Programa de formação continuada para docentes da educação básica oferece cursos e atividades em todas as áreas do conhecimento; participantes levam conhecimento para escolas de todo o País

 

O Encontro USP Escola, maior programa de formação continuada do Brasil para profissionais de educação básica, já capacitou mais de 10 mil professores da educação básica em todas as suas edições. A 23ª edição aconteceu entre os dias 17 e 21 de julho, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em mais um encontro gratuito e semestral, que acontece sempre no período de férias. Estima-se que o programa tenha capacitado outros mil professores e professoras, nos cinco dias de evento.

Com o tema Qual a escola que esperançamos?, a abertura do encontro reuniu a direção e o conselho da Associação de Professores da Escola Pública (Apep), atual organizadora do encontro. “Uma escola que está prevista na constituição brasileira, através da Lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB), com perspectiva freiriana para a escola pública e democrática, na construção de crianças e jovens conscientes, críticos e participativos”, defenderam as representantes da Apep.

O evento contou com atividades como palestras, mesas redondas, oficinas, rodas de conversa, relatos de experiências e cursos de formação nas áreas de ciências humanas, ciências da natureza, educação, linguagem e matemática. A circulação de pessoas no encontro incluía docentes da USP e de escolas de ensino fundamental e médio, que estiveram presentes tanto como palestrantes, quanto como espectadores. 

“Uma das características mais importantes do USP Escola é que os cursos são propostos por docentes da escola pública”, destaca Eduardo Donizeti Girotto, um dos coordenadores do evento e docente do Departamento de Geografia da FFLCH. Diante da numerosa oferta de cursos relacionados à Diversidade e à Inclusão, Girotto lembrou que estes temas são muito presentes no contexto escolar. “Há uma ausência de oferta de cursos nestas áreas realizadas pelas secretarias de educação. Este é um público cada vez mais presente nas unidades escolares e os docentes estão preocupados em desenvolver ações efetivas de inclusão, nas suas mais diferentes dimensões”, destacou.

 

Rosemeire Andrade e Thuany Nogueira, ambas professoras da educação infantil em São Paulo, buscaram o encontro como forma de respaldar o conhecimento que já compartilham em sala de aula. “Nem todas as pessoas sentem na pele a questão étnico-racial, então diminuem a vivência. A formação entra para legitimar este saber”, explicou Rosemeire, que veio ao encontro pela primeira vez. Ela leciona em uma escola do bairro central do Bom Retiro, onde há muitos alunos filhos de imigrantes. Já Thuany está pela quarta vez no Encontro USP Escola. Atuando na região de São Caetano, a professora trabalha ainda com letramento racial de outros profissionais da educação. “Consigo multiplicar o que aprendo aqui com professores de lá. A formação me traz embasamento”, disse.

Também presente no evento, Valdinei Freire, professor do curso de Sistemas de Informação na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, no campus leste, palestrou aos inscritos sobre racismo algorítmico, um dos temas da disciplina Inteligência Artificial, que leciona no bacharelado. “Eu trouxe esse tema como informação de algo presente na sociedade. O movimento que estamos vivendo hoje passa pela sociedade civil perceber e denunciar, as empresas acolherem de forma proativa e interromper casos pontuais, mas os problemas continuam”, alertou. Para ele, há duas lupas para detectar o racismo: “uma é pessoal, em que qualquer cidadão com letramento racial pode se incomodar ao entrar em um site e só ver fotos de pessoas brancas, por exemplo. Mas, há também uma questão sistêmica”. Ele cita como exemplo o Compas, sistema utilizado pelo sistema penitenciário do estado de Wisconsin, nos Estados Unidos, que utiliza um algoritmo para determinar o grau de periculosidade ou de propensão à reincidência, e calcular a pena de condenados. “O judiciário pode recorrer a esse sistema de pontos para ajudá-los a julgar, mas já foi observado que o sistema privilegia pessoas brancas”, afirmou o docente.

Professora de História na Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Theodomiro Dias, na Vila Sônia, zona oeste de São Paulo, Lucineide Ferreira, 42, sempre buscou apresentar projetos que “tencionem as estruturas racistas presentes nas escolas”. Lucineide apresentou um relato de experiência no Encontro USP Escola, intitulado Tecendo redes de saberes entre história e outras linguagens no fazer de uma educação antirracista. A professora contou como articulou atividades com a professora de Arte, Karine Leão, que também ministrou a palestra O ambiente como formador estético – Quando o Ensino Fundamental aprende com a Educação Infantil. Lucineide e Karine levaram seus estudantes para mapear produtores de cultura negra em um território que é marcado pelas residências de classe média alta, mas que atende estudantes vindos de bairros periféricos da região, como o Jardim Jaqueline e o Jardim Monte Kemel.

