Empresa propôs acordo com Ricardo Caldeira, do Rio de Janeiro, que agora incentiva outros motoristas a entrar na Justiça

 

 

 

 

Ricardo da Silva Caldeira, taxista há 12 anos no Rio de Janeiro (RJ), é um dos primeiros brasileiros a fazer acordo judicial com a 99, empresa e aplicativo de transporte individual, após solicitar na Justiça o reconhecimento do vínculo de emprego.

 

O acordo foi homologado pela 18ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro em 25 de fevereiro de 2021. Após apresentar comprovantes de corridas realizadas desde 2013, Caldeira recebeu R$ 12.059,15.

 

O montante representa menos de 5% dos R$ 256.370,19 que o taxista pedia no início da ação trabalhista, em agosto de 2020.

 

Além dos direitos de um trabalhador com carteira assinada, Caldeira pedia indenização referente aos danos pela deterioração do veículo e os custos de manutenção.

 

De origem brasileira e chamada inicialmente de 99Taxis, a empresa foi comprada pela chinesa Didi Chuxing em janeiro de 2018 por cerca de R$ 1 bilhão.

 

A 99 afirma, em seus termos de uso, que a relação não configura vínculo de emprego.

 

“Não se estabelece entre o motorista parceiro e a 99 qualquer vínculo de natureza societária, empregatícia e/ou econômica, sendo certo que o motorista parceiro é livre para realizar corridas quando quiser, bem como para cessar a utilização do aplicativo em qualquer momento”, diz a versão atualizada do texto apresentada aos motoristas que se cadastram no aplicativo.

 

Porém, há pelo menos dois anos, decisões judiciais em diferentes países vêm garantindo direitos mínimos a esses trabalhadores.

 

Férias e 13º salário

 

O vínculo empregatício de Caldeira com a 99 foi reconhecido pelo juiz Marcos Dias de Castro em 10 de dezembro de 2020.

 

O magistrado determinou que a empresa assinasse a carteira de trabalho de Caldeira com data de admissão em 1º de maio de 2013, na função de motorista, “com remuneração à base de comissões”.

 

A comissão seria calculada com base nas corridas realizadas, que o taxista juntou aos autos do processo.

 

“Em decorrência do vínculo empregatício, acolho os pedidos de: a) Férias vencidas, em dobro, acrescidas do terço constitucional, referentes aos períodos aquisitivos de 2015/2016, 2016/2017, 2017/2018 e 2018/2019; b) Férias simples, acrescidas do terço constitucional, referente ao período aquisitivo de 2019/2020; c) 13º salário integral de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019; d) FGTS de todo o período contratual”, escreveu o juiz em sua sentença.

 

O pedido de pagamento referente aos intervalos intrajornada foi negado pelo magistrado, que pediu, por outro lado, o pagamento de horas extras e adicionais em domingos e feriados.

 

O argumento da depreciação veicular também não foi acolhido pelo juiz Marcos Dias de Castro. Segundo a interpretação dele, o trabalhador que se cadastra no aplicativo “já tem prévio conhecimento das condições em que se dará tal prestação de serviços.”

 

Para evitar que o caso se arrastasse em instâncias superiores, o taxista decidiu aceitar o acordo de conciliação proposto pela 99, mesmo com valor inferior ao requerido inicialmente, expediente que é comum na Justiça do Trabalho.

 

Incentivo a colegas

 

Caldeira conta que, quando se cadastrou no aplicativo, não estavam claras as taxas que seriam cobradas a cada corrida.

 

“Na época, quando eles entraram no Brasil, a gente não pagava nada. Era só um meio para aceitar corrida mais rápido. Só que eles foram pegando a nossa cartela de clientes e depois começaram a cobrar os valores, descontando das corridas”, relata.

 

“Até hoje eu tenho o aplicativo no meu telefone, mas só ligo quando tem corrida particular, de empresas, e eles pedem via 99”, acrescenta o taxista.

 

Ao entrar na Justiça contra a empresa, Caldeira foi orientado por Wagner Oliveira, autor do livro “Minha batalha contra a Uber”, que possui um canal no Youtube sobre o tema.

 

Embora tenha ficado satisfeito com os R$ 12 mil, Caldeira diz que a empresa lhe devia um valor maior, tanto que consentiu em pagar esta quantia ao invés de litigar na Justiça até o fim do processo. Segundo ele, só foi possível apresentar comprovantes de cerca de 20% das corridas realizadas.

 

“Eu tinha outros quatro carros cadastrados, mas eles [99] apagaram todo o histórico de corridas deles”, afirma. O Brasil de Fato entrou em contato com a empresa, que negou o ocorrido. Confira ao final da matéria.

