Segundo a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém com a explosão da covid-19.

Neuma Ribeiro, 54, mora com o marido e com seus pais no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo. Nos últimos cinco meses, ela vive rotina de afazeres domésticos e de cuidado, que foi potencializada pela crise sanitária e econômica provocada pelonovo coronavírus. “A pandemia deixa a gente muito louca. É limpa daqui, limpa dali. Não posso ver ninguém, não posso sair, não consigo trabalhar. E eu também não posso me contaminar porque, senão, como é que eles ficam?”, diz ao HuffPost, referindo-se aos familiares.

Desde 2017, quando ficou desempregada, Neuma começou a se dedicar ao artesanato para garantir a renda mensal entre as atividades domésticas — que vão de organizar a dinâmica da casa até limpar, cozinhar, passar roupa. Também naquele ano, sua mãe, hoje com 73 anos, apresentou sintomas graves e foi diagnosticada com Alzheimer. Desde então, é Neuma quem se ocupa com os cuidados de saúde que a mãe exige. Hoje, essa tarefa foi intensificada.

“Antes [da pandemia] eu até conseguia alguém para me ajudar com ela e uma tia que mora no Rio me ajudava a pagar uma cuidadora. Mas agora, além de tudo, também tenho medo de chamar alguém e expor não só ela [mãe], mas meu pai, que também é grupo de risco”, lamenta. “Por ‘sorte’ meu marido está desempregado e é quem vai ao mercado e faz tudo na rua. Me sinto muito cansada. Tudo é comigo, eu que cuido deles, higienizo as compras, a casa, penso no que precisa comprar, nos exames que é preciso fazer, nas consultas.”

O tempo que antes era ocupado pela produção de artesanato e a participação em feiras, que movimentavam sua vida como profissional autônoma, agora é ocupado por pelo menos três turnos de trabalho não-remunerado. “Desde que eu acordei eu não sosseguei, só sentei um pouco para falar com você agora”, conta Neuma, que foi beneficiada pelo auxílio emergencial, mas atualmente está comercializando bolos para complementar a renda. “Meu sobrinho trabalha no shopping e tem feito essa ponte para mim, ele vende para as colegas dele.”

O caso da moradora da periferia da capital paulista é exemplo de como, devido à pandemia do novo coronavírus, fatores ligados à impossibilidade da reorganização do trabalho doméstico e dos cuidados com idosos e crianças vêm afetando as mulheres diretamente. Especialistas ouvidas pelo HuffPost analisam que, além de expor a sobrecarga feminina, o contexto da epidemia também levantou debate sobre a “crise do cuidado”.

“A pandemia mostrou como a construção de responsabilização das mulheres com o cuidado é social e histórica. Por conta do coronavírus, estamos vendo as pessoas tendo um nível de vulnerabilidade muito grande, de modo geral. Mas são as mulheres que estão assumindo — e que sempre assumem — a responsabilidade de cuidar quando a sociedade não cuida”, afirma Renata Moreno, pesquisadora de gênero e trabalho e doutora em sociologia pela USP.

A especialista explica que o que é nomeado como “trabalho do cuidado” muitas vezes é associado a uma prática afetiva e deixa de ser visto como uma atividade de grande importância para o bem-estar social. “Ele está em uma dimensão de atendimento de necessidades concretas das pessoas. Ele não é algo apenas da mulher, não é uma via de mão única, é um processo complexo e que envolve uma relação estabelecida entre as pessoas.”

Na pandemia, 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém

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Desde que a crise se instaurou, 50% das mulheres passaram a apoiar ou a se responsabilizar pelos cuidados de um familiar

Desde que a crise sanitária se instaurou, 50% das mulheres passaram a apoiar ou a se responsabilizar pelos cuidados de outra pessoa. Dessas, 80,6% dedicaram-se a um familiar, 24% a um amigo e 11% a um vizinho. Os dados constam da pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada nos meses de abril e maio deste ano e divulgada no final de julho pela SOF (Sempreviva Organização Feminista) e a organização Gênero e Número.

O estudo contou com a participação de 2.641 mulheres de todas as regiões do Brasil, por meio de um questionário disponibilizado online. 

O estudo mostra, de forma geral, que as mulheres estão mais sobrecarregadas no momento atual e, mesmo quando há divisão de tarefas no ambiente doméstico, há níveis diferentes de envolvimento no cuidar. Dados apontam que, para 23% das mulheres, a percepção é de que houve uma diminuição na participação de outras pessoas da família nesses trabalhos. Apenas para 13% o compartilhamento de responsabilidades aumentou. 

“Minha irmã mora aqui bem perto e às vezes vinha me ajudar. Mas como ela é comerciante e agora as lojas abriram, ela precisou voltar a trabalhar. Nós conversamos e, para não expor os nossos pais ao vírus, a gente só tem se falado por vídeo. Mesmo precisando de uma ajuda, não dá para arriscar”, explica Neuma que, neste momento, também se viu sem sua rede de apoio. 

Entre as mulheres que já exerciam atividades de cuidado com idosos, como é o caso de Neuma, 72% viram a demanda aumentar muito depois do início da pandemia. Entre as que já cuidavam de crianças menores de 12 anos, 77% disseram que a intensidade dessa atividade cresceu durante a pandemia.

Para 64,5% das entrevistadas, a responsabilidade com o trabalho doméstico e de cuidado dificulta a realização do trabalho remunerado. E 40% afirmam que a pandemia e o distanciamento social colocaram o sustento da casa em risco. 