“Ocupamos a praça em frente à escola para ressignificar o local. Infelizmente os moradores retiraram de lá a faixa que instalamos, então fizemos um cortejo pelo bairro para descobrir quem são os sabedores pretos da comunidade. A ideia era dar aos estudantes o protagonismo e a experiência da memória”, contou a professora. Para ela, o racismo sistêmico torna cada vez mais difícil educar as pessoas sobre as discriminações raciais. “Porque o racismo é cotidiano, é da ordem do ordinário. No fundo, as pessoas esperam que o ‘mundo preto’ seja pontual; seja um dia no calendário”, apontou. 

Após a caminhada, os alunos do 9º ano da Emef Theodomiro Dias criaram uma exposição artística e realizaram a 1ª Mostra de Cinema Negro, de temática racial, com sessões simultâneas para idades e séries diversas. A iniciativa reverberou outras ações na escola, como o Congresso Africano e uma mostra sobre a biografia de mulheres indígenas. Lucineide e Karine fizeram, ainda, uma parceria com o Instituto Tambor, que levou uma roda de Capoeira Angola para a escola, além de uma exibição dos tambores que confeccionam. 

“Chegamos neste trabalho porque o primeiro semestre começou com um espancamento coletivo entre estudantes. O ambiente estava violento e estávamos todos enlouquecendo. Então, fomos ouvindo cada estudante, em um trabalho de escuta e valorização. Decidimos ‘desenlouquecer’ juntos”, destacou a professora Karine. No processo de mudança, ela propôs aos estudantes a criação de uma bandeira para a escola, em um trabalho de resgate de tradições. “A escola não tem brasão e ninguém se sentiu bem em utilizar a figura do desembargador que nomeia a escola. A solução que eles encontraram foi fazer um estandarte com flores, ramos e fitas métricas, material que havia em excesso na escola”, descreveu. 

Durante o relato de experiência das professoras para o Encontro USP Escola, Karine e Lucineide explicaram que a atividade oportunizou uma discussão sobre gênero e valorização de um saber feminino, já que na criação coletiva meninas e meninos participaram. “Os meninos se engajaram quebrando o paradigma de que este é um trabalho feminino. Fizeram um lindo trabalho de bordado em cima do riscado. Um dos meninos que sofria bullying manejava bem a agulha porque aprendeu com a avó, e os demais garotos passaram a escutar de que forma ele poderia ensiná-los”, descreveu Karine. Para a professora de Artes, os estudantes do 9º ano se permitiram um fazer manual, que “também te coloca em outro espaço-tempo”. Ela relata que após a experiência, estudantes que diziam não gostar da escola foram aos eventos e participaram de uma mostra de talentos. “É gratificante poder dizer para uma mãe: sim, seu filho tem futuro. A arte pode ser um espaço de evolução.”

Para Lucineide, a Lei 10.639/2003 – que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio – precisa estar garantida nas práticas pedagógicas, nas metodologias e na organização da equipe gestora. “Como a escola trata casos de racismo? Quem são os estudantes mais reprovados e que tiram as menores notas? Não se trata apenas de uma teoria; é concreto”, apontou a professora de História. Ela indica a autora Bell Hooks como uma das intelectuais que serviu de referência bibliográfica, e inspirou a fazerem o trajeto com estudantes pelo bairro. “Ajudou a enxergar o amor como forma de negociação para uma nova vivência.”.

Sua fala estimulou outras professoras participantes do encontro a compartilharem suas experiências nas escolas. “Trabalho em um bairro da periferia de Guarulhos e a gestão não acredita em racismo. Vir aqui me ajudou a pensar práticas para adotar em aula”, disse uma professora que não se identificou. “Na minha escola, havia uma forte interdição da ideia de marginalidade, mas os alunos resistiram e criaram um SLAM que virou um livro de poesias marginais”, contou outra professora que também não se identificou. “Se mais professores tivessem apoiado este movimento, poderíamos ter feito um trabalho interdisciplinar. Afinal, a escola é dos estudantes, não é da gestão”, disse.

“Mas é preciso se aquilombar. Chamar os nossos iguais e não abandonar as professoras e alunas negras na escola. Não as deixem sozinhas!”, aconselhou a professora Lucineide ao final de seu relato. 

 

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