Opinião é da historiadora Glaucia Fraccaro, autora do livro “Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937)”

 

Em 1917, as mulheres brasileiras deram os primeiros sinais de um movimento que buscava garantir, para elas, direitos trabalhistas que eram reservados apenas aos homens. Cem anos depois, igualdade salarial entre homens e mulheres que desempenham a mesma função ou questões relativas à maternidade ainda estão na pauta de discussão.

 

Autora do livro “Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937)”, recém-lançado pela Editora FGV, a pesquisadora Glaucia Fraccaro  avalia que além da dificuldade histórica encontrada pelas mulheres para conseguir direitos,a reforma trabalhista terá um efeito direto, e principalmente, sobre as trabalhadoras.

“A reforma trabalhista revoga explicitamente aspectos importantes da CLT: a proibição do trabalho de gestantes em local insalubre, a regulação sobre a pausa para amamentação e a igualdade salarial. A pausa para amamentação, por exemplo, passa a ser de livre negociação com o empregador, mas coloca, no regramento, os interesses da empresa acima das recomendações da saúde”, afirmou, em entrevista ao JOTA.

 

Na avaliação da pesquisadora sobre a reforma trabalhista, as alterações no regramento jurídico “ferem, inclusive, numerosos acordos internacionais sem aviso prévio, na medida em que convenções relativas à igualdade salarial e ao trabalho doméstico foram travadas entre o Brasil e a Organização Internacional do Trabalho ao longo de todo o século XX”.

 

A pesquisa que deu origem ao livro de Fraccaro venceu a edição de 2017 do prêmio Mundos do Trabalho em Perspectiva Multidisciplinar, concedido pela Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Professora da PUC de Campinas, a historiadora explica que um dos grandes obstáculos na luta das mulheres por mais direitos trabalhistas é a falta de compreensão global sobre o dia a dia das mulheres.

 

“Essa experiência envolve a dimensão dos cuidados, das tarefas domésticas, da maternidade que precisam ser valorizadas, não só do ponto de vista de como se produz a riqueza, mas como uma forma de transformar a sociedade, de obter justiça social”, aponta.

 

Para ela, para entender como a sociedade se organiza hoje é preciso “verificar como foi determinada, nas leis, e nos conflitos que delas derivam, a capacidade das mulheres em garantir o próprio sustento, a capacidade de tomar decisões sobre a própria vida”.

 

Leia abaixo a íntegra da entrevista com a historiadora Glaucia Fraccaro:

 

Como a construção dos direitos das mulheres passa pelas leis trabalhistas?

Os direitos das mulheres estão relacionados com a regulação do trabalho na medida em que temos que compreender como se construiu, historicamente, a autonomia delas. Em outras palavras, para entender como a sociedade se organiza hoje é preciso verificar como foi determinada, nas leis, e nos conflitos que delas derivam, a capacidade das mulheres em garantir o próprio sustento, a capacidade de tomar decisões sobre a própria vida. Dessa forma, como se obtém o sustento é uma das formas de tratar sobre autonomia, ou ainda, sobre a falta dela, na medida em que toda a compreensão sobre o mundo do trabalho ainda se baseia na noção de que o salário pago ao homem deve ser suficiente para manter toda a família, supondo, portanto, que as mulheres devem se manter dependentes economicamente. Há que se considerar que as mulheres participam há mais de um século do mercado de trabalho sem que as políticas reprodutivas tenham sido alteradas, principalmente, na América Latina.

 

Em seu livro, você busca as origens, aqui no Brasil, do movimento de mulheres em busca de direitos trabalhistas, ainda em 1917. Existe algum paralelo que podemos traçar com o momento atual?

Sem dúvidas, principalmente ao compreendermos que o feminismo é um campo político e, como tal, é permeado por disputas e diferentes projetos de emancipação. A história mais conhecida sobre o movimento feminista brasileiro narrava que as mulheres das classes altas, por terem proximidade com o poder público, efetuaram mudanças fundamentais, como o direito ao voto, à revelia das mulheres das classes populares. Essas mulheres se organizavam na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino [FBPF] que era uma entidade com capilaridade nacional, e assim reconhecida por uma grande parte das brasileiras. É bem verdade que a atuação dessa federação é impressionante, mas não o foi sem disputas. Desde sempre, as mulheres da FBPF estiveram sujeitas a pressões políticas de diversos campos e alteraram suas pautas e formas de luta à luz dessas pressões, principalmente, por conta das trabalhadoras e das militantes do Partido Comunista.

 

Eleger a luta das mulheres das classes altas como um marco da história do feminismo brasileiro é até hoje uma perspectiva que influencia a forma de compreender a atuação política das mulheres. Por vezes, a prerrogativa da definição do termo “feminismo” é daquelas que pensam a sociedade. No entanto, há aquelas que lutam para mudar a sociedade todos os dias e é tão possível, quanto necessário, contar a história do movimento a partir da experiência de mulheres comuns.

 

O Decreto do Trabalho das Mulheres, de 1932, estipulou a licença-maternidade, proibiu a desigualdade salarial e regulou a jornada do trabalho feminino. Entretanto, sabemos que até hoje as mulheres recebem salários menores que os homens para as mesmas funções. O que ficou no meio do caminho nesses 86 anos?

O que fica no caminho é a dificuldade de se compreender a experiência das mulheres como um tema central na luta por direitos.

 

Essa experiência envolve a dimensão dos cuidados, das tarefas domésticas, da maternidade que precisam ser valorizadas, não só do ponto de vista de como se produz a riqueza, mas como uma forma de transformar a sociedade, de obter justiça social.

