Como a maternidade pode impactar a vida das mulheres no mercado de trabalho

“Não tem como trabalhar e cuidar das duas”, desabafa a cabeleireira Adenilda Ramos da Silva, de 37 anos. É apenas fora do mercado de trabalho que ela consegue conciliar os cuidados das filhas Jennifer e Lorena.

Há pelo menos 3 anos ela tenta uma vaga em uma escola para a mais velha, de 21 anos, que tem paralisia cerebral — e há quase 6 meses espera uma vaga em creche para a mais nova, de 2 anos. 

Por causa do tempo que dedica às filhas — e sem poder contar com o ensino público —, Adenilda deixou a profissão de lado e as despesas de casa recaem todas sobre o marido, que trabalha como zelador. “Hoje faço doces e bolos para ajudar a pagar as contas. Mas só quando tem encomenda, o que é bem raro”, conta. 

Adenilda está entre as milhares de brasileiras que vivenciam o impacto da maternidade no mercado de trabalho, em um cenário em que a divisão dos cuidados com os filhos ― seja com familiares ou com o Estado ― ainda é um problema. 

A pouca presença dos pais nesse papel e a forma como os cuidados domésticos ainda são divididos na maioria dos lares brasileiros são algumas das causas que levam as mulheres a ainda pagar um alto custo pela maternidade. Esse é o diagnóstico de Adriane Reis, procuradora regional do Trabalho de São Paulo (MPT-SP).

“A falta de mulheres no mercado de trabalho em geral não está restrita só à maternidade. Ela entra como mais um elemento do problema, desse conjunto de preconceitos e estereótipos que a gente observa”, afirma Reis, que destaca a diferença salarial entre homens e mulheres. Elas ocupam menos da metade dos postos de diretores e gerentes no mercado de trabalho e ganham quase 30% menos que eles, segundo dados mais recentes do IBGE.

Uma pesquisa da consultoria IDados com base em informações do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2018, mostra que o salário médio de uma mulher sem filhos é de R$ 2.115,39 no Brasil. Este valor cai em cerca de 1/4, para R$ 1.560,50, quando ela tem filhos.

Para os homens, é menor a diferença, quando observada a relação entre remuneração e paternidade. Enquanto pais ganham, em média, R$ 2.003,28, o brasileiro sem filhos recebe R$ 2.228,77 (11% a mais).

“Essa situação diz respeito, principalmente, a uma compreensão patriarcal da sociedade brasileira que coloca os homens como ‘mais capacitados’ para o desempenho de uma função fora de casa, fora do ambiente doméstico. Assim, as mulheres ficam vinculadas à vida privada, aos cuidados dentro de casa”, aponta a procuradora. “Enquanto mães, elas desempenham um trabalho que é invisível, não remunerado, mas que atende a um interesse público.”

Com filhos, mas sem emprego

Um estudo publicado pelo IBGE em 2017 mostra que a geração de filhos tem impacto diferente na empregabilidade de homens e mulheres no Brasil.

Segundo a pesquisa “Aspectos dos cuidados das crianças com menos de 4 anos de idade”, no grupo em que as mulheres foram identificadas como as principais responsáveis pelas crianças nessa faixa etária, apenas 42% estavam empregadas. Quando são os homens os principais responsáveis, 89% deles continuam empregados.

O estudo “Licença-maternidade e suas consequências no mercado de trabalho do Brasil”, da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV), traz resultado semelhante. Segundo a pesquisa, entre brasileiros de 25 e 44 anos, a taxa de emprego é de 41% para mães de crianças de até 1 ano, e de 92% quando são pais na mesma situação.

O mesmo estudo ainda aponta que, embora a licença-maternidade garanta estabilidade no emprego por um certo período de tempo, não é o suficiente para manter a empregabilidade feminina a médio prazo. Segundo o levantamento, do total de mães pesquisadas entre 2009 e 2012, 48% saíram de seus empregos nos primeiros 12 meses após ter seus filhos.

Foi o caso da assistente administrativa Gisleine Moreira, de 30 anos, demitida no início deste ano, justamente por precisar se dedicar aos cuidados com o filho, Mateus, de 8 meses, ao voltar da licença-maternidade. 

“A justificativa foi esta: que eu estava faltando muito. E eu não tinha com quem deixar o meu filho, então essa era minha solução mesmo”, conta Gisleine, que mora na divisa entre São Paulo e Diadema. “Preciso que ele esteja na creche para que eu possa trabalhar. Não tem como.”

Separada do marido, hoje ela vive com o valor do seguro-desemprego. “Eu preciso trabalhar. Como vai ser depois que o seguro acabar? Quando preciso, eu deixo ele com uma vizinha e pago ela por isso, mas não é sempre que ela pode. Até quando não vou poder trabalhar?”, questiona.

