Meio século se passou desde que agentes da ditadura brasileira apareceram à porta da lenda musical Caetano Veloso e anunciaram: “É melhor você trazer a escova de dentes”. Depois de seis meses de detenção e confinamento ele se viu forçado a partir para o exílio. Acabou indo para Londres e passou dois anos e meio morando em Chelsea, West Kesington e Golders Green, onde, na sacristia de uma igreja local, ensaiou o que segue sendo seu mais celebrado disco, Transa. “Eu tinha estado em Londres apenas uma vez antes disso e não havia gostado. Achei a cidade arredia, distante”, Veloso recorda, durante uma rara entrevista de três horas para o jornal The Guardian. “Me senti muito deprimido com toda aquela situação”.

Cinquenta anos depois, o compositor, agora com 77 anos de idade, está novamente preocupado com a intolerância política que assola seu país – embora desta vez ele disponha de um assento na primeira fila para a turbulência, desde sua residência à beira-mar no Rio. De fato, o Brasil, que emergiu de duas décadas de ditadura na metade dos anos 80, é hoje governado por Jair Bolsonaro, um ex-paraquedista eleito democraticamente mas abertamente antidemocrático que encheu sua administração de militares e reverencia os generais que baniram artistas e intelectuais, como Veloso, do solo brasileiro. Em meses recentes, apoiadores fanáticos de Bolsonaro foram às ruas com cartazes exigindo o fechamento do Congresso e a volta do AI-5 (isto é, um decreto da era da ditadura que, entre outras coisas, tornou possível ao governo de então o exílio de Veloso), com Bolsonaro em pessoa presente em algumas dessas manifestações. “Um completo pesadelo. É pura loucura”, disse o músico sobre os fanáticos de direita exigindo o retorno da ditadura, com Bolsonaro no leme. “Ter um governo militar é horrível, e Bolsonaro é todo confuso, super incompetente. Seu governo não fez absolutamente nada”, Veloso observa. “O que o poder executivo brasileiro fez no desde que ele se tornou presidente? Nada! Não existe governo nenhum, apenas um monte de loucuras!”.

 

Caetano Veloso, à direita, e Gilberto Gil em Trafalgar Square durante o exílio de ambos em Londres. l Foto: Arquivo do Caetano.

O banimento de Veloso do país teve início em dezembro de 1968, quando ele tinha 26 anos de idade e sua carreira estava em ascensão. E o motivo foi algo surpreendentemente atual: fake news. Na sequência de um espetáculo no Rio com os roqueiros psicodélicos Os Mutantes, um locutor de rádio sensacionalista de direita acusou falsamente Veloso e seu parceiro Gilberto Gil de profanar a bandeira brasileira e usar palavrões na letra do hino nacional – atos inaceitáveis naquela que era a fase mais repressiva da ditadura. Ato contínuo, Caetano e Gil foram presos por dois meses, quando estiveram um breve período no regimento de paraquedistas, na zona oeste do Rio, onde o futuro presidente Bolsonaro ia servir apenas poucos anos mais tarde. Depois de mais quatro meses, eles se viram forçados a tomar um avião que os conduziu ao exílio. Fixaram-se então em Redesdale Street, Chelsea. “Levei um tempo pra começar a gostar de Londres”, diz Veloso, lembrando-se de seu novo lar de então. Mas sua melancolia pôde arrefecer-se um pouco com a oportunidade de ver um “dionisíaco” Mick Jagger pavonear-se no palco na Chalk Farm Roundhouse, assim como de assistir a John Lennon, Led Zeppelin e Herbie Hancock de perto. “Era quase como se eu estivesse noutro planeta, numa tribo diferente, numa cultura e modo de ser diferentes”, ele lembra.Ouça a música You Don’t Know Me, do disco Transa, gravado no exílio:

 

Apesar de todas as diferenças entre o presente democrático e o passado ditatorial brasileiros, há ecos perturbadores da experiência de exílio de Veloso no atual panorama político do Brasil. Então, os governos militares se apropriaram das cores verde e amarelo como seu símbolo patriótico, exatamente como os bolsonaristas fanáticos fazem agora, para o desespero dos brasileiros progressistas. Quando, na Copa do Mundo de 1970, Veloso e Gil enfeitaram sua casa londrina com bandeiras do Brasil, seus amigos se mostraram muito consternados, “porque parecia que nós estávamos apoiando a ditadura”. “Eu dizia: ‘Não, a ditadura não é o Brasil!’ Mas todos sabíamos que a ditadura era um sintoma do Brasil, uma expressão do Brasil, e isso era o que o Brasil estava sendo naquele momento, exatamente como ele está sendo um montão de coisas hoje que não são fáceis para nós de engolir”, Veloso diz. “Você não pode dizer que Bolsonaro não é o Brasil”, Veloso acrescenta. “Ele é muito parecido com muitos brasileiros que eu conheço. Ele é muito similar ao brasileiro médio. Na verdade, a habilidade dele e de seu bando de permanecerem no poder depende da ênfase que conseguirem dar a essa identificação com o brasileiro ‘normal’”.

