Manuel Merino, o último presidente do Peru, renunciou em uma semana. Assim como no Chile, há um processo destituinte nas ruas de todo o país. A desobediência plebéia conseguirá construir um “horizonte comunitário-popular” em suas lutas, que não dependa apenas da possibilidade do partido reformista?

 

O Congresso peruano voltou a destituir um presidente e mais uma vez nos desafia a sociedade. O aparato estatal mais desacreditado do Peru dissolveu Martín Vizcarra na noite de 9 de novembro, após declará-lo “moralmente incapacitado” por ser corrupto, compartilhando o mesmo destino de seu predecessor Pedro Pablo Kuczynski. Assim, a pior versão da classe política peruana resistiu, abrindo caminho para a impunidade, o cinismo e ainda mais corrupção.

 

Como funciona neoliberalismo peruano onde o impeachment e a angústia são invariáveis das elites politicas empresariais? E, mais ainda, como organizar uma resposta popular, de massas, em um contexto de crises de tal magnitude que tende a desorganizar e atomizar as camadas populares? Que hipótese temos para renovar nossa democracia quando as armas do Estado colonial desaparecem como qualquer imagem da institucionalidade clássica?

 

Resumidamente, estamos diante de uma crise. Habitá-la e pensá-la não a partir da exterioridade de quem categoriza, mas a partir da expressão das multidões que vêm arriscando – e perdendo – a vida hoje nas ruas em resposta à barbárie estatal. E não só: das vidas que, no contexto mais adverso, colocadas em quarentena pelo toque de recolher, puderam se reinventar apesar do aparato repressivo do poder.

 

E agora, seguindo o ritmo vertiginoso de eventos, Manuel Merino, que não tinha uma semana como presidente do Peru, acaba de renunciar. Há uma vontade de destituição claramente expresso nas ruas de todo o país.

 

A resposta das ruas

 

As ruas tem sido o melhor laboratório de experimentação transformadora no Peru recente. Como destaca a investigadora e militante mexicana Raquel Gutiérrez, as massas tem certa “capacidade de veto” para impugnar medidas ou avanços do capital e poder abrir um caminho de reapropriação, ou ao menos disputa, da riqueza social. No Perú recente, desde a Constituição neoliberal de 93, não tem sido poucas as vezes que a rua gritou, “chega!”

 

No ano 2000 foi a mobilização popular que fez fracassar a forma de funcionamento do Estado com a “Marcha dos Quatro Suyos” (inspirada nos quatro pontos cardeais do Império Inca), quebrando a governabilidade do fujimorismo; em 2009, no “Baguazo” houve um ponto de inflexão contra o governo autoritário de Alan Garcia; em 2014 foram as juventudes quem impulsaram a revogação da “Lei Pulpín” que legalizava a exploração trabalhista entre os mais jovens; em 2019 milhares de pessoas inundaram a “Panamericana Norte” contra a cobrança abusiva de pedágios em Puente Piedra. E como último gesto de uma memória viva das lutas temos os trabalhadores da limpeza pública que, nas piores condições para um acordo coletivo, em agosto deste ano se mobilizaram contra a precariedade de seu trabalho perante o Município de Lima.

 

Como as diversas esquerdas peruanas interpretam essas desobediências que nunca se harmonizaram plenamente com o modelo neoliberal e que nunca renunciaram ao antagonismo nas ruas? Que imagens constituintes podem ser rascunhadas se no momento do veto popular não for necessário uma direção política ou um órgão hierárquico como o partido?

 

Em resumo, o processo chileno é o horizonte do Peru?

 

Nosso norte é o sul (as vezes)

 

Desde a década de noventa, o Chile de Pinochet foi a bússola das medidas jurídicas e econômicas implementadas pelo ex-presidente peruano condenado Fujimori. Chile e Peru mantiveram uma trajetória entreguista, seguindo o manual do consenso de Washington e dos chicagoboys. Sem dúvida, atrás das exitosas estatísticas e da fé cega no mercado aumentava o descontentamento popular.

