Em um momento ambíguo, quando os norte-americanos viviam um momento de recuperação econômica após o baque causado pela pandemia da Covid-19, mas ainda precisavam lidar com uma realidade de quase 10 milhões de desempregados, um número recorde de pedidos de demissões parece ter materializado o que o especialista em psicologia organizacional Anthony Klotz batizou de “great resignation”, ou “grande renúncia”, em tradução livre. A tese que ele defende indica que uma parcela cada vez maior da população, por diversos motivos, entre os quais o cuidado com a saúde mental, deve optar por abrir mão da estabilidade empregatícia. 

As estatísticas apuradas por órgãos oficiais dos Estados Unidos corroboram com a hipótese de Klotz. Ao todo, em abril do ano passado, enquanto um grande contingente de pessoas buscava recolocação no mercado de trabalho, mais de 4 milhões simplesmente abandonaram seus antigos empregos – número que correspondia a cerca de 2,7% do total da população empregada no país. 

Uma série de fatores pode explicar o fenômeno, como a crescente oferta de vagas em regime de home office – efeito da aceleração da virtualização das relações provocada pela crise sanitária causada pelo coronavírus. Para se ter uma ideia, nos EUA, em 2020, o potencial de trabalho remoto corresponderia a 37% da mão de obra. Também está por trás desse recorde de desligamentos os casos de adoecimento laboral. Expressão da seriedade desse problema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a classificar oficialmente a síndrome de burnout como uma doença ligada ao trabalho. 

Ainda que concorde que o fenômeno da “grande renúncia” seja uma tendência no universo laboral pós-pandemia, Rafaela Frankenthal, cofundadora da startup SafeSpace, lembra que o cenário nos EUA é diferente do brasileiro. “Aqui, sobretudo neste momento de crise, quando temos cerca de 14 milhões de desempregados e uma perspectiva de retomada econômica muito lenta, a esmagadora maioria das pessoas vai preferir focar a estabilidade, estando feliz ou não no trabalho”, avalia. 

Feita a ponderação, ela reconhece que as empresas que atuam em solo nacional podem e devem aprender com esse recorde de pedidos de desligamentos entre os norte-americanos. “Hoje, para reter talentos, é fundamental que as lideranças saibam que as pessoas estão mais exigentes em relação à responsabilidade social das empresas, que os funcionários vão priorizar um ambiente de trabalho saudável e sustentável”, diz, salientando que essa postura já pode ser percebida entre brasileiros em posição social de privilégio. 

Rafaela lembra que essas mudanças de perspectiva têm muito a ver com pautas trazidas por pessoas mais jovens, notadamente das gerações Millenials e Z. “A preocupação com a saúde mental aparece de maneira muito consistente entre esses grupos”, aponta. 

Deives Rezende, sócio-fundador da Condurú Consultoria, concorda. Ele acrescenta perceber uma mudança cultural na forma como o emprego é compreendido. “O mundo mudou e as empresas que quiserem se manter relevantes precisam se adaptar. Já se foi o tempo daqueles antigos generais que pressionavam demais, em atitudes que beiravam o assédio. E isso tem a ver também com a percepção do trabalho que, anteriormente, era um valor em si e, agora, é uma opção para conseguir divertimento ou algum conforto”, opina.  

Home office 

“Entre os colaboradores que, por causa da pandemia, experimentaram o home office (o equivalente a 11% da população empregada, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de julho do ano passado), há tanto os que não se adaptaram e querem voltar ao presencial como também há quem prefira permanecer em um sistema completamente virtual. Certo mesmo é que algo mudou para esse grupo”, observa Deives Rezende, sugerindo que a flexibilidade e o encurtamento de distâncias se tornaram, para muitos, um benefício mais valorizado. 

“Imagine uma pessoa que precisasse passar horas no trânsito até o escritório. É como se, agora, ela tivesse ganhado esse tempo de volta, podendo se dedicar a quaisquer outras tarefas nesse prazo. Obviamente, ela vai querer manter esse ganho de qualidade de vida”, situa. “O mesmo vale para aqueles que passaram a comer melhor, a poder se dedicar a preparação do próprio prato quando, antes, precisava se alimentar a um custo muito alto ou de itens pouco saudáveis”, diz. Portanto, obrigar essas pessoas a simplesmente voltar ao regime presencial por um mero capricho pode ser prejudicial para a empresa. “O efeito pode ser a queda da produtividade ou, em última instância, o pedido de demissão”, comenta. 

Na outra ponta, “temos pessoas que não têm um local adequado para o trabalho, que não têm uma boa convivência dentro de casa ou até aquelas que simplesmente não conseguem se concentrar se não estão no escritório”, pontua, asseverando que, idealmente, para chegar a uma decisão sobre possíveis retornos sobre a manutenção ou não do teletrabalho, as lideranças deveriam ouvir seus subordinados e refletir sobre quais são as necessidades reais das empresas. 

Rezende adverte que, no caso da opção pelo home office, é fundamental que as empresas abram espaço de escuta ativa e busquem monitorar o humor de seus funcionários. “Como estão longe, os sinais físicos de desmotivação e de exaustão podem ser mais dificilmente percebidos. Então, é preciso redobrar o cuidado – e estou falando de cuidar, de ter atitude de carinho e de preocupação – com a equipe”, analisa. 

Para qualquer que seja o regime de trabalho escolhido, Rafaela Frankenthal destaca ser fundamental que as empresas invistam em exames de clima e busquem abrir canais de escuta para relatos, garantindo proteção aos funcionários que recorrerem a esses suportes. “E é indispensável que as lideranças estejam capacitadas para ouvir, para ter uma postura de escuta ativa”, reforça. 

4 em cada 10 brasileiros querem voltar a trabalhar fora de casa 

A pesquisa Return to the Workplace 2021 Global Survey, realizada pela Ipsos em 19 nações, incluindo o Brasil, apontou que 40% dos entrevistados no país desejam trabalhar fora de suas casas no pós-pandemia. Por outro lado, 31% preferem trabalhar mais ou completamente em regime de home office, e 11% disseram que a natureza de seus trabalhos não permite escolher onde trabalhar. Na média global, 33% das pessoas dizem querer trabalhar fora de casa. 

Entre os que desejam voltar ao trabalho presencial, 58% afirmam sentir saudades dos colegas – contra 52% na média global –, 41% não se sentem engajados no home office – número superior à média global de 37% –, 38% alegam que o ambiente doméstico dificulta a produtividade – exatamente a mesma porção do que globalmente –, e 35% se sentem mais exaustos quanto trabalham de suas casas – alinhados com a média global de 33%. 

O Tempo