As primeiras semanas da era Bolsonaro vêm assumindo, com mais nitidez, duas características: 1) a confusão e a explicitação de divergências internas, analisadas neste espaço no artigo da semana passada e, 2) a manutenção da ofensiva ideológica contra as esquerdas e o PT. A ofensiva ideológica já se fez presente na própria posse, notadamente através de três manifestações: a afirmação de que ele representaria o fim do socialismo no Brasil; a incitação à defesa da bandeira brasileira, com derramamento de sangue se fosse o caso, para impedir que ela se tornasse vermelha e a indicação de que o atentado que ele sofreu teria sido articulado por forças antipatrióticas. Deus, pátria, família foram e continuam sendo usados à la larga contra teses esposadas pelas esquerdas e contra políticas públicas voltadas para a garantia de direitos civis.
Toda ideologia se vincula a valores e os valores visam coesionar adeptos e orientar condutas. A nova direita internacional, ao querer firmar-se como uma alternativa à esquerda e ao centro liberal, estimula de forma enfática um combate em torno de valores. O campo é fértil, pois as esquerdas e o centro liberal esqueceram os valores e propõem políticas públicas apenas no seu sentido técnico, como se fossem receitas ou bulas a serem aplicadas por governantes e gestores. É certo que uma base política assentada prioritariamente em valores pode ruir facilmente se os resultados materiais não aparecerem e este é um risco para Bolsonaro. Mas também a pregação meramente técnica de políticas públicas tem pouca força de coesão.
Com o enfraquecimento relativo dos vínculos societários, comunitários, trabalhistas e até nacionais, as religiões se tornaram frentes de coesão e de indução de condutas e a nova direita internacional segue-lhes os passos e elabora estratégias próprias para combinar religião e política num suposto resgate daquilo que seriam os fundamentos da Civilização Ocidental. O bolsonarismo navega nessas ondas. Alimentar a chama da fé nesses valores, através de radical ética das convicções, é alimentar o ânimo de uma unidade numa nova crença política e o ânimo do combate ao inimigo, identificado nas esquerdas, no PT e nos movimentos sociais.
Nessas primeiras semanas de mandato, o bolsonarismo continua com seu fogo de barragem ideológico: PT, PSol, MST, MTST e outros movimentos são quase que diariamente atacados, quando não pelo próprio Bolsonaro, por alguns de seus ponta de lança. A tentativa de criminalizar o MST e o MTST é evidente. Hoje, os dois movimentos são os únicos que conseguiriam propor uma oposição mobilizada, dada a paralisia e a confusão que reina nos partidos de esquerda, particularmente no PT.
Mesmo assim, o PT e o PSol não são poupados. O PT é associado ao regime de Maduro, classificado como uma ditadura, e a Cesare Battisti, designado como terrorista e assassino. O partido já pagou e continua pagando o preço pelo erro de não ter extraditado Battisti. Invariavelmente, o PT é associado à mais vasta corrupção que já teria ocorrido no Brasil e com Lula preso porque foi “o maior ladrão”. É preciso prestar atenção ao esforço que os bolsonaristas vêm fazendo, visando apropriar para si a defesa da democracia e do Estado de Direito, imputando às esquerdas a defesa das ditaduras, do terrorismo e do crime organizado.
É evidente o estrago que esses ataques proporcionam junto a parcelas importantes da opinião pública. A tese de petistas, de que tudo isto já está precificado e que não surte mais efeitos, é falsa. Em primeiro lugar porque, se os eleitores de Bolsonaro não são majoritariamente ideológicos de direita, o bolsonariso visa ampliar sua base ideológica pelo embate. Em segundo lugar, porque esses ataques deixam o PT e outras forças de esquerda na defensiva e sem capacidade de reação. A maior parte dos ataques desferidos contra o PT e as esquerdas nesses primeiros dias de governo não foram adequadamente respondidos. As oposições parecem estar de férias.