 

O Chile, como já sabemos, explodiu e tem um processo constituinte em andamento após a participação massiva dos cidadãos. O que falta para dar esse tão desejado passo nos slogans da esquerda peruana nas últimas horas?

 

A princípio, podemos dizer que o desprezo popular pela classe política é comum em ambos casos. O modo, porém, do neoliberalismo se reproduzir é diferente. Piñera não foi destituído do cargo no Chile. No Peru, vamos ter um terceiro presidente em menos de três anos. Parece que a destituição de presidentes é a forma que o poder encontrou no Peru para purificar e se renovar perante a sociedade.

 

Como a popularidade fugaz que Vizcarra ganhou precisamente lutando contra a corrupção na era Fujimori foi deslegitimada tão rapidamente?

 

Vizcarra gerou alguma expectativa social após decretar em outubro de 2019 a dissolução do parlamento majoritário de Fujimori, no marco de uma luta anticorrupção que comprometeu os setores mais obsoletos da extrema direita peruana. Chegou a atingir níveis recordes de popularidade no cargo por esse feito.

 

Mas não esqueçamos que foi o presidente quem enriqueceu ainda mais os grandes bancos peruanos e o setor financeiro durante a pandemia, dando-lhes quase 9 bilhões de dólares. Foi ele quem decretou a Lei nº 31012, que isenta policiais e militares de responsabilidade criminal por matar enquanto patrulham as ruas para fazer cumprir o estado de emergência; Foi ele quem culpou os trabalhadores da economia popular pela propagação do vírus, caracterizando as feiras de bairro como “fontes de contágio” e possibilitando uma caçada ao comércio ambulante realizado em vários lugares da capital. Ordem e mão forte eram as únicas garantias de controle propostas por seu governo defenestrado.

 

Ditadura de ninguém

 

O que se expressa hoje nas ruas se não é uma defesa do governo que foi destituído? Não é para Vizcarra ou para salvar o quadro institucional liberal da comunidade empresarial, mas para evitar a consumação da podridão no poder que milhares estão marchando hoje.

 

Vamos destacar isso: vemos repetida a racionalidade de um Estado neoliberal como o peruano, capaz de suspender instituições (sempre movidas pela desaprovação civil) para evitar um transbordamento maior de destituição (como no caso chileno). Parlamentares ou presidentes podem desaparecer e a máquina continuará funcionando. Estamos diante de uma “ditadura de ninguém”, como indicou em outro momento o sociólogo peruano Félix Reátegui?

 

Se retirar pedaços de dentro é a forma que o neoliberalismo peruano tem de recuar e evitar a durabilidade e o agravamento da crise, como podemos responder de forma original além dos slogans com os quais todos concordamos? Queremos um processo constituinte, sim. E estamos lutando por isso. Mas a impressão que se tem da esquerda é que já definiram todas as saídas para um momento excepcional de interrupção com o presente. Os acontecimentos dos últimos anos – entre perdões, exonerações presidenciais e dissoluções parlamentares – abriram outros caminhos de mobilização, enfrentamento e organização contra um modelo além dos canais institucionais.

 

Como acompanhar as incertezas e que espaço damos ao surgimento de uma novidade política?

 

O filósofo argentino León Rozitchner em “The Left Without a Subject” questionou se estávamos pensando sobre a razão sem colocar o nosso corpo nela. “O problema é terrível: como podemos produzir o oposto do que o capitalismo, com todo o seu sistema de produção de homens e mulheres, produz?” Dependerá se a desobediência plebéia prefigura um possível “horizonte comunitário-popular” em suas lutas, que não depende apenas da possibilidade do partido reformista (que com as melhores intenções, talvez, só consegue administrar um Estado intrinsecamente neoliberal) e que ao mesmo tempo, não desista de suas demandas políticas por uma vida decente. O processo está aberto e pronto para nos dar as alianças de que precisamos para a sociedade que queremos.

 

Víctor Miguel é pesquisador da Universidade de Buenos Aires

 

Tradução: Michelle Coelho

 

Fonte: Jacobin Brasil