Por: Marcisio Moura
Valmira Luzia
Entrevista: Professora Selma Venco fala ao Voz Ativa
Nestes últimos tempos você já deve ter ouvido falar em termos como: 4ª Revolução Industrial e Inteligência Artificial. Mas o que esses termos significam e o que têm a ver com o nosso cotidiano?
Bem, a resposta é complexa e merece inicialmente outra pergunta para darmos continuidade a esta explicação. Você trabalha?
Se a resposta for, sim, reserve alguns minutos do seu tão importante tempo para ler esta entrevista, pois está relacionada diretamente com sua vida e com o seu futuro. Mas se a resposta for, não. Pode ter certeza, ela afetará sua vida da mesma maneira. Então, desfrute e aproveite.
“Se em países com leis trabalhistas mais rígidas, com maior respeito aos direitos vinculados ao trabalho isso já acontece, como podemos imaginar algum cenário favorável à classe trabalhadora nesse país regido pela Reforma Trabalhista e logo mais pela da Previdência?”
É com considerações como esta que, Selma Venco, falou com o Voz Ativa. Mostrando que apesar de um futuro nada promissor na disputa Capital x Trabalho a Inteligência Artificial veio pra causar ainda mais modificações no tão disputado mercado de trabalho brasileiro e mundial. E pior, num cenário de aproximadamente 13 milhões de desempregados no nosso país, esta é uma notícia que veio para desagradar.
Socióloga do trabalho, professora da Unicamp e pesquisadora associada do Centre de Recherches et Politiques de Paris (CRESPPA). Autora de dois livros sobre telemarketing (“Telemarketing nos bancos: o emprego que desemprega” e “As engrenagens do telemarketing: vida e trabalho na contemporaneidade”), além de vários artigos e capítulos de livro sobre o tema, Selma Venco, foi convidada pelo, “Voz Ativa”, e concedeu esta entrevista ao jornal dos Trabalhadores em Telemarketing e foi para além dos temas propostos: 4ª Revolução Industrial e Inteligência Artificial, trazendo um apanhado histórico, falou sobre individualismo, consumo, importância do coletivismo e as consequências que esses adventos trarão ao mundo do trabalho tupiniquim e, consequentemente, aos que laboram. Vale a pena conferir a entrevista, além de valer como um grande aprendizado para um futuro não tão distante.
Voz Ativa - Como se dá esta nova chamada 4ª Revolução Industrial, e sua avaliação para setores de relacionamento com os clientes, onde a mão de obra humana está sendo substituída de maneira intensa?
Selma Venco- Penso que, em primeiro lugar, é importante refletir sobre o que se compreende por revolução industrial. Há uma corrente que considera a ocorrência de uma revolução industrial apenas quando há uma série de mudanças simultâneas para o conjunto da sociedade e não somente na base técnica do trabalho, ou seja, não é só por conta do vapor, da eletricidade, da microeletrônica... mas, sim, por uma série de mudanças. Na 1ª revolução industrial (RI), por exemplo, com a criação das indústrias, a população se moveu do campo para a cidade, se aglutinando nos centros e com ela os problemas como alcoolismo, pobreza generalizada etc. É, portanto, uma modificação que afetou não apenas como o trabalho passou a ser realizado, mas a vida, os meios de sobrevivência etc.. Então, nem todo pensamento converge para a existência de uma 3ª RI, quem dirá para a 4ª ou 5ª, como preferem alguns autores e autoras. Mas, partindo da ideia que são 4 RIs podemos dizer que foram: a primeira, baseada na mecânica, a segunda na eletricidade, a terceira na microeletrônica (automação, robotização) e a quarta na inteligência artificial, no avanço da robótica entre outros.
Voz Ativa – Partindo desse entendimento, como irá afetar nossa categoria?
Selma Venco- Vamos focar aqui na inteligência artificial (IA), pois entendo que essa afetará - e já afeta - diretamente a categoria dos(as) operadores(as) de telemarketing. Isso porque essa área da computação apresenta grande potencial de substituição do trabalho humano e, portanto, do atendimento. Por quê? Mesmo que artificial, esse tipo de inteligência desenvolvida é capaz de responder demandas, resolver problemas e mesmo tomar decisões.
Lembro que quando o sistema digital surgiu fomos percebendo lentamente como ele já estava presente no nosso dia-a-dia. Quantos relógios analógicos vemos hoje nas ruas, por exemplo? Alguém ensina as crianças a lerem as horas em relógio analógico?; agora está acontecendo o mesmo. Veja um exemplo que diz respeito à categoria. Liguei para suspender a assinatura do jornal por 15 dias. Quem me “atendeu”? ninguém...a IA fez tudo: perguntou o período, meus dados e pronto...a solução da minha demanda não passou por nenhum atendente humano.