Apesar de todo o apelo popular de Bolsonaro – as pesquisas sugerem que, a despeito de sua calamitosa resposta ao coranavírus, ele mantém o apoio de 30% dos brasileiros –, Veloso descreve sua administração como um desastre e um perigo para a democracia. “Há algo um tanto ridículo nisso – mas você sabe que as experiências europeias do século XX, na Itália e na Alemanha, nos ensinam que muitas coisas que parecem ridículas – e de fato são – podem na verdade também trazer trágicos resultados que duram por muito tempo para muitas pessoas”, pondera o artista, que tem usado seu prestígio em uma série de recentes iniciativas e manifestos que visam denunciar os ataques de Bolsonaro à educação, à cultura e ao meio ambiente.

Assim como outros populistas de direita nos Estados Unidos, na Hungria, na Polônia, no Reino Unido, Bolsonaro propôs “soluções suspeitosamente fáceis para problemas complexos”, Veloso diz. “‘Bolsonaro vai resolver tudo! Bolsonaro é a solução!’ … Eis por que ele conseguiu tantos votos!” Porém, Veloso sustenta que, desde que assumiu o poder em janeiro de 2019, Bolsonaro não realizou absolutamente nada. “O que temos visto tem sido mais sobre destruição”, ele diz. “Tudo que vem sendo feito na Amazônia tem sido para estimular o desmatamento, tudo que vem sendo feito na esfera cultural tem sido para desmantelar museus, grupos teatrais, as pessoas que fazem música e filmes”. Enquanto isso, quase 90 mil brasileiros perderam a vida para uma pandemia que os críticos acusam Bolsonaro de manejar catastroficamente, com a ajuda de um ministro da saúde interino que é um general da ativa do exército.

“É uma abominação! E o presidente se aferra a sua posição, mesmo quando ele próprio está infectado. Ele sequer comportou-se como Boris Johnson, que mudou de abordagem depois de ter-se infectado”, diz Veloso, que saiu de casa apenas uma vez desde que a epidemia começou – em razão do nascimento de seu neto, Benjamin.Veloso admitiu estar com medo de ficar doente e morrer por causa do Covid-19 e tem se abrigado em casa na companhia de sua esposa e filho, dos livros do filósofo italiano Domenico Losurdo e de filmes clássicos como os de Glauber Rocha, Hitchcock e Antonioni.

“Sou uma pessoa muito curiosa e não quero deixar de ver onde tudo isso vai dar: porque esse nó vai ter que desatar de algum modo”, ele diz, referindo-se ao atual imbróglio político no Brasil. Mas ele teme que os brasileiros “tenham que sofrer enormemente por causa de todos esses passos pra trás” sob Bolsonaro e vê o risco de a tensão política acabar se inflamando com “grande violência” entre, de um lado, o presidente e seus apoiadores mais devotos e, de outro, seus opositores. “Receio que essas pessoas não vão querer largar o poder tão facilmente”, ele diz acerca do bando ultrarreacionário de Bolsonaro.

Mas o músico, que continuou compondo ao longo de seus cinco meses de quarentena, diz haver também certa conveniência no pessimismo e, nesse sentido, insiste que ele, ao contrário, permanece “escandalosamente otimista” quanto ao futuro do Brasil. Talvez estar sujeito a “uma moléstia como Bolsonaro” seja o preço que o Brasil tenha que pagar para cumprir por fim seu enorme potencial.

Caetano Veloso se apresenta com Gilberto Gil na França em 2004. Foto: David Redfern/Redferns

Enquanto a jovem democracia brasileira enfrenta talvez seu maior teste desde que foi reconquistada há 35 anos, Veloso se agarra às memórias da infância no “doce Brasil” de Santo Amaro, uma cidade culturalmente rica do Nordeste, onde ele cresceu mergulhado nos costumes brasileiros, em patriotismo e tradição. “Se eu estivesse sentado em frente de um estrangeiro que demonstrasse interesse no Brasil, eu lhe diria: ‘O Brasil está aqui, bem aqui’”, diz o compositor, sorrindo.

“Nossas florestas, nossas canções, nossas peças de teatro e nossos filmes estão sendo ameaçados por este governo, e estão em vias de ser destruídos. Mas, como um dos membros do grupo que produz música popular, posso assegurar a você que nós estamos aqui – o Brasil está aqui”.

Fonte: Vermelho