Para a filósofa Marcia Tiburi, a felicidade não é particular. “Se o coletivo vai mal, não posso ir bem. Depende de ver os outros felizes para ser feliz”

De um lado, as vítimas diretas do descaso do governo de Jair Bolsonaro: os mais de 168 mil infectados pelo novo coronavírus, os mais de 11 mil mortos, os doentes que aguardam uma vaga no hospital, a dor de familiares e amigos, pessoas que perderam emprego, renda, perspectiva de vida. De outro, as que têm o privilégio de poder ficar em casa, de onde podem dar sequência a seu trabalho e saem somente o necessário. Basicamente não lhes falta nada, mas mesmo assim aquele mix de sentimentos leva a se perguntar: afinal, será possível ser feliz em tempos de pandemia de covid-19?

Para a filósofa Marcia Tiburi, isso é bem difícil porque a felicidade não pode ser considerada como algo particular. “Se o coletivo vai mal, não posso ir bem. Porque tudo depende de ver os outros felizes para ser feliz. É uma dimensão coletiva que tem de ser levada a sério. Há mulheres que estão sendo vítimas de violência doméstica, crianças que estão ficando sem a merenda escolar (com a quarentena)”, disse.

No campo da ética, segundo ela, felicidade é um objetivo. Mas acaba sequestrada por aspectos do sistema, ideologias, religião. “Na filosofia, felicidade permeia a ética. Estado da alma, mas não é só isso. Se há violência, ataque a direitos, fascismo, não há justiça e não tem felicidade. É por isso que muitos governos provocam tristeza, que é uma forma de subjugar o povo. Mas apesar de tanta escrotidão do governo, estou vendo muita solidariedade”, disse Tiburi em debate promovido hoje (11) pelo site Uol. Participaram ainda a Monja Coen e os psicanalistas Christian Dunker e Lucas Liedke.

Felicidade para todos

Fazendo coro a Tiburi, Dunker foi até mais rigoroso. “Ou a felicidade é para todos ou não é para ninguém”. E criticou a ‘positividade tóxica’ segundo a qual não se pode falar de coisas ruins ‘que atrapalham a  felicidade’. “Se está tão ruim lá fora, vamos ser felizes aqui entre nós”, condena.

Rebatendo a fala da secretária de Cultura, Regina Duarte, em entrevista ao canal CNN Brasil – “para que ter cemitérios nos ombros, por que não pensar em coisas boas?” – provocou: “Por que então não ampliar a felicidade para as gerações que ainda virão e para os que já se foram?”.

Dunker destacou que a felicidade é uma contingência e que depende de um encontro que às vezes é melhor ou pior. “Nossa tarefa é tentar, com essa contingência, valorizar o encontro que a determinou, que coloca diante da gente talvez aquilo que espera a felicidade como estado permanente, ele vai acabar negando isso que por outro lado é tão importante. A contingência da vida é a aceitação dessa contingência como um princípio maior. Eventualmente a gente se torna muito infeliz perseguindo uma felicidade super humana. Cada um precisa encontrar a sua felicidade. Felicidade é direito de todos.”

Estado de contentamento

Em vez de felicidade, a Monja Coen destacou o estado de contentamento com a existência, que marca o budismo. E que pode existir mesmo em momentos de dificuldade, como a pandemia de covid-19. “Um contentamento de respirar sem aparelhos, por exemplo”, disse.

Esperando – do verbo esperançar – que todos sejam felizes, Monja Coen disse pensar na dona de casa que ficou na fila da Caixa, recebeu os R$ 600 e pensou: “Isso é felicidade”. Ou em uma pessoa necessitada que recebeu uma cesta básica e pensou: “Isso é felicidade”.

“No budismo, a gente fala em suficiência. Tem muita gente rica que tem tudo, menos suficiência em sua vida. É preciso encontrá-la. Perdi um irmão e não lamentei a falta do enterro. Mas pude jogar uma flor pela janela em sua memória. Isso me foi suficiente”, disse a Monja.

Simplicidade

Sua proposta é que todas as pessoas aprendam com as pessoas mais simples a encontrar a plenitude e deixar para trás a insuficiência. “Os mais carentes são os que mais compartilham. Existe mais solidariedade entre os que passaram fome, por isso compartilham. Temos de aprender com os mais pobres.”

Para esse aprendizado, destacou outro pilar do budismo: Sabedoria para analisar a realidade e compaixão para atuar por mim e pelo todo. “Será que vamos exigir de nossos políticos que haja saneamento para todos, conforme tem sido explicitado pela pandemia, enquanto tanta gente está cansada de lavar banana em casa?”, questionou.

“Nós somos seres sociais. Transformamos as pessoas e somos transformados por elas. Moro ao lado do hospital de campanha do Pacaembú. Sinto a pessoas que ali chegam e suas dores. Fico pensando nos entregadores. Estou há 60 dias em casa. É preciso diminuir a dor, mas sem mascarar a realidade. No fundo está doendo. A dor é nossa, é do coletivo.”

Frustrações

Como bem destacou o psicanalista Lucas Liedke, não dá para ser feliz todo dia, toda hora. E esse tempo diferente, de pandemia, tem abalado esse dia após dia. “E tem momento que a gente desmorona. Grandes frustrações são explícitas. Dá pra ser feliz? A pergunta teria de ser: quão feliz era antes?”

Segundo ele, a felicidade agora pode estar em se descobrir mais forte e resiliente que antes, como ao colocar os sonhos em segundo plano. “É a colocação da felicidade em segundo plano em um momento em que a vida é o agora. Mas é preciso cuidado”, pediu. 

Na avaliação de Liedke, a maioria das pessoas está vivendo no “modo sobrevivência”, e acredita que a pandemia pode ser a “loja fechada para balanço” das escolhas feitas compulsivamente e inconscientemente. E também momento de driblar as perdas de pessoas, dinheiro, emprego. “Mas com perdas vem alguns ganhos. Algumas coisas já estão mudando na nossa cabeça, na opinião política, sobre a própria vida. Há terapias. Você pode inclusive falar consigo mesmo, ou rezar, enquanto lava a louça.”

E mais: há um luto de um mundo que não existe mais. “O normal não estava bom, vamos combinar. Talvez a felicidade seja enxergar as nossas dores. Vale mais paciência com as pessoas e consigo mesmo e não se alienar. Não fuja, mas não se renda.”

Fonte: Rede Brasil Atual