Voz Ativa – Então todo trabalho poderá ser substituído?
Selma Venco- Penso que o trabalho vivo, aquele desenvolvido pelo ser humano, nunca será substituído. Mas, sem dúvida, há segmentos profissionais que, novamente, desaparecerão. Foi assim nos anos 1990 quando tivemos a reestruturação produtiva e o avanço da microeletrônica. Podemos dar exemplos claros, como o que ocorreu nos bancos com o autoatendimento, na indústria automobilística com a inserção de robôs, e tantos outros. Agora, no meu entendimento, ela afetará agressivamente o setor de serviços, em especial operadores(as) de telemarketing. Após o boom de crescimento dos calls centers no início dos anos 2000 e da fusão de empresas, não tenho dúvidas que agora será o momento de reestruturar o teleatendimento e, com certeza, o lado da corda que irá romper será o do emprego, ou seja, reduzir pessoal.
Voz Ativa – Caso essa tecnologia não seja utilizada para reduzir a jornada de trabalho, sem reduzir salários, para reduzir o desgaste físico dos que laboram, a exemplo do que ocorreu na indústria, como a sociedade deve responder ao desequilíbrio gerado por essa nova ordem social?
Selma Venco– No início dos anos 1990 participei de um seminário e Paul Singer disse uma frase que me marcou muito: “eu não choro uma lágrima por um trabalho que pode ser substituído por uma máquina”. O que ele queria dizer? Se um trabalho pode ser feito por uma máquina é sinal que ele é repetitivo, monótono, muitas vezes penoso e não transforma o(a) trabalhador(a), como dizia Marx: “trabalho é a transformação da natureza e nesse processo o homem também se transforma”.
Podemos achar ruim uma máquina que substitui o(a) cortador(a) de cana? De forma alguma! É um trabalho desgastante, árduo! O problema é o capitalismo. Alguém, em sã consciência, pode achar que a tecnologia avança para reduzir jornada de trabalho, para que haja trabalhos mais criativos, mais lazer e menos trabalho no contexto do capitalismo? Não. O que aconteceu com os(as) cortadores(as) de cana que foram substituídos(as) por máquinas? Desemprego! Parcas ações das empresas e das políticas públicas foram feitas para reinserção no mercado de trabalho e para requalificação profissional de trabalhadores e trabalhadoras. Então, em princípio, seria maravilhoso se o uso da tecnologia promovesse melhores condições de vida e de trabalho à população. A sociedade vive, há algum tempo, uma fase de aceleração extremada, da concorrência acirrada, do medo permanente do desemprego... as pessoas vivem amedrontadas com a possibilidade de não poder pagar as contas, em um mundo cuja felicidade é baseada no consumo. Agora...como a sociedade deve responder?
Voz Ativa – E isso nos afeta diretamente, não?!? Há saídas?
Selma Venco- Isso é grave. Então, a resposta para sua pergunta é muito pessimista da minha parte. Há saídas? Sim! A sociedade vai dá-las? Duvido muito...porque isso demandaria um processo de conscientização em massa... e a educação formal, as mídias (com raras exceções), a fase atual do capitalismo plantaram a semente do individualismo, da competitividade e romperam com a ideia da solidariedade e da importância do coletivo. Falar em coletivo hoje é ser subversivo, quando, de fato, só se quer o melhor para a humanidade e condições mais dignas e justas de vida.
Então, para trazer uma pitada de otimismo a receita seria: ninguém larga a mão de ninguém! Mais coletivo, menos concorrência e mais solidariedade; mais consciência e que juntos possamos alterar o curso da história, pois, ao contrário ela irá nos engolir...para não perder seu velho hábito.
Voz Ativa - Entendemos que o setor de serviços atende as necessidades e subjetividades dos clientes, sendo assim, como utilizar a tecnologia a favor da melhoria entre clientes e prestadores de serviços cumprindo de fato o papel para o qual estas tecnologias foram adotadas?
Selma Venco- Não penso que haja alguém contra a tecnologia. Não somos luditas (pessoa que se opõe à industrialização ou ao desenvolvimento tecnológico/movimento do século XIX que destruía as máquinas, pois consideravam que elas causavam desemprego). Quem pode ser contra uma máquina que detecta rapidamente se temos um tumor? E tantos outros avanços possibilitados pela ciência? A pergunta que devemos responder é: a sociedade, os clientes, preferem ser atendidos por pessoas ou estão com tanta pressa que preferem um robô resolvendo seus problemas? Se pensarmos no telemarketing selvagem existente no Brasil, que força os(as) atendentes a venderem algo que o cliente não quer, que liga na hora do jantar, no sábado à tarde... isso é uma violência para ambos os lados, porque o(a) trabalhador(a) sabe que está importunando, mas deve fazê-lo para manter seu emprego. Enfim, a tecnologia pode ser totalmente usada em favor da humanidade, mas, para isso, seria preciso alterar a visão das esferas política e empresarial.