De acordo com a legislação atual, a licença começa 28 dias antes do parto e vai até 92 dias depois — mas pode haver um acordo quando a grávida trabalha até perto da data do nascimento do bebê. Empresas que aderiram ao Programa Empresa Cidadã, criado pelo governo federal em 2006, estendem o benefício para 6 meses.

Licença-maternidade

Poucas empresas adotaram a ampliação da licença-maternidade para 6 meses, de acordo com a pesquisadora Marilane Teixeira, da Unicamp. Dados de 2016 mostram que em torno de 17% das organizações que se enquadraram nas exigências tinham aderido até então, segundo informações da Secretaria de Política para Mulheres, com base em dados da Receita Federal. Em troca da extensão da licença, a empresa pode deduzir integralmente no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica a remuneração da empregada nos 60 dias de prorrogação do benefício.

A licença-maternidade é apontada pela historiadora Glaucia Fraccaro, professora da PUC de Campinas, como parte das conquistas da legislação trabalhista brasileira que possibilitou uma visão de justiça social que envolvesse as mulheres e “considerasse que a reprodução da vida é parte da produção de riquezas”.

Na avaliação da especialista, essa perspectiva fica clara após a aprovação da Proposta de Emenda Constituição (PEC) das domésticas, em 2013, como forma de reconhecimento do trabalho doméstico.

“Começa a se entender que, para valorizar esse trabalho, é preciso entender que ele é parte da riqueza ou da forma como a gente pensa o salário. Se a gente quer considerar a experiência das mulheres, não dá para considerar o salário só como um pagamento pelo trabalho exercido”, disse Fraccaro ao HuffPost. ”É uma concepção de sociedade que você coloca no holerite das pessoas todo mês o que é justo.” 

 

Divisão do trabalho doméstico e sobrecarga feminina

Entre 2005 e 2015, o número de famílias compostas por mães solo subiu de 10,5 milhões para 11,6 milhões, de acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) 2017. Para Fraccaro, no entanto, o crescimento do número de lares chefiados por mulheres revela também uma maior presença feminina em situações de sobrecarga. 

“Esse critério de empoderamento esconde um pouco uma grande massa de trabalho que é quase exclusiva das mulheres”, diz. O impacto é visto na renda: do total de famílias desse tipo, 57% está abaixo da linha da pobreza, de US$ 5,5 (cerca de R$ 22) por dia, segundo a pesquisa.

A divisão do trabalho doméstico ainda é desigual entre gêneros. Em 2018, 93% das brasileiras disseram realizar tarefas do lar ou de cuidados com pessoas no domicílio, segundo a Pnad 2018. Entre os homens, o indicador era de 80,4%, e chegava a 73,1% no Nordeste. Quanto ao número de horas gastas nessas funções, a média delas é de 21,3 horas semanais — quase o dobro das 10,9 horas para eles.

O cuidado com familiares está diretamente relacionado à dificuldade de acesso à creche. Em 2016, 3,4 milhões de brasileiros entre 0 e 3 anos tinham esse direito garantido, o equivalente a 32% dessa faixa etária. Especialistas avaliam que a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de atingir 50% da cobertura em 2024 não deve ser cumprida devido a cortes de gastos em programas sociais.

Além do ritmo lento de aumento da rede pública, a iniciativa privada também falha. Marilane Teixeira, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp, afirma que muitas empresas não cumprem a previsão de pagar auxílio-creche ou de oferecer um espaço físico para que as mães deixem o filho de 0 a 6 meses no horário do expediente. A obrigação é para organizações com mais de 30 funcionárias com mais de 16 anos.

“Objetivamente a maioria das mulheres está à margem do acesso à creche pública ou do auxílio oferecido pelas empresas e auxílio-maternidade”, afirma a professora. 

Na avaliação de especialistas, a redução de serviços públicos ligados a cuidados, como creches, escolas e sistema de saúde transfere o ônus dessas atividades para as mulheres.

“Se o projeto político é diminuir os equipamentos públicos — o que inclui creches, hospitais, escolas, saúde pública —, há por trás dele, nitidamente, a ideia de que as mulheres vão desempenhar todas essas tarefas que o Estado vai estar desobrigado”, afirma Fraccaro.

Para a historiadora, não só o poder público, mas a sociedade como um todo deveria compreender que “produzir a vida é fundamental para produzir riqueza, para que o Estado funcione, para que o trabalho aconteça, para que a sociedade se desenvolva”, e que isso é feito por meio da valorização dos cuidados domésticos e com grupos que precisam de ajuda, como crianças e idosos.

