Por Carolina Maria Ruy
A ideia de criar uma obra que desse visibilidade à causa da fome na África, especialmente na Etiópia, foi do músico e ativista Harry Belafonte. Amigo de Martin Luther King, Belafonte, que foi um dos mais destacados ativistas dos EUA (ele faleceu em 2023), propôs para Lionel Richie criar uma versão americana da música-manifesto “Do They Know It’s Christmas Time“, idealizada pelo músico Bob Geldof e lançada em dezembro de 1984.
Do They Know It’s Christmas Time
Mais do que uma música, “Do They Know It’s Christmas Time” nasceu como um ato político para promover conscientização e, sobretudo, a arrecadação de doações para a população carente etíope. Artistas britânicos como David Bowie, a banda Duran Duran, U2, Boy George, George Michael, Sting, entre outros, participaram daquele projeto que até hoje é uma referência para causas humanitárias.
We Are the World
Logo em janeiro de 1985, Lionel Richie contactou o produtor Quincy Jones e o cantor Michael Jackson. Eles se encarregaram desde criar a música até a escolha e o contato com os cantores e cantoras que participariam da gravação. Quando finalmente a música “We Are the World” foi lançada, em março daquele ano, ela “viralizou” e rapidamente alcançou números superlativos. Liderou paradas, foi o compacto mais vendido, etc.
O documentário “The Greatest Night in Pop”, ou, em português, “A Noite que Mudou o Pop”, dirigido por Bao Nguyen, lançado na última segunda-feira (29), mostra toda a tramitação e as dificuldades operacionais para pôr em prática aquele sonho. É admirável poder assistir tantos músicos, que são velhos conhecidos, envolvidos naquele trabalho e descobrindo como se colocar naquele grande coral pop idealizado por Belafonte.
Eles teriam apenas uma oportunidade para gravar, na noite de 28 de janeiro de 1985. E deveriam ir por boa vontade, sem cachê, sem maquiador e sem ego. Muitos chegaram ao A&M Recording Studios de Hollywood, após outras agendas, como Lionel Richie, que acabara de apresentar a premiação do American Music Awards, e Bruce Springsteen, que foi para a gravação um dia depois de encerrar o último show da turnê “Born in the USA,” em Buffalo, do outro lado do país.
Sentimento aflorar na voz
Antes de começarem a gravar, Bob Geldof foi chamado para falar sobre a causa que reunia aqueles músicos. Recém-chegado da África, ele lembrou dos povos que viviam em uma situação de tanta miséria que não tinham “sequer água.” Falou da ocorrência de doenças como meningite, malária e febre tifoide e disse que “em alguns campos, são 15 sacos de farinha para mais de 27 mil pessoas.” “É por isso que estamos aqui,” finalizou.
A intenção, obviamente, era manter o foco daquela seleção estrelada na causa que dava sentido à música e, segundo Geldof, deixar o “sentimento aflorar na voz.”
Com o passar das horas, a exaustão tomava conta. Todo o cansaço, a persistência e, principalmente, a entrega de quem topou participar, imprimiram alma e honestidade à obra. A música surgiu, desta forma, sob grande inspiração.
A composição inusitada, desde a estridência quase infantil de Cindy Lauper, até a voz grave e contida de Huey Lewis, passando pelo peculiar estilo anasalado de Bob Dylan, pela voz brilhante de Michael Jackson e pela suavidade de Paul Simon, transmite diversidade. Uma diversidade que se mistura em uma só voz.
Guerra fria
Em 1985, quando “We Are the World” tomou conta das paradas, estávamos na Guerra Fria, e muitos viram com desconfiança, mesmo que ali tivessem personalidades como Bob Dylan e Paul Simon. Aquele vídeo, com vários artistas, era, antes de tudo, uma expressão dos EUA. Ou dos United States of America, USA, for África. E o mundo vivia a era da desconfiança.
Hoje temos a chance de ver com outros olhos, não é só pela distância do tempo, mas também pela tecnologia que, através de um documentário como “A Noite que Mudou o Pop,” permite ao público se familiarizar com o processo de produção de um projeto como aquele.
“We Are the World” não era, enfim, uma jogada da CIA. E é curioso, nostálgico e inspirador redescobrir o vídeo, principalmente depois de ver o filme.
Apesar do sucesso, “We Are the World” não conseguiu diminuir a fome na África. Mas assumiu um bom papel enquanto arte. O de elevar o pensamento, a consciência e usar suas ferramentas para intervir politicamente.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical