O sétimo episódio do podcast “Justiça em Preto e Branco”, do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas sobre o caso Beto Freitas, o soldador gaúcho negro, bárbaramente assinado por seguranças do Carrefour na loja do Bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre, na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra de 2.020, contém um acerto, omissões e alguns equívocos.

O acerto está em atualizar o fato de que a violência contra pretos e pobres no Brasil não é uma exclusividade do aparelho policial estatal. As empresas de segurança, ao assumirem a responsabilidade pelos espaços semipúblicos (shoppings, supermercados, estacionamentos, portas de acesso a bancos etc) passaram a exercer o papel de coadjuvantes do Estado na manutenção da cultura de violência herdada do escravismo e que mantém o negro como suspeito padrão e alvo do que o geógrafo Milton Santos chamou de “olhar enviesado”.

Nos 42 minutos e seis segundos do episódio, apresentado pelo ator Christian Malheiros e pela criadora de conteúdo, Andreza Delgado, é escancarado o papel da indústria da segurança privada monopolizada por militares da reserva e agentes de segurança, boa parte dos quais oriundos do aparelho de Estado, que agem como parceiros da repressão policial.

As empresas surgidas nos anos de chumbo da ditadura, aumentam, ano após ano, o seu faturamento, consorciadas do Estado – de quem recebem concessão para operar – e parceiras dos grandes conglomerados como Carrefour com quem mantém contratos bilionários. Seu faturamento, em 2020, chegou a R$ 35 bilhões, de acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Com o devido desconto a afirmações laterais como aquela que classifica o assassinato como “um dos crimes mais desumanos dos últimos anos” (por óbvio, só humanos tem a condição de praticar crimes), ou “crime absurdo por um motivo tão banal”, o que seria a prova do “desprezo que esse país tem por corpos negros”, o episódio menciona um soco que teria sido dado pela vítima, e que citado, fora do contexto da violência a que Beto Freitas já estava submetido, parece ser útil muito mais a estratégia de defesa dos seus algozes.

Também é equivocado apresentar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), como parte de diferentes formas de atuar e estratégias distintas dos movimentos negros.

O acordo foi firmado no contexto de duas Ações Civis Públicas com base na Lei 7.347/85, movidas pela Educafro e Centro Santo Dias e Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, com pedidos de indenização por dano moral coletivo, respectivamente, de R$ 100 e R$ 200 milhões; ambas foram protocoladas na mesma semana do crime: a primeira, no primeiro dia útil após a morte; a segunda, dois dias depois desta em  25 de novembro.

Neste caso, além do equívoco há uma omissão: as duas entidades de S. Paulo, responsáveis pela primeira Ação Civil Pública, o fizeram como parte de uma estratégia e do acordo que viria a ser formalizado em 11 de junho de 2021, em que a marca francesa foi excluída de qualquer responsabilidade pela morte anunciando, em contrapartida, o pagamento de R$ 115 milhões. As ações e respectivos inquéritos poderiam seguir seu trâmite normal, até julgamento as ações pelo Poder Judiciário.

O acordo foi uma opção dos seus protagonistas e cumpria o objetivo de reduzir o impacto negativo à marca Carrefour que, segundo a própria empresa, resultou na perda do equivalente a R$ 2,2 bilhões no valor das suas ações na Bolsa de Valores de S. Paulo (Ibovespa) e na Bolsa de Paris.

A fala do Frei David, o principal responsável pela estratégia, de que “as entidades que abrem o processo não podem usar a verba e nós, então, para não deixar a verba ser usada pelo Bolsonaro para matar mais negros e agente conseguiu conversar o Ministério Público de essa verba ir para a mão do MP e nós definimos como seria aplicada essa verba”, não tem correspondência alguma com os fatos: é rigorosamente falaciosa e não se sustenta de pé.

O dinheiro resultante do acordo, em que os seus promotores excluem a responsabilidade do Carrefour, deveria ter tido o destino definido pela Lei conforme estabelece o parágrafo 2º do artigo 13º da Lei da Ação Civil Pública.

Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados.

  • 1º.Enquanto o fundo não for regulamentado, o dinheiro ficará depositado em estabelecimento oficial de crédito, em conta com correção monetária.
  • Havendo acordo ou condenação com fundamento em dano causado por ato de discriminação étnica nos termos do disposto no art. 1º desta Lei, a prestação em dinheiro reverterá diretamente ao fundo de que trata o caput e será utilizada para ações de promoção da igualdade étnica, conforme definição do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, na hipótese de extensão nacional, ou dos Conselhos de Promoção de Igualdade Racial estaduais ou locais, nas hipóteses de danos com extensão regional ou local, respectivamente.

Em pelo menos um momento David confessa: “O caminho da responsabilização é uma aposta antiga da Educafro. Nossa estratégia era sempre essa aí; ao processo, depois vai pro TAC. A gente percebeu que seria mais rápido”. Sim, é verdade.

