heroína qualquer”, diz o cineasta Ram Devineni, produtor e criador da série Priya. “Apesar de cavalgar um tigre, sua principal força é seu poder de persuasão.”

A dramaturga Dipti Mehta, que passou muito tempo nas zonas de prostituição de Mumbai fazendo pesquisas para seu premiado espetáculo individual Honour, foi chamada para coescrever a história do terceiro livro.

Ruchira Gupta, fundadora da Apne Aap Women Worldwide – uma das maiores ONGs mundiais que apoiam meninas e mulheres em situação de risco na Índia e nos Estados Unidos – também participou do trabalho e ajudou a deitar as bases da história.

“Em meus anos de pesquisa, descobri, para meu horror, que existe uma cadeia de fornecimento muito eficiente que se estende de vilarejos no interior da Índia e do Nepal até bordéis em Mumbai, Délhi, Kolkata e Patna. Os clientes pagam um valor irrisório por cada estupro, algo como 30 centavos de dólar, contribuindo com uma indústria multibilionária”, explica Gupta.

Esses clientes pagam um valor irrisório por cada estupro, algo como 30 centavos de dólar, contribuindo para uma indústria multibilionária.

Um cenário típico, ela disse, envolve um agente que oferece a um camponês um valor de cerca de US$100 (o equivalente a R$ 420 reais) por sua filha de 13 anos. Em seguida, grupos de meninas são levadas, atravessando fronteiras ilegalmente. Confinadas em barracos por alguns dias, elas são espancadas, passam fome e depois são levadas a transportadores que, por sua vez, as entregam a cafetões nas grandes cidades. Quanto mais nova a menina, maior o preço dela. A rotina diária, que pode se prolongar por cinco anos ou mais, muitas vezes inclui passar dias trancada em um cômodo apertado e ser oferecidas para dez a 15 clientes por noite.

Em janeiro de 2017, Devineni passou algum tempo na zona da prostituição de Kolkata, Sonagachi. Ali ele conheceu dezenas de vítimas de tráfico sexual e decidiu que dedicaria o próximo livro de Priya a essa questão.

A história de Priya and the Lost Girls ressalta vários aspectos do tráfico de pessoas na Índia, incluindo o modo como as mulheres são coagidas a se prostituir e depois não conseguem enxergar uma saída.

“Uma vez absorvidas pelo sistema, as trabalhadoras sexuais são condicionadas a acreditar em certas coisas. Por exemplo, elas começam a se solidarizar com seus opressores, começam a se conformar com essa vida e a pensar que aquele é o único lugar para elas no mundo. Começam a aceitar o trauma como uma realidade inescapável da vida”, diz Mehta.

A história de Priya and the Lost Girls ressalta vários aspectos do tráfico de pessoas na Índia, incluindo o modo como mulheres são coagidas a se prostituir e depois não conseguem enxergar uma saída.

Um tema recorrente nos três livros é a ênfase sobre a natureza sistêmica da violência contra as mulheresPriya and the Lost Girls procura explicar que trabalhadoras sexuais que foram traficadas muitas vezes permanecem nesse trabalho apenas porque sentem que nunca mais serão aceitas na sociedade dita “civilizada”.

“As mulheres geralmente são vistas como culpadas por tudo de ruim que acontece com elas. As pessoas querem lavar as mãos de qualquer responsabilidade por contribuírem para um sistema opressivo que conduz ao tráfico e exploração. Acham mais fácil, em vez disso, culpar a mulher por se prostituir. É mais fácil pensar que ela é suja e imoral, em vez de admitir que a suposta ‘escolha’ dela é fruto de uma sociedade patriarcal”, diz Dipti.

Ruchira Gupta sabe muito bem que a operação de resgate é apenas metade da batalha pela salvação das mulheres. Ainda há outra perspectiva dolorosa pela frente: a reiniciação delas em todos os aspectos da vida pública e privada com um status verdadeiramente digno e igual, algo que implica receber acesso igual à educação, a empregos, habitação, etc.

Ela comenta: “O que eu mais apreciei na história foi que a luta pela liberdade não terminava com a saída das mulheres do prostíbulo, mas com a contestação do sistema, no qual o livro mostra que tanto homens e mulheres estão condicionados a aceitar o patriarcado”.

Sem falar que hoje em dia tudo na sociedade é tão sexualizado, da publicidade até o cinema. Por isso é crucial conscientizar as crianças desde pequenas.

A HQ utiliza uma linguagem “correta”, mas não hesita em mostrar as realidades duras a seus leitores, formados principalmente pelo público juvenil de 13 anos ou mais.

“Os traficantes perseguem principalmente crianças de cinco a 13 anos. Talvez queiramos proteger nossos filhos e a inocência deles, escondendo questões como essas deles, mas com isso só os estaremos colocando em situação de risco. Sem falar que hoje em dia tudo na sociedade é tão sexualizado, da publicidade até o cinema. Por isso é crucial conscientizar as crianças desde pequenas. Eu pessoalmente já comecei a conversar sobre esses assuntos com minha filha de 5 anos e meio”, diz Mehta.

Mas, para adequar-se às sensibilidade das crianças, Mehta deixou a narrativa realista e fantástica em medidas iguais.

Desse modo ela ainda é educativa, mas o fato de ser mítica suaviza o aspecto chocante. “Em vez de Rahu, o antagonista principal, ser um homem, nós o mostramos como monstro. Permanecemos no campo da história e do mito, em vez de ambientar a história na realidade”, explica Mehta.

A série já foi descarregada mais de 500 mil vezes e pode ser encontrada em inglês, espanhol, italiano, português e híndi. Financiada originalmente pelo Fundo de Mídia do Instituto Tribeca de Cinema, a Fundação Ford e o Banco Mundial, a terceira edição foi desenvolvida durante o programa do Artista em Residência do Merriweather District, em Columbia, Maryland. O projeto está sendo produzido pela editora literária e produtora de cinema Rattapallax, com sedes em Nova York e Nova Délhi.

“Descobri que a maioria das pessoas não quer falar desses assuntos”, disse Devineni. “Estupro, ataques com ácido e outros problemas de violência de gênero são temas difíceis. Mas quando a discussão é estruturada em torno de uma super-heroína e uma HQ, torna-se mais acessível. Esse foi o grande avanço que conquistamos. Outra coisa é que depois do caso hediondo do estupro coletivo num ônibus, perpetradores e vítimas viraram foco de muita atenção na Índia. Mas discutiu-se muito pouco sobre o tratamento que a sociedade dá às sobreviventes da violência sexual e sobre o ônus da vergonha que ela impõe às mulheres. Acho que a história em quadrinhos ajudou a deslanchar essa discussão.”

Priya and the Lost Girls foi lançado no dia 26 de novembro, durante a campanha internacional 16 Dias de Ativismo Contra a Violência de Gênero, que acontece entre 25 e 10 de dezembro. O livro também foi lançado no Sheroes’ Hangout, em Agra (na Índia), em 30 de novembro, e será lançado no Merriweather Art District, em Columbia,  no dia 7 de dezembro.

*Este texto foi originalmente traduzido do HuffPost India e traduzido do inglês.