Autora do livro 'Nada digo de ti, que em ti não veja' escreve para Chadwick Boseman, intérprete do Pantera Negra, um 'super-herói que fez sonhar tantos meninos'
Diz um dito africano que, quando morre um ancião, morre uma biblioteca. Ouso completar dizendo que, quando parte um jovem consciente, vai-se um leitor ávido destas bibliotecas-humanas e também um bibliotecário, alguém capaz de cuidar dos tesouros que a sabedoria produziu. É uma quebra brusca na corrente de humanidade da qual todos e todas fazemos parte. Sim, você partiu cedo.
Não te conheci fora das telas. O que sei de você é o que todos os seus fãs sabem: o excelente ator que encarnou James Brown, Thurgood Marshall e no rei T’Challa que, por sua vez, era o Pantera Negra. Este super-herói que fez sonhar tantos meninos que se acham sem poder perante uma sociedade que insiste em classificá-los como potencialmente violentos.
Escrevo chamando-o de irmão porque, além de “brother” na nossa negritude, você poderia ser de fato meu irmão mais novo e — foi inevitável — pensar no meu irmão que tem a sua idade e no meu filho, uma destas crianças/jovens que citei acima, que se viram orgulhosamente belos e fortes representados por você.
Soube que não pensava em ser ator, que estudou atuação para entender profundamente como roteirizar e dirigir atores. Logo, você queria mesmo era escrever e, para nossa felicidade, foi parar nas telas nos deixando um legado de personagens inesquecíveis. Vi também que o seu papel dos sonhos seria interpretar Jimi Hendrix. O gênio da guitarra da geração dos grandes artistas que se foram ainda mais jovens que você, aos 27 anos. Isto me lembra que este ano perdemos precocemente outro talento, o jogador de basquete Kobe Bryant.
Esportes… Aí está algo que você gostava e que também adoro. Sua interpretação de Jackie Robinson, o primeiro negro na liga principal de beisebol, em “42, a história de uma lenda” contou a trajetória de um atleta que enfrentou racismo feroz nos anos 40 do século passado. Quebrar paradigmas é uma questão para nós, não?
Você era um adolescente quando escreveu “Crossroads”, sua primeira peça, para um colega de escola morto com um tiro. Este título, “Encruzilhadas”, fala muito sobre nós, pessoas negras nesta diáspora sangrenta de séculos, que estão neste meio de caminho onde a arte torna-se o veículo para dar vazão a tantas dores. No entanto — veja que maravilha Chadwick! — é também com arte que mostramos todo o poder criativo, resiliência e esperança com que miramos o passado para fazer o futuro.
Você partiu no mesmo dia do icônico discurso “I have a dream”, de Martin Luther King, num momento turbulento do planeta, onde pessoas como George Floyd e Jacob Blake morrem todos os dias vitimadas pela sequela mais nefasta do colonialismo. O pastor King disse corajosamente que queremos, merecemos e conquistaremos o direito ao futuro, com dignidade e sem esquecer o que nos ergueu até aqui.
Por fim, e por falar em diáspora, em dispersão de povos, em destinos violentamente alterados pela ganância, você buscou suas origens e um exame de DNA te apontou o Oeste africano. Como eu gostaria que pudesse ter lido meu livro “Água de barrela”… também vim de lá. Eu, você e uma multidão pelo mundo, como dizem, somos o sonho dos nossos ancestrais. E agora você está acarinhado, recebido e honrado ao se tornar um deles. Obrigada e até um dia. Wakanda forever!
* Eliana Alves Cruz é jornalista e escritora, autora de “Nada digo de ti, que em ti não veja”