A pesquisadora alerta ainda para possíveis impactos dessas decisões na redução da autonomia financeira feminina, que pode agravar a situação da violência doméstica. ”[Com a redução dos serviços públicos], essas 24 horas semanais de trabalho doméstico não remunerado vão explodir de uma forma que nós vamos ter nossa autonomia muito reduzida a ponto de não conseguir decidir sobre o nosso próprio destino. Isso soa como um capricho, mas, para os homens, é o sinônimo de humanidade. Ser humano é poder decidir o próprio destino.”

 

Os impactos da reforma trabalhista e previdenciária para as mães

A diferença dos rendimentos mensais entre homens e mulheres é também refletida na aposentadoria. O valor médio do benefício pago pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) para mães é de R$ 1.229,79, enquanto aposentadas sem filhos ganham R$ 1.602,20, segundo a pesquisa “Diferenças na legislação à aposentadoria entre homens e mulheres: breve histórico”, publicada pelo Ipea com base em dados de 2015 da Previdência Social.

Elas também são maioria entre as que se aposentam por idade, segundo a pesquisa. Representam 64% desse grupo, com benefícios em torno de um salário mínimo. Na modalidade de aposentadoria por tempo de contribuição, em que os rendimentos são maiores, a presença feminina cai para 30%.

Essa lacuna pode aumentar ainda mais com a reforma da Previdência, na avaliação de Marilane Teixeira, da Unicamp. De acordo com a professora, as brasileiras que chegam aos 60 anos contribuíram, em média, por 18 anos com o INSS. “Quando se amplia para 40 anos o tempo de contribuição, está se condenando a absoluta maioria das mulheres a nunca se aposentar ou aposentar com valor mínimo”, afirma.

Na avaliação da especialista, uma série de fatores diminui a capacidade contributiva das mulheres para a Previdência. “Elas passam boa parte da vida laboral na intermitência do desemprego, do trabalho precário, por conta própria, informal. São elas que ficam mais tempo desempregadas, demoram mais para retornar ao trabalho, eventualmente têm que se ausentar por conta de licença-maternidade”, pontua Teixeira.

“Muitas vezes quando voltam ao trabalho, são demitidas ou pedem demissão porque não têm com quem deixar os filhos. Ficam 2, 3 anos fora do mercado de trabalho. Voltam para o mercado informal. Essa é a trajetória de trabalho das mulheres”, completa.

Ainda sobre o sistema de Seguridade Social, a pesquisadora lembra que as mulheres são 57% dos beneficiários do BPC (Benefício de Prestação Continuada), amparo no valor de um salário mínimo pago a pessoas com mais de 65 anos.

Porém, se a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garantiu a conquista de direitos para as mulheres, uma série de mudanças recentes na regulação do mercado de trabalho pode, por sua vez, ter um impacto maior para esse grupo.

Em vigor desde novembro de 2017, a reforma trabalhista revogou a proibição de gestantes e lactantes trabalharem em locais insalubres e mudou as regras de pausa para amamentação. Lactantes têm direito a duas pausas de 30 minutos até os 6 meses da criança. Com a reforma, o horário desse intervalo passou a ser negociado com o empregador — o que, na avaliação de Fraccaro, coloca “os interesses da empresa acima das recomendações da Organização Mundial da Saúde”.

Em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu essa permissão. A decisão tem caráter provisório e o mérito ainda será analisado pela Corte.

Outro impacto perceptível da reforma foi sobre a regulação de modalidades consideradas precarizadas de emprego, como o trabalho parcial (que resulta em remuneração total menor) e o trabalho intermitente (contratação por períodos parciais, em que o empregador pode convocar o empregado para determinado turno com até 3 dias de antecedência). Como as mulheres ainda são as principais responsáveis pelos cuidados dos filhos, esse tipo de acordo tem um impacto maior para elas na organização da rotina.

Dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), mostram que as mulheres representavam 64% dos contratos em tempo parcial nos 3 primeiros meses de 2019. Nesse grupo, a remuneração média foi de R$ 904,61, inferior ao salário mínimo.

“Com salários inferiores a um mínimo, as pessoas precisam completar a contribuição previdenciária para poder incluir o período no tempo de contribuição”, destaca a professora da Unicamp.

“Essa reforma vem de um jeito muito prejudicial às mulheres”, avalia a procuradora do trabalho Adriane Reis. “Com essa ausência de obrigação e de adaptação das regras à responsabilidade familiar, o que a gente observa hoje é uma migração de muitas mulheres para a informalidade”, aponta.

“Quando ela [reforma] não tem esse olhar, com esse viés de interesse público, de cuidado das futuras gerações, ela propicia que a gente mantenha e, em alguns casos, até aprofunde a situação de desigualdade das mulheres dentro do ambiente de trabalho”, conclui Reis.

Fonte: https://www.huffpostbrasil.com