 

Assim como foi incentivado por Oliveira, o taxista do Rio de Janeiro hoje encoraja outros colegas a reivindicarem seus direitos.

 

“Falei para outros colegas na época que eu entrei na Justiça, para eles entrarem também, mas eles ficaram receosos. Quiseram esperar o que ia acontecer antes de entrar. Hoje, tem uns cinco ou seis colegas que rodam comigo aqui no ponto, e que antigamente rodavam com a 99, que já deram entrada no processo”, conta Caldeira.

 

Logo após o acordo, ele gravou um vídeo endereçado a taxistas de todo o país:

 

“Galera, não desanima, não, que tem como a gente entrar com ação e ganhar na Justiça. Eles apagaram a maioria das minhas corridas, ainda assim consegui printar algumas e conseguimos o acordo com a 99 para receber esse dinheiro. Já deu uma ajuda, para poder pagar umas contas nesse momento complicado de pandemia”, relata. “Dá para entrar, dá para ganhar”.

 

O que diz a empresa

 

O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de comunicação da 99, que respondeu por meio de nota.

 

“Desde as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ambas de 2019, e com base em argumentos jurídicos de diversos tribunais pelo Brasil, entende-se que não há vínculo empregatício entre motoristas parceiros e a empresa de aplicativo”, diz o texto.

 

“Trata-se de uma relação civil, de intermediação de viagens, e os serviços são prestados de forma livre, sem vínculo, obrigatoriedade e controle do cumprimento de horário e jornada. Além disso, o motorista parceiro não possui qualquer exclusividade com as empresas e pode utilizar mais de uma plataforma, além da 99”, completa a nota enviada pela empresa.

 

Questionada sobre as corridas apagadas, a assessoria solicitou os dados do motorista para checar por que o histórico teria sido deletado. Na sexta-feira (21), a reportagem informou o CPF de Caldeira e a placa de um dos carros, para facilitar a busca no sistema interno da 99.

 

A assessoria voltou a entrar em contato na segunda-feira (24), sem entrar detalhes sobre o tema. Na nota enviada ao Brasil de Fato, a empresa apenas afirmou que “não deleta históricos de corridas realizadas pelos motoristas.”

 

Trabalhador de plataforma digital configura vínculo de emprego?

 

A jurisprudência no caso de ações trabalhistas contra plataformas digitais não está consolidada no Brasil. Por isso, as decisões são difusas e variam conforme o magistrado.

 

Para o presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) e livre docente da Universidade de São Paulo (USP), Jorge Pinheiro Castelo, a relação entre as empresas de transporte por aplicativo e os motoristas configura vínculo de trabalho.

 

Em entrevista recente ao Brasil de Fato, ele afirmou que que a maioria dos motoristas que reivindicam relação de emprego com a Uber pedem enquadramento nas regras tradicionais da CLT, dificultando a comprovação do vínculo.

 

Na interpretação do especialista, os motoristas de aplicativo realizam um trabalho intermitente, regulamentado na reforma trabalhista de 2017.

 

O parágrafo 3º do artigo 443 da CLT estabelece que o trabalho por demanda – válido para qualquer tipo de atividade do empregado ou do empregador, exceto aeronauta – pode se configurar como relação de emprego intermitente.

 

“A reforma estabelece uma nova forma de habitualidade, que é descontínua. É o que permite ao motorista desligar o aplicativo ou recusar algum serviço, sem que isso desconfigure o vínculo”, explicou Castelo.

 

Desde 2011, o artigo 6º da CLT já afirmava que não há distinção “entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.”

 

O mesmo artigo acrescenta que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”

 

Para Castelo, isso significou o estabelecimento de “uma nova subordinação jurídica, que é a subordinação por aplicativo.”

 

Adriana Calvo, que atua na mesma comissão da OAB, discorda da interpretação de que motoristas são empregados, nos atuais termos da CLT.

 

Mesmo que fossem intermitentes, na visão dela, eles não cumprem os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT – “considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”

 

Na América do Norte e na Europa, diferentes caminhos vêm sendo apontados como forma de garantir direitos aos trabalhadores de aplicativo.

 

“O Reino Unido usa uma 3ª categoria, que é o trabalhador parassubordinado. Ou seja, ele não é nem totalmente empregado, nem totalmente autônomo”, exemplificou Calvo, também em entrevista ao Brasil de Fato.

 

“Eu vejo com bons olhos a tese da 3ª categoria. Funcionaria no Brasil como no caso dos representantes comerciais, portuários, que têm regras específicas e direitos mínimos”, disse.

 

Fonte: Brasil de Fato | São Paulo (SP)