Alguns petistas, com os quais tenho tido interlocução, têm uma avaliação errada do processo político, a mesma análise errada que tinham durante o processo de impeachment de Dilma. Naquela época, numa manifestação na Avenida Paulista, um membro do Diretório Nacional do partido fez a seguinte avaliação: o governo Dilma tinha fracassado. Seria melhor que fosse aprovado o impeachment, pois o governo Temer fracassaria e o PT voltaria ao poder. O governo Temer, de fato, fracassou, mas quem assumiu o poder foi o Bolsonaro. Agora se acredita que o governo Bolsonaro fracassará, principalmente na economia e no social, e que isto abre as portas para o retorno do PT ao poder. Em primeiro lugar, não é certo que Bolsonaro fracassará. Em segundo lugar, se ele fracassar, poderá vir Dória ou Moro, ou até mesmo algum general.
O fato é que o PT e as esquerdas não têm estratégia. Após a vitória de Bolsonaro PT e PSol se limitaram a aprovar resoluções colocando no centro da luta a defesa da democracia, essas coisas todas. Numa resolução capenga, o PT tentou explicar os motivos da derrota, mas não conseguiu.
Além da ofensiva ideológica, o governo Bolsonaro adotou algumas medidas de ataques às políticas de promoção de direitos civis, da diversidade, dos indígenas e entregou a reforma agrária nas mãos dos ruralistas. O governo extinguiu o Ministério do Trabalho sem que as centrais sindicais e os sindicatos se movessem de suas cadeiras.
O bolsonarismo acerta a mão quando define o PT e as esquerdas como inimigos a serem combatidos. Mesmo derrotado, o PT sobrou como a maior força partidária organizada, que poderá fazer frente ao governo. O PSol, por seu turno, mesmo pequeno, tem as bancadas mais aguerridas e combativas da política brasileira e isto pode se tornar um grande incômodo ao governo. Além de buscar estabelecer uma coesão em seu próprio campo através do combate ideológico, os bolsonaristas parecem saber que quanto mais fraco o agrupamento inimigo, mais facilidade de manutenção e de exercício do poder eles terão.
Sem estratégia e sem capacidade de reação, as esquerdas são jogadas para posições defensivas. Parecem ter perdido até mesmo a noção do que é um partido político. Um partido é um agrupamento de combate. Para tanto, precisa estar em permanente prontidão estratégica, intervindo no dia a dia, na hora a hora da luta política. Quando se está sob ataque, como é o caso, é preciso ter táticas de resistência e de pronta resposta. Mas é preciso sair das posições defensivas. Para isto é necessário ter uma estratégia. Uma estratégia de reorganização dos exércitos (forças) próprios, de seu fortalecimento, de sua capacitação para os embates, de ataques ao inimigo e de objetivos a serem alcançados. Isto parece que se perdeu. Os generais das esquerdas parecem estar sem a virtù necessária para elevar o moral de combate de seus exércitos. A renovação dos comandos partidários é algo urgente, mas, aparentemente, difícil de fazer, pois os esquemas de poder interno dos partidos estão ossificados.
Além de não ter estratégia, de ter as tropas dispersas e sem ânimo para o combate, as esquerdas carecem de grandes generais, competentes, corajosos e combativos, com sua liderança enraizada, reconhecida e reputada na sociedade. O grande general das esquerdas está preso e, como já disse em outro artigo refutado por dirigentes do PT, cada vez mais esquecido na cadeia.
Assim, é preciso que as esquerdas projetem novos lideres com urgência. Guilherme Boulos é uma grande esperança. Haddad, que emergiu das eleições com a maior projeção no campo progressista, precisa encontrar um caminho para se firmar como líder popular, mesmo com as amarras que lhe impõe o PT. Para vencer batalhas, combates, não bastam estratégias, táticas, palavras de ordem. São necessários também líderes virtuosos, competentes e que gozem de reputação. Precisam ser capazes de disseminar admiração e convencimento junto aos aliados e temor e respeito junto aos inimigos. Dispor de forças próprias, de coragem e de capacidade de comando são os meios materiais e morais imprescindíveis para líderes que conduzam a vitórias.
Fonte: Brasil 247