O ano de 2020 tinha tudo para ser a virada do Facebook no quesito reputação. A empresa baniu discursos de ódio de caipiras racistas do sul dos EUA e expulsou os lunáticos de extrema direita do Q-Anon, grupo que acha que Donald Trump está salvado o mundo do satanismo e pedófilos. Mais importante de tudo, talvez, tenha sido a criação de regras segundo as quais toda e qualquer propaganda política viria com a identificação de quem pagou a conta.

 

Esse mundo transparente e não tolerante com crimes de ódio ruiu no último dia 16, quando a empresa enviou uma carta a pesquisadores da NYU (New York University) determinando que eles parassem uma pesquisa que mapeia o impacto dos anúncios do Facebook nas eleições americanas. Segundo a corporação, os pesquisadores estavam violando a política de uso e privacidade. A empresa não permite que empresas ou ferramentas de computação de terceiros coletem e analisem os dados que trafegam pela sua rede.

 

“Ferramentas de extração de dados, não importa o quão bem-intencionadas sejam, não são meios permitidos para coletar informações de nós”, dizia a carta assinada pela responsável pela política de privacidade da rede, Allison Hendrix. Se a pesquisa não for interrompida até o dia 30 de novembro, ameaça a carta, o Facebook adotaria outras medidas, uma maneira nada gentil de dizer que a NYU sofrerá uma ação judicial.

 

Detalhe essencial: os 6.500 usuários do Facebook que fazem parte da pesquisa concordaram, por escrito, que os pesquisadores podiam acessar as propagandas políticas que chegam ao perfil deles. Se há concordância do usuário, onde estaria a violação?

 

Desconfiômetro nunca foi o forte do Facebook. Sob o pretexto de defender a liberdade de expressão, a empresa só tomou medidas contra extremistas que propagam ódio depois que empresas do porte da Coca-Cola retiraram anúncios da rede, sob pressão da ONG Stop Hate for Profit (Pare de Lucrar com Ódio). Só em junho, o Facebook teve perdas de US$ 7 bilhões. Mark Zuckerberg quis dar uma de durão e falou que os anunciantes voltariam –ele sabia que os ocidentais veneram a vaidade, assim como os chineses endeusam comida agridoce. Não voltaram. Só aí ele decidiu banir as franjas odientas da rede.

 

O marketing da transparência do Facebook tem raízes nas eleições de 2016, quando Trump venceu em condições que são consideradas suspeitas até hoje. Investigações mostraram que propaganda russa pró-Trump disparada pelo Facebook atingiu 126 milhões de americanos. O chefe da campanha de Trump, Paul Manafort, foi condenado a prisão por conluio com forças russas na campanha. Houve também a coleta de dados pela Cambridge Analytica.

 

A confirmação pelo FBI de que os escândalos da eleição de Trump não eram lenda urbana causou a maior perda na história do Facebook. O valor de mercado da companhia caiu US$ 120 bilhões em apenas duas horas, em junho de 2018.

 

A bronca do Facebook com a pesquisa da New York University tem uma relação direta com esses dois escândalos. Os pesquisadores de ciência da computação da NYU desenvolveram ferramentas digitais que permitem identificar públicos muito bem definidos que estão na mira de políticos.

 

Reportagem do site americano Politico mostrou, a partir dos dados da NYU, que Trump buscava influenciar mulheres dos estados da Flórida e Michigan que associavam o democrata Joe Biden, favorito nas pesquisas, aos protestos violentos dos movimentos antifascistas. Biden nunca apoiou esses grupos.

 

Pesquisadores também descobriram que o Facebook desrespeita as regras que a própria empresa criou, de informar sempre quem pagou pelos anúncios políticos. Cerca de 10% dos anúncios, de acordo com a NYU, não tem essa informação. O Facebook adotou essa mesma política nas eleições municipais no Brasil (veja aqui as regras), mas não dá para saber se a omissão se repete por aqui.

 

A ameaça do Facebook à Universidade Nova York é uma tentativa de manter intacta a caixa preta da rede social. Laura Edelson, a pesquisadora que lidera a pesquisa da NYU, disse que só a análise minuciosa permite jogar luz sobre práticas que “de outros modos estariam indisponíveis para o público, as quais deixam claro quem está tentando influenciar quem e por quê”.

 

Outro professor da NYU, Damon McCoy, afirma que a postura do Facebook é uma forma de manter opaco o processo eleitoral e uma ameaça à democracia. “Cortar o acesso a dados essenciais para estudar a interferência e manipulação da eleição impede nossos esforços de salvaguardar o processo democrático”.

 

No livro do Facebook, transparência é só bla-bla-blá de marqueteiros.

 

Fonte: Poder 360