 

Ao longo dos últimos 100 anos, quais foram, na sua opinião, as maiores conquistas das mulheres no mundo do trabalho no Brasil?

A conquista mais importante do século XX é a mudança constitucional que garante direitos às trabalhadoras domésticas, a Emenda Constitucional 72 [a chamada PEC das Domésticas, aprovada em 2012]. Desde o final do século XIX, o emprego doméstico é o segundo setor que mais emprega mulheres nas cidades brasileiras.

 

Cidadania pode ser definida pelo acesso aos direitos sociais. As mulheres empregadas no serviço doméstico haviam ficado de fora da CLT e não foi por mero acaso: Getúlio Vargas pretendia legislar para a classe trabalhadora que ele gostaria de ter, como um projeto político, reduzindo o trabalho rural, por exemplo. De todo modo, transformar as trabalhadoras em sujeitas de direitos iguais foi uma forma de valorizar o trabalho doméstico, interferindo na vida de milhões de mulheres, principalmente mulheres negras.

 

A reforma trabalhista – Lei 13.467/2017 – promoveu alterações sobre normas de proteção ao trabalho das mulheres, como a regra do intervalo especial concedido para amamentação. Como você avalia as implicações da Reforma na atividade das mulheres?

A retirada de direitos, de uma forma geral, afeta, principalmente, as mulheres. Ao reduzir equipamentos públicos, como hospitais, creches, escolas e a proteção ao exercício da à maternidade, o Estado prevê que todo esse trabalho de cuidados continuará sendo feito, mas de forma gratuita e pelas mulheres, nas casas e dentro da dinâmica das famílias. Da forma que nossa sociedade é organizada, quem não detém o poder do salário e dos direitos correlatos a ele acaba tendo que arcar com as tarefas de cuidados. Considerando que o cuidado é uma dimensão importante da vida das mulheres, temos que valorizar isso. Se desejamos garantir autonomia para as mulheres, se sonhamos que cada uma delas possa ter o seu próprio sustento, é preciso reconhecer essa grande massa de trabalho que fica a cargo delas como parte, não só da forma que produzimos a riqueza, mas como objeto de direitos.

 

A baixa presença feminina na vida política – Câmara dos Deputados, Senado Federal, Assembleias Legislativas Brasil afora – impacta na construção de direitos trabalhistas das mulheres?

A baixa presença feminina é explicada pelo acúmulo de tarefas, pela chamada “jornada dupla” que afeta todas as mulheres, mas de formas diferentes.

 

É claro que aumentar essa participação traz um elemento de equidade, mas é preciso considerar que não bastaria aumentar a participação das mulheres para construir novos modelos de justiça social.

 

Vale para o feminismo o que vale para todo movimento político: para obter projetos políticos que mudem a vida das mulheres, que valorizem o cuidado, que considerem os diversos sonhos de emancipação é preciso votar em mulheres que propõem exatamente isso.

 

Você fala sobre as tarefas de cuidado, que ficam a cargo das mulheres. Como, na sua avaliação, a reforma trabalhista está relacionada a isso?

Tem uma grande massa de trabalho a cargo das mulheres e isso é uma dimensão importante das nossas vidas, que não pode ser ignorada e nem desvalorizada. Há os cuidados com as crianças, com os idosos, com as pessoas que ficam doentes; os trabalhos de limpeza e manutenção da vida em casa. Esforços recentes de pesquisas mostram que muito tempo é dedicado para a realização dessas tarefas; chamam isso de estudos do “uso do tempo”. O IBGE, apenas recentemente, passou a monitorar essas atividades e aferiu que as mulheres brasileiras empenham 24 horas semanais nesses trabalhos (os homens declararam utilizar cerca de 10 horas nas mesmas tarefas).

 

A reforma trabalhista impõe uma série de mudanças na regulação das horas de trabalho: a possibilidade de se contratar trabalho por jornada intermitente, ou seja, manter as pessoas em casa até que se necessite delas, provoca um impacto muito maior na vida das mulheres na medida em que precisam organizar os trabalhos de cuidados e em casa. Sem contar que essa era uma reivindicação fortemente defendida pelo comércio, que emprega quase 18% das mulheres que trabalham. Dessa forma, os itens de regulação da jornada e de controle do tempo afetam mais as mulheres.

 

Você acha que a reforma trabalhista irá prejudicar mais as mulheres do que os homens? 

Há uma noção de que não regular as relações de trabalho permitirá que o capitalismo se desenvolva livremente, nem que seja a custo de jornadas exaustivas e baixos salários, que não alimentarão a economia. Isso é prejudicial em várias dimensões e afeta toda a sociedade; muitos especialistas já demonstraram isso com mais propriedade. A Reforma Trabalhista revoga explicitamente aspectos importantes da CLT: a proibição do trabalho de gestantes em local insalubre, a regulação sobre a pausa para amamentação e a igualdade salarial.

 

A pausa para amamentação, por exemplo, passa a ser de livre negociação com o empregador, mas coloca, no regramento, os interesses da empresa acima das recomendações da saúde.

 

Essas alterações no regramento jurídico ferem, inclusive, numerosos acordos internacionais sem aviso prévio na medida em que convenções relativas à igualdade salarial e ao trabalho doméstico foram travadas entre o Brasil e a Organização Internacional do Trabalho ao longo de todo o século XX.

 

No geral, as medidas que esvaziam as políticas sociais do Estado afetam especialmente as mulheres. Diminuir o número de equipamentos públicos em nome do saneamento das contas, por exemplo, não faz desaparecer crianças, idosos ou pessoas doentes. Pelo contrário, todo esse trabalho de cuidados vai continuar sendo realizado, especialmente, pelas mulheres.

 

Fonte: Jota.info