Tanto que, depois do caso João Alberto, em que se pretendia ganhar R$ 23 milhões em honorários, as entidades pareciam ter descoberto o “caminho das pedras” para outras investidas e entraram com outras ações – no caso Assaí, em Limeira, e no caso da delegada expulsa de uma loja Zara, no Shopping de Fortaleza, só para ficar em dois exemplos.

Em outro trecho do podcast, quando trata do indiciamento das seis pessoas, formalmente réus no processo – incluídos os dois seguranças, um dos quais, à época, membro da Brigada Militar,  a PM gaúcha, e que responderão pelo bárbaro crime junto ao Tribunal do Júri, o narrador traz o depoimento da delegada Roberta Bertoldo, responsável pela investigação.

A delegada invoca o conceito de racismo estrutural como fundamento para embasar a qualificadora do homicídio triplamente qualificado: “Durante a investigação nós pudemos verificar e trazer à tona inúmeras situações, tanto fáticas, quanto jurídicas quanto doutrinárias, na área da sociologia, como o racismo estrutural aquilo que no dizer de Silvio Almeida é a normalidade de ações e discriminação que passa a fazer parte do cotidiano das pessoas…”.

Há uma trágica ironia neste caso: a delegada (foto) menciona Silvio de Almeida, outro personagem do acordo, que viria a ser membro do Comitê da Diversidade, uma espécie de comitê do Carrefour para redução de danos, e que, por último, se tornou oficialmente um dos representantes da empresa na banca que decidirá para onde irão os R$ 68 milhões a serem distribuídos em editais para bolsas para negros na graduação de instituições privadas.

Um outro equívoco é quando trata da nota da Coalizão Negra por Direitos sobre o TAC Carrefour. Na nota, tornada pública em junho de 2021, a articulação de mais de 200 entidades constituída como expressão da unidade do movimento negro brasileiro, primeiro afirma que participou da tratativa de construir um TAC sobre o tema, e que teria se colocado contra qualquer medida que  minasse a responsabilização judicial que deveria ser aplicada ao Carrefour.

“Defendemos que os processos deveriam acontecer sob o compromisso de 3 pilares fundamentais: A – Responsabilização civil e criminal da empresa Carrefour e não acordo de contenção; B – Diálogo com a família e indenização apropriada pelo homicídio praticado na empresa; C – Reparação ao território e à comunidade pela ação racista e violenta da empresa. Nenhum desses três itens foi respeitado no acordo que se concretizou, o que a nosso ver, compromete o resultado de todo processo e corrobora para as violências desencadeadas pelo racismo que tirou a vida de Beto e gera precedentes perversos para tantas outras violências promovidas por empresas e pelo Estado contra as pessoas negras.”, diz a nota.

A posição da Coalizão a nós sempre soou mais arroubo retórico do que uma posição política consequente. Em entrevista a Afropress, um dos seus representantes, Douglas Belchior, da Uneafro-Brasil, chegou a anunciar a expulsão da Educafro da Coalizão, por ter sido a  principal patrocinadora da estratégia que resultou no acordo, o que não aconteceu como pode ser constatado por quem se disponha a entrar no site da Coalizão em que a Educafro segue lá no “Quem somos” na posição de número 78.

 

 

Depois, o radicalismo de Belchior não saiu do pântano das palavras – “não vamos nos misturar com essa lama…”, disse ele, à época, na mesmíssima entrevista que está à disposição de quem quiser e tiver interesse e paciência de ouvir.

A Coalizão adotou a estratégia do silêncio, embora insistentemente convidada a participar das iniciativas para evitar que o acordo se tornasse o que se tornou – um caminho para a mais ordinária cooptação de um movimento social por parte de uma empresa contumaz na prática de racismo e violência contra negros e pobres.

No mais, a lamentar que, embora convidado a dar entrevista sobre o caso na condição de advogado membro do Coletivo Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos, formado pela SouEuafrobrasileira e pelo Coletivo de Advogados pela Democracia de São Paulo (COADE), nenhum de nós tenha sido convidado para integrar uma das mesas que nesta segunda-feira (12/12) tiveram lugar no lançamento da pesquisa “Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1.992-2020)”no Auditório da FGV Direito SP.

Não apenas eu, mas qualquer um dos representantes do Coletivo e das entidades admitidas como Amicus Curiae (Amigo da Corte), no processo em tramitação na 16ª Vara Cível de Porto Alegre – teria muito a dizer. E nada a silenciar.

Em relação a isso, porém, apenas lembrar que cabe a quem convida (ou não convida) definir os critérios para fazê-lo ou não fazê-lo.

A mim não cabe, até por respeito aos participantes e aos promotores do evento, qualquer comentário. Me permito, contudo, uma observação: suspeito que o não convite tenha a ver com uma certa uma visão ainda predominante em segmentos do movimento negro que se pretende hegemônica e que – a vida e a história tem mostrado – não tem apreço ao contraditório.

Dojival Vieira é advogado, membro fundador do Coletivo Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos, constituído pela SoeuAfrobrasileira e pelo Coletivo dc Advogados pela Democracia (COADE), jornalista e editor de Afropress.

 

Fonte: Afropress