Voz Ativa – Na sua opinião, qual o caminho a ser adotado uma vez que os atendentes nem sempre possuem as ferramentas para sanar os problemas dos clientes?
Selma Venco- Deveria haver uma reformulação geral no sistema. Mas, enquanto isso não acontece... é possível pensar em um trabalho mais rico em termos de conteúdo aos(às) operadores(as). Por exemplo: na Holanda o(a) atendente recebe uma ligação e ele mesmo soluciona o problema, ou seja, ele segue com as demandas dos clientes até o final. Isso faz com que ele(a) diversifique sua atividade e que possa criar algo novo, se implicar no trabalho de outras formas que não apenas o trabalho repetitivo e seguindo um script. Não estou dizendo que a exploração irá cessar... isso, sim, seria necessário. É possível enriquecer o trabalho dos seres humanos deixando as tarefas repetitivas aos robôs. Isso vai acontecer? Também duvido muito, pois no capitalismo a ordem é lucrar mais e não há preocupação com quem trabalha, se ele ficará desempregado, se adoeceu por conta do trabalho etc.
Voz Ativa - As entidades sindicais partem do pressuposto que o pacto social para a manutenção de emprego e renda deve caminhar em conjunto com a evolução tecnológica. Assim, como podemos contribuir para a manutenção dos postos de trabalho e sua humanização?
Selma Venco- A relação capital x trabalho sempre foi e sempre será tensa. A manutenção do emprego tem sempre sido feita com muito sacrifício pela classe trabalhadora. Todos os direitos conquistados pela classe trabalhadora foram resultado de muita luta e mobilização: jornada de 8 horas diárias e tantos outros que querem derrubar agora. As empresas sempre alegam que já estão no limite. Estariam mesmo? Elas abrem mão de parte dos lucros? Quem assume o papel de redentor? Os (as) trabalhadores(as)! É importante atentar para o caso recente da GM no ABC e em São José dos Campos, a empresa propôs reduzir o piso salarial, acabar com a estabilidade no emprego dos que adoeceram por causa do trabalho... isso é um capitalismo cruel. Os (as) trabalhadores (as), por sua vez, aceitam menores salários para que as empresas não desloquem suas atividades para outra cidade; aceitam condições adversas em troca da manutenção do emprego, porque é lógico que estão preocupados(as) com a sobrevivência. Se em países com leis trabalhistas mais rígidas, com maior respeito aos direitos vinculados ao trabalho isso já acontece, como podemos imaginar algum cenário favorável à classe trabalhadora nesse país regido pela Reforma Trabalhista e logo mais pela da Previdência? Quero dizer que não vejo saída em curto prazo, exceto se houver uma grande mobilização dos (as) trabalhadores (as) dizendo um basta às práticas predadoras e ameaçadoras para manutenção do emprego.
Há saídas, mas no Brasil elas nunca foram adotadas. O exemplo da reestruturação bancária no exterior é revelador. Em todos os países industrializados a tecnologia, o autoatendimento foram adotados, mas com as restrições para demissão nos países que contam com proteção de direitos, foi feito um planejamento para funções que seriam suprimidas pela tecnologia: caixas nos bancos passaram por programas de formação profissional e realocados para outras áreas, como a venda de papeis que cresceu no mesmo período. Com isso, a Itália, por exemplo, reduziu os efeitos nocivos da tecnologia para o emprego. Portanto, o uso da tecnologia é uma questão política e pode ser tratada. Mas quais as chances de algo semelhante acontecer no Brasil, especialmente na atual conjuntura?
Voz Ativa – Então, se tudo é uma questão de vontade e opção política, onde ficam os sindicatos?
Selma Venco- Há tempos venho dizendo que a luta sindical está cada vez mais difícil e desafiadora e que uma frente a não ser negligenciada pelos sindicatos é a formação política, a consciência do percurso histórico da conquista dos direitos, das transformações do trabalho, das características do capitalismo... a educação formal tem se distanciado desses temas, a sociedade não privilegia mais (salvo exceções) esse debate... os sindicatos, os movimentos sociais precisam se voltar mais para as bases, nesse sentido. Sei que não é fácil. Sei que organizar uma categoria profissional, cada vez mais, não é tarefa tranquila, dadas as características do próprio estágio do capitalismo, da aceleração da vida, da premência por maior qualificação para manutenção do emprego etc., mas auscultar mais a classe trabalhadora, compartilhar reflexões, construir conhecimento esses, sim, são caminhos seguros.