“A gente não está vivendo isso de agora. A vida inteira nós vivemos isso. Nunca melhorou, não vai ser agora que isso vai ser diferente, infelizmente”, afirma Elza Soares, incontornável, ao comentar as recentes manifestações pedindo justiça racial pelo mundo em meio à pandemia de covid-19. A cantora afirma que o Brasil é um país racista e que durante toda a sua vida precisou conviver com isso. “Não foi feita uma vacina contra esse mal ainda, esse mal maldito. Sempre foi a mesma coisa, não tem diferença nenhuma no que acontece hoje. Esse é o meu Brasil, o seu, o nosso.”

Essa afirmação da cantora, que completou 90 anos no último dia 23 de junho, está refletida em Juízo Final, samba de Nelson Cavaquinho de 1973 que ganhou nova versão na voz de Elza. O samba chamou, e ela veio de novo para cantar “quero ter olhos para ver a maldade desaparecer” e afirmar que “o sol há de brilhar mais uma vez”. 

Segundo Elza, a canção é potente e reflete o que vivemos no País — e por isso quis interpretá-la. “Ela é um alerta. Eu gosto da letra, gosto da música. É um samba, né? E fala sobre o momento que nós estamos vivendo. É o juízo final. Vamos prestar atenção nessa letra, gente. O que ela fala é muito forte.”

A intérprete, que amplificou a voz e a situação das pessoas negras no Brasil com a canção A Carne, lançada em 2002, afirma que “o Brasil é um país preto, mas é um país bobo, de miséria”. “Tem que colocar a mão na consciência. A carne mais barata do mercado foi a carne negra. Ela não é mais”, afirma. 

“A movimentação [de combate ao racismo] sempre existiu e tem que continuar como sempre foi. Ele [racismo] sempre existiu, não é de agora. É preciso lutar, lutar, buscar, buscar. Não se faz vacina para doenças? Quem sabe algum dia não exista uma para essa espécie de ‘pandemia’ também?”, reflete.

Além de Juízo Final, Elza prepara também o lançamento da inédita Negão Negra, que pretende, novamente “cantar o que se cala”. “Nestes tempos, a gente vendo os negros sendo mortos, uma coisa horrível, eu tenho que gritar. Aliás, eu tenho que gritar sempre, e essa música é mais um grito meu.”

Toda essa trajetória representa a evolução do recado que Elza deu há cinco anos, quando ressurgiu pedindo para que a deixassem “cantar até o fim” no álbum A Mulher do Fim do Mundo, de 2015.

Esse álbum, inteiro de inéditas, rendeu um Grammy Latino a ela e duas sequências: Deus É Mulher, em 2018 e Planeta Fome, em 2019, além de turnês e shows pelo Brasil e mundo afora. Em 2018, também foi lançada Elza, sua biografia, escrita pelo jornalista Zeca Camargo.

É em Não está mais de graça, do álbum de 2019, que Elza atualiza um de seus hinos, A Carne, música de 2002 cujo refrão agora afirma que  “a carne mais barata do mercado não está mais de graça”.

“A movimentação [de combate ao racismo] sempre existiu e tem que continuar como sempre...

Apesar de ter se tornado uma referência ao longo de sua carreira - e ganhado notoriedade nos últimos anos -, Elza Soares rejeita esse lugar. “Eu não quero que elas [mulheres] me vejam como coisa alguma. Quero que elas se vejam. Nós, mulheres, temos que lutar. Sem mulher o mundo não existe. Deus é mulher.”

Desde março, a cantora precisou remarcar shows e adiar algumas produções. E se sente bem. Ela tem ficado somente em casa devido à pandemia do novo coronavírus e afirma estar acompanhada de sua família. “Está passando, né? Tem que passar, precisa passar, a gente passa. Tenho ficado completamente em casa, não é quarentena? Então temos que seguir”, diz. 

Para ela, este momento escancarou desigualdades já latentes no Brasil, mas vê oportunidades em meio à crise sanitária. “Para mim e pra todo mundo que está passando por isso... É um momento de você pensar, ficar mais atenta a tudo que está acontecendo. É por aí. Prestar atenção ao outro é uma coisa que a gente não faz. O momento é este, é agora.”

Sempre tivemos dificuldade de enxergar o outro. Foi preciso uma pandemia para as pessoas pararem e pensarem.

A “mulher do agora” que é Elza Soares não vê o passado com nostalgia. Hoje, ele não passa de uma sombra. Elza passou fome na infância, perdeu maridos, filhos, amargurou a falta de dinheiro e de liberdade, ficou quase 10 anos sem gravar e sofreu com o julgamento da sociedade por se relacionar com Mané Garrincha - e ter sido vítima de violência doméstica.

“Eu me vejo como todo mundo se vê: para frente! Eu acho que você tem que seguir, trilhar o caminho que se apresenta. Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, vamos embora”, diz, otimista. O que a Elza de hoje diria para Elza do passado? “Vamos para frente que atrás vem gente”, brinca.

 

Momentos marcantes

Em 1953, Elza Conceição Soares subiu ao palco do programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi, com seus 50 quilos, roupas remendadas com alfinete e uma sandália emprestada de sua mãe. “De onde você vem?”, ele perguntou, em tom de gozação. E ela respondeu: “Do planeta fome”.

Assim que ela começou a cantar os versos de Lama, “se eu quiser fumar, eu fumo, se eu quiser beber, eu bebo”, escritos por Aylce Chaves e Paulo Marques, Ary se encantou com o timbre e a força daquela voz rouca cheia de distorções únicas. Ao final da apresentação, abraçou Elza e bradou: “senhoras e senhores, nasce uma estrela”.

Em 1999, ela caiu de um palco de aproximadamente 2 metros de altura enquanto fazia um show no Metropolitan, em São Paulo, o que provocou um achatamento na coluna. Inicialmente, Elza precisou usar um colete e não deixou de usar seu emblemático salto 15 — o que, com o tempo, a fez sofrer com dores e dificuldades de locomoção.

De 2007 para cá, já fez cerca de 4 cirurgias e correu o risco de perder os movimentos e a fala. Recuperada e saudável, ela precisou abrir mão do gingado, do salto alto e, atualmente, faz os shows sentada. “Cantar ainda é remédio bom. Essa frase é de João de Aquino [compositor brasileiro]. Continua sendo esse remédio. Tem que ser”, diz. 

Aos 90 anos - que ela insiste em dizer que não comemora e não conta -, Elza segue cantando e se alimentando de sua própria voz. O dia em que ela chegou ao mundo é comemorado em duas datas: dia 22 de julho é considerado seu nascimento oficial, e 23 de junho, a dataque consta em documentos.

“Há dias em que nem nasci ainda, estou no ventre, outro dia já nasci, outro dia já acabei de nascer, sei lá. Vou vivendo. Estou vivendo os melhores dias da minha vida. Nunca parei para ver quantos anos eu tenho, não vai ser agora, né?”

Para Elza, “vamos encontrar um mundo novo” após a pandemia. “A gente vai viver um novo mundo, uma nova experiência. Nós estamos pisando em ovos. Vamos continuar pisando, devagar e sempre. Tem que ser assim. Não dá para ser afobado, não”, ressalta.

 

Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/