Movimentos camponeses e sem-terra defendem que para alcançar segurança alimentar, é preciso fazer reforma agrária

 

 

“Tem um trocado para me ajudar?”. A frase, cada vez mais comum nas calçadas das grandes cidades, é evidência empírica do que pesquisas atestam com números. Com quase 59% da população vivendo com algum tipo de insegurança alimentar, 2023 chega para o Brasil tendo a fome como um dos temas centrais do debate público.

“Para acabar com a fome no país, temos a solução. É a reforma agrária: desapropriação de latifúndio, produção de alimento saudável e fortalecimento da agricultura familiar”, afirma Alexandre Conceição, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

Michela Calaça, liderança do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), ressalta que o enfrentamento da fome precisa ser considerado em sua complexidade. “Às vezes parece que é só uma questão de falta de renda. Não é apenas isso. Está ligada à produção de alimentos, à construção da soberania alimentar e à defesa do território. Esse é o principal desafio do nosso momento”, avalia.  

Na opinião de Alexandre, o país precisa mudar sua matriz tecnológica de produção de alimentos, deixando de priorizar a “produção envenenada de commodities do agronegócio” para dar espaço para a agroecologia.   

De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar da Rede Penssan, a falta de comida no prato está ainda mais acentuada nas áreas rurais. Em 60% dos domicílios no campo, a insegurança alimentar é uma realidade. Em uma ironia perversa, a situação afeta mesmo aqueles que vivem do cultivo de alimentos. A fome atinge 21,8% dos lares de agricultores familiares.  

Para o MST e o MMC, movimentos que se engajaram na campanha e nas propostas de transição do novo governo petista, a reversão desse cenário passa pela via institucional. “Enquanto movimentos do campo, da floresta e das águas, temos que construir junto com o novo governo uma proposta de soberania alimentar que vá para além do acesso ao alimento”, opina Calaça.  

 

O novo governo 

Nos primeiros dias deste terceiro mandato presidencial de Lula (PT), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi reativado por meio de Medida Provisória. O órgão, composto por dois terços de representantes da sociedade civil e um terço de representantes do governo, tem o objetivo de assessorar a presidência sobre o tema. 

Outra novidade é a recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), desvinculado do Ministério da Agricultura. Este último está sob o comando do senador licenciado Carlos Fávaro (PSD), que já presidiu a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso (Aprosoja).  

O ministro da Agricultura foi relator do texto final do PL 510/2021, que segue tramitando no Congresso Nacional e é apelidado por seus críticos como “PL da Grilagem”. Sojicultor, Fávaro chegou a postar em seu Twitter que não mediria esforços para a aprovação do PL, que seria uma “carta de alforria” para os ruralistas.

Já o MDA terá como ministro Paulo Teixeira (PT), que em outubro havia sido eleito para o seu quinto mandato como deputado federal. Em solenidade nesta terça (3), Teixeira afirmou que sua gestão trabalhará “com porta aberta” para os movimentos sociais, “acolhendo sugestões e críticas, naquela ‘amizade incômoda’. Venham para cima”.  

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) ficará sob a alçada de sua pasta e não do Ministério da Agricultura, pasta a que estava vinculada até o último governo.

 

Expectativas 

“Nós, os movimentos rurais, estamos na expectativa de que a gente possa ter um Executivo fortalecido com a recriação do MDA, que o Incra volte a ser uma instituição voltada à desapropriação de terra e que a Conab seja fortalecida com orçamento”, avalia Conceição. "Quando o Estado compra alimentos para os estoques reguladores da Conab, ele ajuda a combater a inflação dos alimentos”, complementa o dirigente do MST. 

Na visão de Michela Calaça, “é possível e necessário integrar, defender e, ao mesmo tempo, pressionar o governo. É claro que isso não é uma postura individual, mas coletiva. Enquanto organizações sociais, enquanto povo organizado, essa é a tarefa”, diz. 

“O nosso objetivo, como MST, segue sendo o mesmo. Lutar pela terra, pela reforma agrária e pela transformação social. Para essa luta, a ocupação de terra sempre foi e será um elemento central”, salienta Alexandre. “Mas não significa que ao fazer isso, você também não possa fazer disputas institucionais”, aponta. 

“Vamos manter nossa autonomia frente ao governo”, destaca o dirigente do MST, “mas ao mesmo tempo estar junto e cobrar para que, com a reforma agrária, o governo possa de fato cumprir a missão de matar a fome do país”.

 

Fonte: Brasil de Fato