Organizadores e participantes comemoram a 4° edição do festival que tem se consolidando na cena do audiovisual da região

Alicia Lobato Amazônia Real
 
 
 

Apesar da pouca participação feminina na produção dos filmes selecionados para a quarta edição do Olhar do Norte Festival de Cinema, encerrado na última segunda-feira (24), o filme vencedor na categoria de Melhor Filme é dirigido por uma mulher, a jovem Rayane Penha, de 25 anos, do Amapá (AP).

Seu filme Utopia, que retrata a realidade de trabalhadores do garimpo, a partir da história de seu pai, foi o escolhido pelos jurados da mostra. Rayane não pode participar da cerimônia de premiação, que aconteceu no Teatro Amazonas (assim como toda a programação da mostra), e mandou um vídeo, exibido ao público na noite de encerramento.

“Estou muito feliz, muito emocionada. Ainda sem conseguir acreditar. Estava emocionada de o filme ser exibido na mostra, no Teatro Amazonas. Mexeu muito comigo. Foi muito significativo”, disse Rayane, no vídeo de agradecimento.

Em entrevista à Amazônia Real nesta quarta-feira (26), ela disse que lamentou por não estar presente na premiação. “Minha expectativa era essa troca presencial com os realizadores da região”, disse Rayane, que também é jornalista e foi colaboradora da Amazônia Real.


Rayane Penha na premiação do 4º Festival Olhar do Norte (Foto: Larissa Martins/Artrupe)

No total, foram 13 premiados, entre as categorias técnicas e menção honrosa. O prêmio de melhor direção foi para Pedro Olaia e San Marcelo, do curta-metragem Benzedeira, do Pará; o de Melhor Roteiro foi para Elder Torres e Thiago Briglia, realizadores de Rabiola, de Roraima. A protagonista de Benzedeira, Maria do Bairro, levou um dos prêmios de Melhor Atuação interpretando a si própria. A outra premiada na categoria de Melhor Atuação foi a atriz venezuelana Ixemar Camacho, por Rabiola.

O júri da Mostra Norte da 4ª edição do Olhar do Norte Festival foi composto por Flávia Abtibol, Aldemar Matias, Dheik Praia, Francis Madson e Elaíze Farias, cofundadora e editora de conteúdo da Amazônia Real.

Pedro Olaia, que também não pode estar presente no festival, enviou um vídeo de agradecimento exibido durante a cerimônia de premiações, no qual, emocionado, agradeceu a conquista.

“Mesmo não estando presente, nós estamos acompanhando ansiosos e só temos a agradecer a essas duas premiações. Ver esse trabalho assim, ganhando premiações, é só mais uma prova e uma motivação para nós continuarmos trabalhando e falando sobre a nossa cultura, sobre os nossos povos e as nossas tradições”, disse ele. (leia ao final dessa matéria a lista completa dos premiados),

Rayane Penha lembrou sua trajetória na produção audiovisual na entrevista à Amazônia Real. Ela contou que começou no audiovisual ainda adolescente, há quase 10 anos, depois de ter participado de um projeto do governo que unia cinema e educação. Em 2017, lançou seu primeiro trabalho autoral. Foi nessa época que deu início à sua produtora, a Catraia, com foco em comunicação e no audiovisual.

Utopia retrata a história do pai de Rayane, Raimundo Penha, quando ele trabalhava em exploração mineral em sua terra natal. A cineasta acredita que o ambiente do garimpo é pouco conhecido e quis mostrar essa realidade através de sua obra.

Além disso, o processo de produção se misturou com o seu próprio rito de luto, pelo qual não tinha passado ainda, visto que seu pai faleceu em 2017, em um acidente que aconteceu no garimpo. O filme começou a ser produzido em 2018, logo após a perda do pai.

“Ele me incentivava bastante. Era muito sonhador também e quando ele veio falecer nesse lugar foi muito trágico de ter sido uma morte dentro do garimpo e trabalhando. Foi um acidente dentro do garimpo, não sabemos muito bem o que aconteceu. Eu comecei o filme não necessariamente para falar sobre o garimpo, mas para falar sobre a história dele e um pouco sobre essa obsessão de ter que voltar; mas também de colocar esse homem que para mim era o amor da minha vida, em um lugar humano”.


Foto still de “Utopia” (Foto: Cézar Morais/Catraia Filmes)

Ainda surpresa com a vitória no Olhar do Norte, Rayane afirma que não esperava esse reconhecimento. Diz que apenas queria finalizar o filme por conta do processo de produção e por ter sido tão difícil compartilhar a história do pai.

“O meu pai voltou para esse espaço (garimpo). Ele tinha saído há um tempo, mas não conseguíamos nos manter na cidade. Eu trabalhava, mas trabalhava bem pouco, e meu pai já tinha 58 anos, era um homem preto, sem estudo na cidade e não conseguiu trabalho. Ele acabou voltando para o garimpo e morreu porque não tínhamos como pagar a energia em casa. É um espaço muito mais problemático do que as pessoas comentam”.