Quando a pesquisa se debruça sobre as mulheres que afirmaram estar trabalhando mais do que antes da quarentena, 55% delas são brancas e 44% são negras. “Isso é um indicativo de que as mulheres brancas contavam com mais serviços antes, terceirizavam mais cuidados, e na pandemia, enquanto seguem realizando trabalhos remunerados, precisam lidar com o trabalho doméstico”, explica Giulliana Bianconi, diretora da Gênero e Número, organização focada na análise de dados, que acompanhou de perto o estudo.

Ao acompanhar o cotidiano de cuidados com a mãe, há também uma pressão emocional extra, além de um cansaço físico, que Neuma relata. Com todo o trabalho doméstico e de cuidado, não sobra tempo para ela própria.

“Eu me sinto muito cansada, exausta, não sei nem dizer. Eu trabalhei muitos anos na área contábil e administrativa e tenho uma tendinite, né? Tem dias que o meu braço dilata de fazer tanta coisa. E eu passo uma pomada à noite e é isso. Eu sou assim; eu não deixo amolecer não, a gente vai à luta.”

A ‘crise do cuidado’ no debate público e possíveis soluções

PILAR OLIVARES / REUTERS
Segundo o IPEA, as trabalhadoras domésticas no Brasil são, hoje, 6,4 milhões de pessoas, das quais 95% são mulheres e 63,3% negras. 

O debate público sobre o cuidado, segundo as especialistas, se acentuou devido à percepção pessoal da população sobre o tema — que as pessoas se sentem sobrecarregadas ou perceberam a importância de determinados serviços a partir de sua ausência, por exemplo — e, também, devido à visibilidade dos trabalhadores do segmento e de algumas medidas nos estados brasileiros.

Em 16 de março deste ano, seis dias depois que a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou a pandemia do novo coronavírus, o caso da primeira vítima do vírus no Rio de Janeiro lançou luz sobre o tema. Aos 63 anos, a idosa trabalhava como empregada doméstica em um bairro nobre da capital fluminense e entrou em contato com sua patroa, que tinha acabado de voltar da Itália e dias após sua morte teve o resultado positivo para a covid-19. 

“Não podemos deixar de mencionar gênero, raça e classe quando falamos de trabalho doméstico remunerado em países como o Brasil, que é marcado profundamente por essas questões. Há uma dependência da existência de profissões que são precárias e exercidas majoritariamente por mulheres empobrecidas e negras”, afirma Mariana Mazzini, professora de Administração Pública e Gestão Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Dizer que o trabalho doméstico é essencial não é valorizá-lo, é colocar essas profissionais em risco e sem nenhum respaldo.Mariana Mazzini, professora de Administração Pública e Gestão Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Dados da pesquisa realizada pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, formado por pesquisadores da PUC-Rio, da Fiocruz, da USP e do IDOR, em junho, apontam que a chance de pretos e pardos sem educação formal morrerem devido ao novo coronavírus é 4 vezes maior do que de brancos com nível superior.

Para a especialista, ao invés de políticas públicas que pudessem garantir a segurança e a saúde das profissionais domésticas, o que houve foi mais precarização. “O que a gente viu entrando na agenda política foi no sentido de não valorizar o trabalho do cuidado. Dizer que o trabalho doméstico é essencial não é valorizá-lo, é colocar essas profissionais em risco e sem nenhum respaldo.”

Pelo menos quatro estados — Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Maranhão — classificaram o trabalho doméstico como atividade essencial durante a pandemia. Sendo assim, babás e cuidadoras de idosos e deficientes poderiam ser demandadas pelos patrões. 

A ação desses estados foi entendida pela Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) como “expressão do racismo presente na sociedade”. Em maio, a organização iniciou campanha para pressionar o MPT (Ministério Público do Trabalho) para impedir que outros estados adotassem a medida. Segundo o IPEA, as trabalhadoras domésticas no Brasil são, hoje, 6,4 milhões de pessoas, das quais 95% são mulheres e 63,3% negras. 

Em março, quando a quarentena teve início no País, o MPT emitiu nota técnica em que orienta que essas profissionais sejam dispensadas com remuneração assegurada, no período em que vigorarem as medidas de contenção da pandemia. A exceção valeria para casos em que a prestação dos serviços for absolutamente indispensável como o cuidado a idosos que moram sozinhos e a pessoas com deficiência que necessitem de acompanhamento permanente.

Para a pesquisadora, a questão do cuidado e do tratamento que é dado ao trabalho doméstico não é nova e nem surgiu com a pandemia, mas o atual contexto escancara essas desigualdades na esfera pública.

“Há, sim, uma oportunidade. Porque aquilo que é escancarado e aprofundado, também fica mais visível, de certa forma. Existe uma percepção maior, ainda que difusa, de que o cuidado é um problema público e as pessoas estão discutindo mais isso.”

Neste contexto, Mazzini afirma que, mesmo com o debate público sobre o quanto esse trabalho é fundamental, é preciso ultrapassar as barreiras das conversas com familiares, parceiros e patrões. O ideal é que políticas públicas como, por exemplo, de flexibilização da jornada de trabalho, de licença parental e de acesso à creche estejam na agenda política. 

“O tema do cuidado, por mais que seja essencial, não é um tema que mobiliza as pessoas. Você não vê uma manifestação nas ruas das pessoas falando que querem políticas de cuidado”, diz. “Mas, por outro lado, ela é uma pauta que pode ser capturada por diversos pólos ideológicos. É preciso a formação de uma agenda política que coloque essa questão como prioridade.”