Tombamento do espaço, porém, não foi recomendado pelo DPH. Ministério Público quer impedir a desocupação do endereço, previsto para o dia 28, e entrou com ação na Justiça pedindo que área seja considerada Zona de Proteção Cultural.
A Justiça de São Paulo deu um prazo de 72 horas, a partir desta terça-feira (14) para a Prefeitura de São Paulo se pronunciar sobre o tombamento de um endereço histórico da cidade, onde hoje funcionam o anexo do Espaço Itaú de Cinema e o Café Fellini, na Rua Augusta, 1.470.
Após 28 anos de funcionamento, a última sessão de cinema estava prevista para ocorrer dia 16 e a desocupação até o dia 28 de fevereiro.
Em uma reunião sobre o tema na tarde desta terça, a secretária da Cultura, Aline Torres, informou que a solicitação do tombamento foi analisada tecnicamente pelo Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), e concluiu que o projeto arquitetônico não justifica o tombamento, mas a utilização cultural do espaço deve ser preservada, e esta é a orientação para a comissão técnica de análise das áreas de proteção cultural da cidade, de continuar com o processo para garantir a proteção imaterial do lugar.
O casarão, de 1940, foi vendido à iniciativa privada, mas o Ministério Público quer impedir a desocupação e entrou com uma ação na Justiça pedindo que a área seja considerada uma Zona de Proteção Cultural. Isso impediria a desocupação do espaço, afirma o promotor que cuida do caso.
A incorporadora Vila 11 comprou quase metade do quarteirão, nas ruas Augusta e Antônio Carlos, e planeja construir prédios de apartamentos para alugar.
Para o promotor Fernando Bolque, é preciso impedir “o chamado fato consumado”. “A partir do momento que você desocupa o imóvel, já tem o fato consumado. E fica mais fácil para a parte contrária, no caso a construtora, manter uma liminar para dar prosseguimento ao local.”
Ele diz que é uma “corrida contra o tempo”. “Porque o prazo da desocupação é o dia 28. Tenho acompanhado e tem até filme de despedida no cinema. A gente pede ao juízo para que não ocorra, que a gente tenha tempo maior e estudo no sentido. É um patrimônio histórico que, uma vez degradado, se ele não for tombado, isso se torna irreversível.”
Segundo o arquiteto e urbanista Francisco Luiz Scagliusi, o endereço “reúne as características necessárias para ser preservado. Não só porque funciona o cinema, mas pela história dele, de ser instalado o Instituto Goethe... Até hoje tem curso de cinema aqui. Ele presta um serviço para a cidade e para a sociedade paulistana. Então merece ser preservado".
A TV Globo pediu posicionamento para a Vila Onze, incorporadora que comprou os imóveis, mas, até a última atualização, não obteve resposta.
Ação do MP
O Ministério Público entrou com a ação de tutela antecipada de urgência contra a Prefeitura de São Paulo e a construtora Vila 11.
A ação de tutela antecipada de urgência protocolada na Vara de Fazenda Pública do Foro Central da capital paulista prevê que o munícipio de São Paulo, em nome de seu órgão de preservação histórica, o Conpresp, abra uma análise para enquadrar o cinema em uma Zona Especial de Preservação Cultural (Zepec/APC) para "impedir sua desocupação e a instalação de qualquer empreendimento imobiliário e comercial no local".
A ação elaborada pela 2ª promotora de Justiça do Meio Ambiente, Maria Gabriela Ahualli Steinberg, quer garantir o funcionamento do cinema até a decisão do Conpresp sobre o enquadramento ou não do cinema na Zepec/APC, sob pena de multa de R$ 5 mil por dia e do desfazimento forçado das obras do empreendimento.
Para encerrar as atividades, a curadoria decidiu exibir o filme 'A última Floresta', de Luiz Bolognesi, em duas sessões gratuitas que marcarão o fim definitivo daquele espaço, que desde 1995 era o point cinematográfico mais querido da cena paulistana.
O documentário de Bolognesi conta a história de resistência do povo Yanomami na terra indígena do Norte do País e aborda os constantes conflitos com garimpeiros, grileiros de terras e fazendeiros, para proteger a área deles, demarcas por lei. O filme coleciona uma série de premiações relevantes no Brasil e no mundo. Entre eles, o Prêmio do Público no Festival de Berlim e Melhor Filme no Festival de Seul.
Cinema
Em comunicado distribuído à imprensa, o Espaço Itaú de Cinema lamentou o fim das atividades no imóvel alugado em março de 1995 e lembrou que a chegada do cinema na Rua Augusta ajudou a revitalizar a região através da cultura. Antes, a vida noturna do entorno era caracterizada apenas pela prostituição.
“Adhemar Oliveira inaugurou o Espaço Augusta em outubro de 1993 – na época patrocinado pelo Banco Nacional. O cinema foi o primeiro a apostar na iniciativa de exibir cinematografias independentes do mundo todo, além de promover a formação de público através de cursos e projetos como o Escola no Cinema, Sessão Cinéfila e Clube do Professor. Credita-se ao cinema a revitalização da rua Augusta. O comércio do seu entorno, como lojas, bares e restaurantes, foi estimulado pelo expressivo número de frequentadores do cinema”, disse a empresa.
“O Anexo – salas 4 e 5 - foi aberto em um sobrado bem à frente da sede, em março de 1995. O aconchegante cinema acolheu projetos cinematográficos importantes como o Curta às Seis, que diariamente projetava curtas-metragens brasileiros em sessões gratuitas na sala 4, e cursos do Escola no Cinema destacando a história e o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, os movimentos da cinematografia mundial e filmografias de diretores consagrados. A Mostra Internacional de Cinema exibiu ali inúmeros filmes, realizou debates com cineastas e promoveu o ciclo de depoimentos com personalidades da cultura 'Memórias do Cinema'”, completou.