Imigração e preconceito


Gravações de “Rabiola”, de Thiago Briglia (Foto: Divulgação)

Com duas premiações recebidas pelos jurados, Rabiola também foi o preferido do público presente durante os dois dias de exibição dos filmes da Mostra, ocorrida sábado (22) e domingo (23). O curta traz uma narrativa sutil, mas contundente, sobre as relações humanas no contexto da imigração em Roraima.

À Amazônia Real, Thiago Briglia, diretor e um dos roteiristas do curta-metragem Rabiola, explicou que trabalhar com o tema de imigração é uma questão que envolve toda a Amazônia e que, em Roraima, foi natural o olhar cinematográfico ter se direcionado para essa temática.

A história conta sobre a realidade de três crianças – uma brasileira e duas venezuelanas – que a partir de um confronto de papagaio no ar, diversos temas são aprofundados e expõem outros tipos de conflitos que existem em Roraima, como a questão da desigualdade social e das relações do imigrante com o roraimense. 

“É um curta muito complexo. Primeiro, você está lidando com a questão social muito forte. Temos que trabalhar com muito cuidado, até para não cair nos estereótipos. Por outro lado, tem esse desafio de trabalhar com crianças, todo o trabalho de preparação do elenco, construção de personagens, duas culturas diferentes”, explica Thiago.

Para o diretor, apesar das dificuldades de gravar um filme durante a pandemia da covid-19, no início de 2021, a expectativa foi alta. Mas ele destaca que, só de estar no festival, já era uma maneira de se conectar com outras pessoas, em um lugar que ele considera muito autêntico como o festival Olhar do Norte.

“Ver o filme na telona do Teatro Amazonas tem todo um simbolismo também para nós. Uma aura que envolve esse espaço nos empolgou, e sair de lá com três prêmios nos deixou eufóricos. O prêmio é visibilidade para o filme, chama atenção do público, da crítica, e para o nosso trabalho. E para a gente que está aqui na ponta, um prêmio como esse impulsiona para continuar seguindo fazendo filme”.

Mulheres cobram mais participação


Momento em que as mulheres realizadoras do audiovisual subiram ao palco do Teatro Amazonas para cobrar mais espaço (Foto: Larissa Martins/Artrupe)

Entre os 17 filmes selecionados na mostra competitiva do festival, apenas outros dois são dirigidos por mulheres: Meu coração é um pouco mais vazio na cheia, de Sabrina Trentim, e Ãgawaraitá: Nancy, de Priscila Tapajowara.

“Fiquei muito feliz com a seleção e claro com o prêmio, mas com certeza é um incômodo ver um número tão baixo de mulheres no festival. Espero que no próximo ano possamos estar em maior número e que, principalmente, essa curadoria seja reformulada”, disse Ryane Penha, ao comentar sobre ser uma exceção neste cenário.

A presença inexpressiva de mulheres por trás das câmeras provocou uma mobilização durante a programação paralela da Mostra e teve seu ponto alto na noite de encerramento, quando cinco realizadoras (atrizes, assistente, produtoras, roteiristas) que atuam no audiovisual no Amazonas subiram ao palco cobrando mais espaço para a produção feminina no cinema: Isabela Catão, Júlia Kahane, Naila Fernandes, Rosa Malagueta, Saleyna Borges e Joce Mendes.

Agora, o passo seguinte é a criação de um Coletivo de Mulheres do Audiovisual que já começa a ser gestado em Manaus.

“Pouquíssimas mulheres a gente conhece no nosso Estado que trabalham com cinema e com arte. A gente tem que fazer urgentemente um coletivo só de mulheres para participar mais do festival Olhar do Norte e de outros festivais pelo Brasil”, disse a atriz Rosa Malagueta durante a cerimônia de premiação, no palco do Teatro Amazonas. Rosa Malagueta é uma das mais atrizes amazonenses de maior projeção, com atuações em novelas e filmes nacionais.

A participação feminina do audiovisual foi tema de uma das rodas de conversa na programação paralela da mostra ainda no domingo (23), quando aconteceu um debate com o tema “Mulheres no audiovisual: Representatividade e equidade”.

A roda de conversa contou com a participação das atrizes amazonenses Isabela Catão e da própria Rosa Malagueta, da diretora Sabrina Trentim, de Tocantins, e da realizadora audiovisual Keyla Sankofa, também do Amazonas.

Segundo atriz Isabela Catão, a discussão buscou entender como fazer para que outras mulheres pudessem conhecer o festival e se inscrever. Isabela está no elenco de um dos filmes exibidos na mostra competitiva, Jamary, de Begê Muniz.

“Percebemos que existe uma fragilidade do fazer no audiovisual. A partir dessa reflexão, acabamos fundando um fórum de mulheres do audiovisual e do teatro. Isso para que elas consigam se comunicar e até entender quais são as linguagens de cada uma”, explica a atriz à reportagem.

