Dentro de uma sala de um estabelecimento comercial, um adolescente, negro, nu, é mantido em pé, durante 40 minutos, recebendo chibatadas de um artefato feito com fios elétricos trançados. Depois de amordaçar e amarrar o menor, dois seguranças do supermercado Ricoy, na Vila Joaniza, sul da capital de São Paulo, chicoteiam o garoto e gritam, como os congêneres da ditadura militar, depois do golpe de estado de 1964: “Vai tomar mais uma. Nós vamos ter que te matar. Vai voltar. Você é corajoso. Caso falar algo para alguém vou te matar”. O adolescente teria sido flagrado furtando barras de chocolate.
Tudo foi gravado com celular e vazado para pessoas da região. O delegado do 80º Distrito acredita “que o intuito desses dois criminosos seria impingir medo na comunidade que fica nas proximidades” – quer dizer, utilizar o vídeo para aterrorizar a população. E conclui: “Não se justifica a barbaridade que foi cometida”.
A barbaridade, no caso, é crime de tortura, pela lei 9455 de 1997. Louve -se também a juíza Tatiana Ormeleze, que determinou a prisão temporária dos dois seguranças e autorizou buscas e apreensões contra os investigados pelo crime de tortura.
A empresa contratante dos seguranças logo divulgou uma nota declarando que “repugna essa atitude (sic) e foi com indignação que tomou conhecimento dos fatos por intermédio da reportagem” e “que não coaduna com nenhum tipo de ilegalidade”, colocando-se à disposição para colaborar com as autoridades. Os agressores teriam sido afastados de suas funções. O advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe), está acompanhando a investigação.
A Comissão Arns tem se dedicado ao tema da segurança privada nas empresas desde o caso do supermercado Extra, em dezembro de 2018. O trololó é sempre o mesmo: a empresa fica perplexa com um crime cometido pelos seguranças, afasta os funcionários e emite uma nota burocrática, como fez o Ricoy. Depois, na Justiça, a responsabilidade da empresa, ou da empresa de segurança terceirizada, desaparece.
Precisamos entender esse contexto. Nos supermercados e nos shopping centers, prevalece um apartheid não escrito contra as crianças negras e pobres, implementado pelos funcionários – sejam os seguranças de shoppings com ternos elegantes e fones de ouvido, ou os meganhas do Ricoy. Crianças e adolescentes negros são vigiados por eles desde o momento em que põem os pés naqueles espaços, especialmente nos bairros “nobres”, isto é, nos redutos de brancos.
Não somos patetas. Ao que tudo indica, o chicote estava pronto, não foi entrelaçado na hora. Reconheço até que não houvesse instruções para torturar, mas a fúria com que agiu a dupla de seguranças contra o adolescente negro seria inimaginável se a gerência do estabelecimento não desse carta branca para deter e castigar clientes – especialmente os negros – pegos furtando. Além disso, como acreditar que uma sessão de tortura daquela brutalidade transcorreu, durante tanto tempo, sem que ninguém da administração visse ou ouvisse?
A intenção não é satanizar supermercados e shopping centers. O que se almeja é evitar que crimes como o que aconteceu no Ricoy continuem a se repetir. Para tanto, é indispensável as empresas estarem disponíveis a travar um diálogo franco, com a Comissão Arns e com outras organizações de direitos humanos, de modo a e estabelecer regras claras de condutas eficazes e éticas de segurança privada, que não impliquem violação de direitos ou práticas de abusos e crimes.
Fonte: Geledés - Instituto da Mulher Negra - Por Paulo Sérgio Pinheiro, da Comissão ARNS