A empresa afirma, entretanto, que as três salas do Espaço Itaú de Cinema em frente ao anexo, que chegaram antes e também exibem filmes consagrados, “continua vivo do outro lado da rua, assim como as unidades Frei Caneca, Pompeia, Brasília e Rio de Janeiro”.
“Prestes a completar 30 anos, além de seguir em plena operação, o Augusta vai incorporar a programação do Anexo, assim como estuda uma possível ampliação do ambiente do Café Fellini no número 1475”, anunciou a empresa.
Em maio de 2022, quando a incorporadora deu o prazo até fevereiro de 2023 para o Anexo deixar o espaço, o gestor do cinema, Adhemar Oliveira, conversou com a TV Globo e disse que a saída do cinema do imóvel significava uma “perda individual' para ele.
“É uma perda que não é uma perda individual, porque você viu ao longo do tempo, você presenciou, conviveu com ‘n’ artistas e pessoas que conviviam com a arte. O medo que bate não é um local, é que isso pode ser a expressão de outros locais se perderem. Quando você olha o tecido social de uma cidade, todo mundo admira Paris, mas não toma os cuidados que Paris toma para permanecer com seu modo de vida, para fazer do turismo o seu modo de vida”, afirmou Adhemar Oliveira, ano passado.
O cineasta Ugo Giorgetti também falou na época sobre a importância do espaço: “Os cinemas que você pode circular como de nível, não passam de 12 salas, 13 salas. Então, quando você perde duas salas, é uma perda muito grande.”
“Quando você pensa, você pensa no imediato, vai fechar um cinema. Mas não é que vai fechar um cinema, fecha a memória do Goethe, fecha a memória de muitos filmes, e depois tem as memórias pessoais. Quantas pessoas você conheceu lá, que influenciaram a sua vida, que, talvez, transformaram sua vida?”, declarou.
Filmes clássicos
Durante os 28 anos de existência, o Anexo do Espaço Itaú de Cinema exibiu títulos clássicos do cinema mundial, como os filmes “Stromboli” (1950), de Roberto Rossellini, “Morangos Silvestres” (1957), de Ingmar Bergman, "Um Corpo que Cai" (1958), de Alfred Hitchcock, “Hiroshima, Meu Amor” (1959), de Alain Resnais, “Acossado” (1960), de Jean-Luc Godard, “A Doce Vida” (1960), de Federico Fellini, e “Nosferatu - O Vampiro da Noite” (1979), de Werner Herzog.
“Nas quase três décadas de existência, o Anexo teve ainda outro papel fundamental: o de dar continuidade à exibição de filmes que estrearam do outro lado da rua – no número 1475. Em vez de deixarem o circuito, essas produções entravam na programação das salas menores, a 4 (88 lugares) e a 5 (33 lugares), permanecendo, assim, mais semanas em cartaz”, lembraram os curadores do espaço.
Saída de outros comércios
Em maio de 2022, quando a reportagem da TV Globo esteve no local e mostrou que a incorporadora que comprou o imóvel onde está atualmente o cinema também deu o prazo até fevereiro para que outros comércios instalados no imóvel saíssem do local.
Entre eles o restaurante mexicano dirigido pelo empresário Hugo Antares Delgado, que, emocionado, também lamentou o fim de uma era próspera da Rua Augusta, que cada vez mais tem sido tomada por prédios residenciais.
"A gente estava super entusiasmado de ter sobrevivido à pandemia. De repente, chega a notícia de que a gente vai ter que sair desse ponto que a gente gosta tanto e levou quase 8 anos construindo aqui na Augusta", disse o empresário na época.
"Estamos tentando ter garra e entusiasmo pra enfrentar a situação que é mto difícil. Na sexta, fui num show do Caetano e quando ele cantou 'Sampa', quando falou da 'força da grana que ergue e destrói coisas belas'... me pegou bem forte", comentou.
Associação Paulista de Cineastas
Em dezembro do ano passado, a Associação Paulista de Cineastas (APACI) emitiu uma carta assinada por nomes como Beto Brant, Alain Fresnot, Marina Person, entre outros, que condenava o fechamento do espaço.
Na carta, o grupo afirma que o fim do Anexo do Espaço Itaú significava o réquiem de uma cidade “já totalmente descaracterizada pela febre imobiliária turbinada pela volúpia especulativa do capital financeiro”.
“A notícia de que o anexo do Espaço Itaú Augusta - em que estão as salas 4 e 5 e o Café Fellini - será demolido para a construção de um edifício, é mais uma nota do réquiem desta cidade, já totalmente descaracterizada pela febre imobiliária turbinada pela volúpia especulativa do capital financeiro. Um espaço aprazível como o Café Fellini, onde muitos passaram horas lendo um bom livro enquanto esperavam a sessão começar, ou ainda reunidos com amigos debatendo o filme que havíamos assistido, vai virar entulho. Mais um lugar do afeto, do encontro, da cultura, vai desaparecer”, afirmou o documento.
“Pelo menos é o que está ditando o poder do dinheiro. Devemos nos conformar com isso? Claro que não. Quem ainda ama essa cidade, os cinemas de rua, os espaços de sociabilidade, tem que se colocar ao lado daqueles exigem o tombamento deste lugar com toda a história que ele guarda e projeta”, completou a APACI.
Serviço
- Espaço Itaú de Cinema - Rua Augusta Anexo
- Rua Augusta, 1470 - Centro
- Sala 4: 88 lugares (3 cadeirantes + 1 obeso)
- Sala 5: 33 lugares (2 cadeirantes + 1 obeso)
- Bilheteria: todos os dias, das 13h30 às 22h
Fonte: G1