Isabela Catão diz que a criação desse fórum foi um ponto de partida para conhecer as mulheres, o que elas pensam e como refletir sobre o que deve ser feito. São vários os fatores, como a formação, e a ausência de espaço para essas mulheres, e enfatiza:

“Sabemos que é um caminho a ser trilhado, escolhas de direção e produção. Incluir mulheres tem a ver com escolhas, tanto da direção quanto da produção. Para além tem a ver com a estrutura masculina que está muito enraizada ali, como vamos desconstruir isso, como conseguimos nos colocar como mulher, produzir, conseguir materializar o que a gente acredita como arte?”, indaga.

A produtora Saleya Borges contou sobre as motivações em entrevista à Amazônia Real e como, a partir de algumas inquietações, surgiu a iniciativa de organizar um coletivo ou um fórum.

“A Rosa A Malagueta e a Isabela Catão toparam e anunciamos no encerramento do festival. O momento agora é de organizar uma reunião para  conhecermos quem são essas mulheres do audiovisual amazonense e a partir disso pensarmos estratégias para nossa categoria”, disse.

Rayane Penha endossa a demanda das mulheres do Amazonas. Ela lembra que existem muitas mulheres fazendo cinema de qualidade na região que precisam ter mais espaço para produzir e mostrar seus trabalhos.

“São mulheres negras, indígenas.. Estamos produzindo. Mas ainda se esbarra na barreira de curadorias formadas majoritariamente por homens, geralmente brancos e isso precisa ser reformulado. Acredito que a construção de redes também para essas seleções passe a ser mais divulgada e alcance mais lugares”, afirmou Rayane.

Saldo positivo


Premiados e o corpo de jurados no encerramento do Festival (Foto: Larissa Martins/Artupe)

A 4ª edição do Olhar do Norte Festival foi realizada pela primeira vez no Teatro Amazonas. Em 2021, pelas limitações da pandemia, a mostra foi realizada exclusivamente online. Em 2022, a programação foi híbrida, mas a maior parte aconteceu presencialmente. Todos os filmes concorrentes foram exibidos no teatro, com restrição de público presente por conta da pandemia.

Para Diego Bauer, ator, produtor cultural e integrante da Artrupe Produções Artísticas, realizadora do evento, apesar de precisarem realizar o evento durante a pandemia e com o surgimento das novas variantes, os relatos dos participantes fizeram a equipe acreditar que essa foi a melhor edição do festival, principalmente, pelo evento ter sido realizado no Teatro Amazonas, um lugar onde vários artistas sonham em estarem presentes. Segundo Diego, a presença também de realizadores de diversos estados da região Norte foi o diferencial dessa edição. 

“É um festival que sentimos que já adquirimos algum tipo de prestígio com as pessoas que participam. As nossas conversas foram muito de pessoas dizendo que adoraram participar do festival, que realmente é uma experiência diferente para qualquer artista. Mesmo com muita dificuldade esse ano, o saldo é amplamente positivo”. 

Sobre a demanda das mulheres do audiovisual, Diego Bauer, que também assina a curadoria do festival, concorda ao admitir que ainda existe um número baixo de filmes dirigidos por mulheres. Para ele, essa realidade vai além de não haver mulheres no audiovisual, pois também abrange fatores econômicos, políticos e sociais. E afirma que buscará junto dos realizadores do festival mudar essa realidade.

“Eu acho que não é um detalhe. O festival cresce se tiver mais participação de mulheres, pessoas pretas, indígenas, trazer os filmes e os realizadores do interior do Amazonas. Para nós, é muito importante que eles estejam presentes, na verdade é um caminho que estamos iniciando”.

E finaliza: “O clima entre nós é de sucesso, tranquilidade, realização. Temos questões relacionadas à busca de financiamento, uma diversificação melhor de renda, além dos editais públicos, como vamos nos tornar mais conhecidos para os realizadores dos outros estados. Uma vez que conseguimos, já temos o principal do festival que é a comunhão”.


Diego Bauer na noite de premiação do 4º Festival Olhar do Norte (Foto: Larissa Martins/Artrupe)

Premiados da Mostra Norte – Olhar do Norte

Melhor Filme – Júri: Utopia, de Rayane Penha (Amapá)

Melhor Filme – Prêmio do Público: Rabiola, de Thiago Briglia (Roraima)

Melhor Direção: Benzedeira, de Pedro Olaia e San Marcelo (Pará)

Melhores Atuações: Ixemar Camacho, de Rabiola (Roraima) e Manoel Amorim (Maria do Bairro), de “Benzedeira” (Pará)

Melhor Roteiro: Thiago Briglia e Elder Torres, de Rabiola (Roraima)

Melhor Direção de Fotografia: Luana Peixe e Rodrigo José, de Meus Santos Saúdam Teus Santos (Pará)

Melhor Direção de Arte: Humberto Rodrigues, de Stone Heart (Amazonas)

Melhor Montagem: Felipe Rodrigues, de Graves e Agudos em Construção (Amazonas)

Melhor Som: Don McConell, de Mestres da Tradição na Terra do Guaraná (Amazonas)

Menção Honrosa: Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos, de Atordoado, Eu Permaneço Atento (Amazonas)

 

Fonte: Brasil de Fato